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Uma floresta e duas invasões (A Ferro e Fogo I)

Para quem não teve chance de ler "A Ferro e Fogo", clássico esgotado sobre a Mata Atlântica, o colunista começa uma série sobre o que há de imperdível na obra.

17 de dezembro de 2004 · 19 anos atrás
Clássico de Warren Dean..

Na minha primeira coluna aqui em O Eco prometi escrever uma série de artigos sobre “A Ferro e Fogo” de Warren Dean, para servir como “chamariz para os interessados e concessão aos realmente apressados e aos legitimamente preguiçosos”. Não se trata de fazer um resumo, mas sim uma leitura pessoal que indique alguns pontos que me parecem especialmente importantes neste livro seminal. A proposta inicial foi fazer quatro artigos. Mas mudei de ideia, permitindo-me comentar as descobertas de Dean em um número maior de colunas, ainda não definido.

A ideia é intercalar a série “A Ferro e Fogo” com colunas sobre outros assuntos. Mas no final de algum tempo o leitor terá disponível o conjunto dos artigos, que oferecerei como um serviço de utilidade pública, especialmente nesses tempos pretensamente “desenvolvimentistas” em que tantos erros do passado estão sendo repetidos.

O tema do primeiro artigo da série são as sociedades indígenas e a chegada dos europeus na região da Mata Atlântica.

Um primeiro ponto importante de “A Ferro e Fogo”, assim como da história ambiental em geral, é o de entender a história para além da presença dos seres humanos. A história, neste sentido ampliado, pode ser entendida como a construção e transformação ao longo do tempo das formas, estruturas e dinâmicas da existência. Existe um interessante debate teórico hoje em dia sobre a renovação e radicalização da ideia de história natural, assim como sobre a maneira de associá-la com a história social humana. Pretendo abordar este tema em uma próxima coluna. Por agora basta lembrar que os espaços da natureza, ao contrário do que muitos imaginam, não são cenários acabados, estáticos e eternamente iguais onde os seres humanos exercem a sua movimentada história de sangue, lágrimas e voos do espírito. Os espaços da natureza possuem uma história própria e altamente enérgica, que resulta de um processo evolucionário que passou por diferentes momentos, alguns bastante conturbados, e continua sempre em estado de mudança. Como bem disse Paulo Freire, “o mundo não é, o mundo está sendo”. E isso vale tanto para a história humana quanto para a história biofísica maior dentro da qual nós existimos. A história dos movimentos humanos acontece dentro e através da história dos movimentos da natureza.

“A quase totalidade da longuíssima evolução biofísica da Mata Atlântica, o mesmo acontecendo nos outros grandes biomas das Américas, ocorreu sem a presença do ser humano”.

A Mata Atlântica, nesse sentido, possui uma história muito mais antiga do que a presença humana em seu seio. No capítulo 1, “A evolução da floresta”, Dean sintetizou a saga das florestas tropicais cuja “linhagem é muito antiga, embora sua evolução tenha sido espetacularmente rápida e multiforme”. Essa linhagem tem suas raízes mais remotas na formação das primeiras plantas vasculares fotosintetizadoras e multicelulares há 400 milhões de anos e pela expansão das plantas floríferas no dossel da vegetação há 65 milhões de anos. No caso das matas do litoral atlântico brasileiro, ela também passou pela fissura entre as geomassas africana e sul-americana há 110 milhões de anos – com a formação do Oceano Atlântico – e por vários períodos de glaciação, quando a mata “encolhia, perdendo contato com a Floresta Amazônica e provavelmente se fragmentando à medida em que afundava em vales costeiros e depois, gradualmente, se reconstituía quando voltava o calor”. Com o fim da última grande glaciação, entre 18.000 e 12.000 anos atrás, as geleiras se retiraram para os picos mais elevados dos Andes. A partir deste momento, com condições favoráveis de temperatura e pluviosidade, a Mata Atlântica “mais uma vez se expandiu vigorosamente, para ocupar um vasto império, 3.500 quilômetros ao longo da costa sul-americana”.

A quase totalidade da longuíssima evolução biofísica da Mata Atlântica, o mesmo acontecendo nos outros grandes biomas das Américas, ocorreu sem a presença do ser humano. Os continentes do extremo-ocidente do planeta foram os últimos a serem ocupados pelas migrações humanas que, partindo de sua origem africana, tiveram início há mais de 1 milhão de anos. A visão amplamente dominante na ciência atual é a de que os primeiros grupos humanos chegaram nas Américas, atravessando o estreito de Bering, há menos de 15.000 anos. Na região específica da Mata Atlântica, a presença humana mais antiga, até onde sabemos, é da ordem dos 11.500 anos.

“É preciso superar a ideia dos índios como entidades sobre-humanas, ahistóricas, imemoriais e eternamente iguais em seu modo de vida e tecnologias”.

