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A lógica escondida das APAs

Na Europa, em meio as suas paisagens pouco naturais, se aprende a verdadeira função das Áreas de Proteção Ambiental. Elas fazem diferença onde a degradação ameaça tudo.

13 de junho de 2007 · 17 anos atrás
  • Marc Dourojeanni

    Consultor e professor emérito da Universidade Nacional Agrária de Lima, Peru. Foi chefe da Divisão Ambiental do Banco Interam...

As Áreas de Proteção Ambiental (APAs) são, entre todas as unidades de conservação do Brasil, as de menor prestígio. Nem sequer os socioambientalistas gostam delas. A razão é muito simples: com raríssimas exceções, parece não serem úteis para nada, pois estar nelas ou fora delas não faz maior diferença. Foi necessária uma viagem à Espanha, onde visitei um parque natural da região de Andaluzia, para compreender o sentido dessa categoria de área protegida. Os parques naturais europeus são a versão original das APAs, que foram introduzidas no Brasil por iniciativa do famoso ambientalista Paulo Nogueira Neto.

Na Europa ocidental, após milênios de presença humana, um dos desejos ou propósitos do socioambientalismo é agora realidade: Lá praticamente nada é natural. Qualquer rincão dessa terra foi explorado e transformado por ondas sucessivas de habitantes. A ocupação humana da velha Europa tem sido muito mais intensa e contínua que a das Américas. Por aqui, uns poucos lugares tiveram ocupação contínua como os Andes tropicais e a parte sul da América do Norte, especialmente México; mas, na maior parte do espaço, nunca existiu muita gente que, ademais, pelo seu caráter de caçadores e agricultores incipientes, impactaram pouco no entorno. Em outros lugares, existiram períodos breves de uso intenso, seguidos de outros muito longos bem mais calmos ou quase sem ninguém, como o que surgiu após o desaparecimento das culturas Maya na América Central e Pajaten na Amazônia peruana, ou o sumiço dos habitantes das antigas infra-estruturas agrícolas do Beni boliviano, ou das várzeas amazônicas do Brasil. Nesses lapsos, que em muitos casos duraram até um milênio ou mais, a natureza reconquistou plenamente seu território perdido. De outra parte, embora seja verdade que a população da América foi bem maior do que se acredita em geral, sua densidade foi, em todo momento da história, muito menor do que aquela da Europa ocidental.

De qualquer modo é evidente que na Europa ainda existem expressões seminaturais consideráveis. Por ser intensamente antropizada, a natureza européia é muito menos diversa que originariamente e de certa forma, realça a importância do que subsiste. Ela é indispensável em termos de conservação de espécies que sobreviveram até o presente às atividades humanas ou que se adaptaram a elas e, assim mesmo, das espécies e recursos genéticos de nativas ou exóticas domesticadas (recursos agro-biológicos) e das invasoras introduzidas no transcurso da história. Como em outros lugares a natureza remanescente ou a natureza como hoje é, também pode oferecer serviços ambientais importantes, sem excluir o valor intrínseco das paisagens e seres vivos que ainda nutrem a recreação e o turismo. A paisagem européia da atualidade, mesmo mansa e domesticada, não deixa de ser bela. E essas paisagens antropizadas, já modificadas muitas vezes no passado, agora precisam ser protegidas de novas agressões de uma humanidade muito mais numerosa e ambiciosa e com uma capacidade depredadora nunca antes vista.

O Parque Natural visitado, Cabo de Gata-Nijar, está localizado sobre vários milhares de hectares da costa de Andaluzia, a região mais seca da Europa. Este Parque cujas terras são privadas inclui algumas cidades – balneárias e várias praias muito concorridas; varias fazendas onde cultivam oliveiras, que é nativa da região e, também, muitas espécies exóticas; diversas explorações mineiras; intensa atividade pesqueira; pecuária extensiva com gado bovino e caprino; caça e pesca esportiva; múltiplas atividades recreativas terrestres e aquáticas e, claro, um enorme desenvolvimento turístico. Suas infra-estruturas, ademais das cidades, hotéis e residências, incluem estradas principais asfaltadas e inúmeras vias secundárias, torres de alta tensão e para a telefonia, captações de água, esgoto sanitário e todas as que uma sociedade próspera como a espanhola precisa para viver bem. Ainda existem lá as evidências de milênios de intensa atividade humana. Encontram-se restos arqueológicos pré-históricos de milhares de anos de antiguidade e de culturas prévias à época romana. Os romanos foram assíduos usuários da região, onde se explorou minérios, sal e os recursos agropecuários e pesqueiros. Logo foi o turno dos mouros, que desenvolveram as mesmas atividades, embora nem sempre com os mesmos métodos e; após a reconquista pelos cristãos, a região continuou sendo muito explorada e modificada. Toda classe de ruínas militares e religiosas ou urbanas, testemunham a continuidade da presença humana por muito mais de dez mil anos.

