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Ensurdecedora casa no campo

Um alerta para quem sonha em fugir dos tormentos urbanos e refugiar-se no interior: a vida em cidades pequenas está se transformando num inferno sonoro

23 de setembro de 2004 · 20 anos atrás
  • Marc Dourojeanni

    Consultor e professor emérito da Universidade Nacional Agrária de Lima, Peru. Foi chefe da Divisão Ambiental do Banco Interam...

Quando se chega à idade certa, aposentar-se e ir para uma cidade do interior e ter uma chácara por perto para cuidar da mata nativa e dos bichinhos correspondentes, é o sonho de consumo de muita gente. Enquanto dura a fase de preparar o nicho tudo parece, com efeito, um sonho. Mas quando chega a sua realização, com a mudança já feita, começa o despertar, nem sempre tão encantador.

Os moradores de cidades pequenas sentem uma tremenda falta do ruído que nos faz fugir das cidades grandes. Toda ocasião patriótica, cívica ou religiosa é bom motivo para barulho que, claro, se arremata com festas muito pagãs e intermináveis, aliciadas por músicas abusivamente eletrônicas (até que forró seria bom!). Quando as festas terminam, os participantes, devidamente bêbados, se desmandam pelas ruas batendo nas portas e tocando as campainhas das casas, que parecem exercer uma atração fatal sobre eles. Na manhã seguinte, muito cedo, passa pela rua o carro de som, anunciando a morte e respectivo funeral de algum cidadão ilustre. Um pouco mais tarde, é o turno do vendedor de doces da cidade vizinha e, como é lógico, o anúncio da próxima festa de arromba. À tarde, as coisas são um pouco mais calmas e, em geral, apenas os carros novos da polícia local usam suas sirenes para impressionar os residentes com seus por demais invisíveis esforços. Mas logo chega o turno dos equipamentos de som dos automóveis particulares. Até os mais vetustos fuscas caipiras são dotados de poderosos equipamentos, que fazem tremer as árvores das avenidas e dançar as vidraças das residências. Quando anoitece e se quer desfrutar do pôr-do-sol e de uma conversa agradável com um trago na mão, os artistas locais reúnem a moçada da cidade para praticar com batucada e gritos os monótonos ritos das antigas artes marciais da África tribal. Até os mosquitos ficam estarrecidos (pelo menos isso é uma vantagem). Não vale a pena falar do barulho que deriva das campanhas “políticas” dos candidatos a prefeito e vereador. Isso simplesmente é indescritível, mas graças a Deus e às limitações da democracia, esse fato dura apenas uns meses a cada quatro anos. Sabendo que tem prazo fixo, resulta tolerável.

Mas isso não é tudo. Todo fim de semana a cidadezinha é invadida por hordas de visitantes das capitais vizinhas. Nestes dias, a única alternativa tranqüila é a retirada prudente ao sítio familiar. Muitos visitantes são elegantes e discretos, mas a maioria é composta por filhinhos de papai que chegam em poderosas máquinas, tão barulhentas que fazem dos fuscas locais um mal menor. A eles se juntam, como azeite e vinagre, os mal chamados farofeiros (nunca os vi comer isso). Estes chegam em ônibus desastrados, que se alastram penosamente pela estrada. Farofeiro que se preze carrega um toca-fitas ou toca-discos portátil, para complementar o escândalo geral. È quase cômico ver toda essa juventude agrupada nos mesmos locais, cada um procurando dominar os outros com seu barulho preferido. Se quiser comer na rua dos restaurantes, verá o mesmo. Cada bar ou restaurante, porta ao lado de porta, dispõe de música privativa expelida a pleno volume, o que resulta francamente indigesto.

Nem o sítio da gente é o paraíso que se poderia imaginar. Sem falar que na estação seca qualquer passeio na mata resulta condimentado demais pelo impacto dos carrapatos, o barulho urbano chega até o campo, trazido pelos ventos dominantes. Até o sermão do padre local, as seis da madrugada, é ouvido na sua versão integral. Dispensam-se comentários, por óbvios, sobre os ruídos emitidos pelos pastores. E se o vento é contrário, nunca faltará um passante ou roceiro que, abrindo o porta-malas do carro, generosamente inundará o entorno com alguma música da moda. Os que acampam no rio perto do sítio carregam baterias adicionais para que suas infernais máquinas de som funcionem a noite toda. Passa-se grande parte da noite espumando de raiva e ruminando a idéia de pegar a espingarda e encher de chumbo sua maldita parafernália.

Na manhã seguinte dormem como anjos, os pobres, momento propício para se aproximar de carro e buzinar com fúria. Mas eles, cheios de drogas e álcool, nem percebem (os pais devem imaginá-los ecologistas responsáveis, passando penúrias para conhecer a mãe natureza). Eles só despertam quando, bem mais tarde, passam pelo lugar dúzias de motociclistas praticando aquele esporte poeirento e ruidoso que chamam de motocross. O ruído não é tanto o problema nessa hora, mas o pó chega copiosamente até nosso retiro.

Segunda-feira, de volta ao lar na cidadezinha. Depois dos barulhos intensificados do final da semana, tem-se a sensação de que a situação é tão repousada e pacata como o sonhado. Não por muito tempo, claro. Um enorme caminhão carregado de pedras passa pulando na rua e faz cair telhas de nosso telhado. Ao mesmo tempo, um cavalo come a palmeira recém-plantada no jardim da frente da casa e o louco do bairro toca a campainha para pedir qualquer coisa, alertando o cachorro do vizinho, que o odeia e vai latir por quinze minutos, antes que outro cão o supere na tarefa. Já se sabe que, na hora sagrada da sesta, passará a meninada do colégio e cada um dos garotos tocará a campainha…

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