Poder-se-ia perguntar, então, o que é protegido e contra que, nesse Parque “Natural”. Para ter a resposta é suficiente olhar fora dos limites sinuosos do Parque Natural. Onde termina o âmbito protegido começa um oceano de horrendas barracas de plástico, na verdade dezenas de milhares de hectares recobertas por estufas, onde se produz grande parte das hortaliças, em especial tomates, que se consomem na Europa. As estufas poupam a custosa e rara água e permitem controlar melhor os fatores do meio ambiente nos cultivos. De qualquer forma essa agricultura intensa é enorme consumidora de agrotóxicos que, apesar dos intentos de mantê-los em circuito fechado, agridem o entorno (e os consumidores). Esse agro negócio é hoje o principal motor da economia da região que, até duas décadas atrás, era uma das mais deprimidas da Espanha. Nas costas, o que não é ocupado por cidades, é ocupado por hotéis e outros negócios turísticos ou por residências de verão. Apenas as montanhas estão relativamente protegidas dessas atividades. Então, assim pode se compreender a extraordinária importância do Parque Natural Cabo de Gata-Nijar que, para parâmetros latino-americanos, pode parecer qualquer coisa menos uma unidade de conservação, mas para a Espanha ou a Europa é um portentoso esforço de salvar algo onde, se não tivesse sido estabelecido, não ficaria nenhuma paisagem sequer parecida ao que fora no passado recente. Não obstante nem sempre as condições são tão extremas ou radicais como nessa parte da Espanha, mas assim mesmo o caso é bom para explicar a importância dos parques naturais.

O esforço de gerenciamento de uma unidade de conservação como Cabo de Gata-Nijar é titânico. Nela devem concertar-se os interesses e direitos de milhares de stakeholders ou atores individuais e agrupados que, em geral, são contraditórios uns com os outros e com a conservação da natureza. Também devem se considerar os interesses dos políticos regionais e locais, inclusive os das prefeituras das cidades incluídas no Parque. Absolutamente nada, nem a própria lei, pode ser aplicada sem intermináveis discussões e acordos prévios que, além disso, devem ser constantemente reavaliados e modificados. Assim, por exemplo, se logrou que a lagoa artificial donde se extrai sal desde tempos imemoriais, hoje propriedade de uma empresa transnacional, seja manejada de tal forma que seu uso por aves migratórias, inclusive flamingos, não fique prejudicado e que, ademais, possa ser parcialmente visitada por turistas. O controle da expansão urbana é motivo de negociações difíceis com as prefeituras, do mesmo modo que deve se convencer os pecuaristas a aceitar que a capacidade de carga das pastagens naturais é limitada e que o pastoreio requer rotações. Igualmente deve se discutir quotas de abate ou vedas com os clubes de caça, limites à extração com os pescadores artesanais, regras para instalação e operação de marinas e de navegação com os donos de embarcações de lazer, introdução de novas espécies e uso de agroquímicos com os fazendeiros, etc. Alguns locais do Parque são considerados de grande interesse religioso e abrangem dúzias de milhares de visitantes em determinadas festividades com gravíssimo impacto sobre uma vegetação já muito rara. Isso igualmente motiva delicadas conversações com as lideranças comunais e religiosas. O trabalho de coordenação entre setores públicos é gigantesco, pois praticamente todos atuam no âmbito do Parque Natural.

Tudo isso, que é condizente para salvar algo de uma natureza que já foi extremamente modificada, tem um custo muito elevado. O custo de operação (orçamento de operação e investimento) só desse Parque Natural é equivalente à metade do orçamento de que o Ibama dispõe para todo o Sistema Nacional de Unidades de Conservação do Brasil e deve equivaler a várias centenas mais do que o Brasil aplica em todas as suas APAs, que cobrem um espaço cem vezes maior. Na Espanha, como na Europa, proteger o pouco que resta do entorno natural é coisa séria para o público e, assim, os políticos e governantes respondem apropriadamente a essa demanda. Por isso é que, apesar de tantas dificuldades, os parques naturais europeus funcionam bem, ou seja, cumprem os seus objetivos ambientais, sociais e econômicos.

Que lições pode se tirar destes fatos? Muitas. Primeiramente que os parques naturais e consequentemente as APAs brasileiras têm sua razão de ser. Muitas regiões do Brasil, em especial no Sul, Sudeste e Nordeste apresentam já condições de intervenção humana nos ecossistemas, equivalentes aos da Europa. Quando neles ainda existem elementos naturais que devem ser preservados, por serem únicos ou relevantes para a sociedade, faz sentido se criar uma APA. Seus objetivos específicos devem ser claramente definidos, por exemplo, manter ou restaurar, dentro do possível, uma paisagem única de alto valor e/ou garantir a sobrevivência de espécies raras ou em perigo de extinção. Em segundo lugar, uma APA não é um instrumento equivalente a outras categorias de unidades de conservação, nem tampouco pode substituí-las. As APAs devem ser estabelecidas onde não se pode, em razão da irreversibilidade da situação fundiária, implantar outra categoria como, por exemplo, um parque nacional. Mas, na realidade, muitas das APAs foram estabelecidas apenas para satisfazer pressões, inclusive derivadas de contratos de financiamento internacional de infra-estrutura, para se criar unidades de conservação ou apenas para que políticos “mostrem serviço” na área ambiental a baixo custo e sem problemas (não têm que desapropriar a terra nem confrontar oposição severa). Por isso existem tantas APAs imensas e totalmente desnecessárias.

Outra lição faz referência aos custos de manejo de um parque natural ou uma APA. Verdade é que não existem custos de regularização fundiária, mas, fora disso uma APA tem os mesmos rubros de custos que qualquer outra unidade de conservação, como: a administração, planejamento, infra-estrutura, pessoal e equipamento. Só que esses custos são muitas vezes mais elevados que os de uma unidade de conservação de uso indireto ou preservação integral. Com efeito, em uma APA existe um custo enorme de gestão, derivado das inúmeras e complexas negociações necessárias para se chegar a um consenso sobre o plano de manejo e para supervisar sua aplicação. Esse custo existe, também, no caso de todas as unidades de conservação, embora nas APAs e outras de uso direto o custo seja multiplicado pelo número de atores residentes na área e na sua zona de influência. Nas de uso indireto, a coordenação é com os atores do entorno, o que reduz muito a sua complexidade. Além do mais, discussões sobre restrição de direitos ou qualquer outra ação é mais difícil com proprietários indiscutíveis da terra, que com vizinhos ou usuários eventuais. A gestão de APAs requer equipes de profissionais muito maiores, mais competentes e pluridisciplinares que outras categorias de unidades de conservação e, assim mesmo, muito mais pessoal de controle e supervisão especialmente treinado para aplicar a lei e o plano de manejo, sem provocar reações indesejáveis. A paciência é a palavra de ordem para todos os funcionários desses parques naturais.

Assim, enquanto os parques naturais europeus conseguem resultados, as APAs brasileiras, com poucas e louváveis exceções, não funcionam devido aos seus excessos territoriais e a outros erros cometidos no seu estabelecimento e, igualmente, à sua carência dramática de meios para operar. Foi assim como uma boa idéia de Paulo Nogueira Neto foi distorcida. Ela, na verdade, foi explorada por políticos sem escrúpulos de enganar a população, fazendo acreditar que protegiam bem a natureza quando, na verdade, seus esforços se limitavam a assinar um papel numa fugaz cerimônia pública. Os parques de “papel”, pelo só efeito do seu estabelecimento legal, protegem boa parte de sua integridade natural, em virtude de serem terras públicas como tem sido amplamente demonstrado. Mas, as APAs de papel, sobre terras privadas, não conservam absolutamente nada.

Pelo dito, é urgente uma revisão das APAs federais e estaduais, eliminando muitas delas, que nunca deveriam ter sido estabelecidas e; feito isso, é preciso dedicar a essa categoria os recursos para que cumpram suas indiscutivelmente importantes funções, que a cada dia serão mais necessárias, levando-se em conta o tal do progresso.

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