Um segundo ponto central de “A Ferro e Fogo”, trabalhado no capítulo 2, “A primeira leva de invasores humanos”, é o de historicizar de maneira plena e concreta a trajetória dos grupos paleoindígenas e indígenas. É preciso superar a ideia dos índios como entidades sobre-humanas, ahistóricas, imemoriais e eternamente iguais em seu modo de vida e tecnologias. Os povos “originários”, de fato, chegaram nessas regiões há relativamente pouco tempo (se tomarmos o Homo habilis, que viveu na África há cerca de 2, 2 milhões de anos, como ponto de partida do drama humano). Esta posição teórica não significa adotar uma imagem negativa dos índios. A oposição bárbaros sanguinários versus deuses ecológicos é igualmente inaceitável. É preciso entender as populações indígenas pelo que elas são, sem romantismos ou preconceitos de qualquer tipo. E o ponto de partida é aceitá-las como sociedades humanas dotadas de história. Os que imaginam um litoral atlântico imemorialmente ocupado por grupos de língua Tupi que viviam desde sempre em paz e harmonia ficarão decepcionados em saber que os ancestrais destas populações invadiram a região da Mata Atlântica por volta do século IV d.C., expulsando povos que aqui viviam anteriormente, possivelmente descendentes das populações que construíram sambaquis ao longo da costa entre 8.000 e 900 anos atrás.

A valorização das culturas indígenas pode sustentar-se por si mesma, sem necessidade de romantismos. A capacidade de conhecer e nomear a biodiversidade da floresta tropical, por exemplo, foi um feito notável dos povos Tupi em seus mais de 1.000 anos de convivência com a Mata Atlântica, sem contar a possibilidade de terem herdado conhecimentos das populações anteriores. Como afirmou Warren Dean, “um ecossistema pode ser visto como um reservatório de informações, as geneticamente programadas e, ao mesmo tempo, as acumuladas por suas espécies…Os homens da Mata Atlântica, como todas as suas outras criaturas, haviam armazenado durante 12.000 anos os seus próprios estoques de informação”. A relativa falta de interesse dos conquistadores europeus por este conhecimento pode ser considerada trágica para a formação do Brasil colonial, pois “uma vez retirados os indígenas de seus hábitats, toda essa informação começou a se deteriorar, e a floresta se tornou estranha e carente de propósito humano”.

“Toda cultura humana existe em contexto ecológico definido. Mas este contexto não é capaz de explicar, em termos utilitários, as suas crenças e padrões de vida”.

A cultura e o modo de vida dos povos Tupi, como no caso de todas as outras sociedades humanas, não podem ser entendidos de maneira simplista. Toda cultura humana existe em contexto ecológico definido. Mas este contexto não é capaz de explicar, em termos utilitários, as suas crenças e padrões de vida. Estes últimos, por outro lado, também não podem ser entendidos em abstrato, sem conexão com a realidade ecológica na qual se inserem. Warren Dean negou, por exemplo, a tese de que a guerra ritual e a antropofagia, tão fundamentais para cimentar a vida social das aldeias Tupi, pudessem ser explicadas pela falta de fontes naturais de proteína no litoral brasileiro (que obrigaria aquelas populações a lançar mão do consumo de carne humana). Na Mata Atlântica, assim como nas restingas, manguezais e no próprio mar, existiam muitas fontes de proteína para serem manejadas através do extrativismo. Além disso, os povos Tupi, que sempre viveram em aldeias independentes com algumas centenas de indivíduos, sem participar de unidades políticas ou territoriais de maior escala, praticavam uma agricultura de roça e queima em pequena escala que produzia uma quantidade considerável de alimentos adicionais, como mandioca, milho e amendoim. A grande demora em matar e devorar os prisioneiros, neste sentido, atuava em sentido contrário ao da maximização da busca de proteínas. A antropofagia, portanto, é um fenômeno cultural que apenas pode ser entendido no contexto da singularidade das crenças locais sobre a absorção da força e das virtudes do ser que estava sendo comido (cabe lembrar que a onça também era devorada de maneira ritual).

Em resumo, para não alongar demais este artigo, quando há pouco mais de 500 anos ocorreu uma segunda invasão exógena da Mata Atlântica – no momento em que a fissura do Atlântico foi vencida por barcos europeus – os novos invasores não encontraram uma população de “amantes da natureza, incapazes com certeza de maltratarem as fêmeas ou de poluir o rio, o céu e o mar”, como na canção de Jorge Benjor, mas sim populações humanas cuja cultura material e espiritual, bastante singular, havia sido capaz de estabelecer um grau consideravelmente eficaz de conhecimento e relacionamento com a Mata Atlântica e seus recursos.

Os cronistas das primeiras décadas, como o jesuíta Leonardo Nunes, falaram de indivíduos dotados de grande saúde e força física, como no caso de um grupo de sete canoas que perseguiu uma caravela portuguesa remando durante três horas sem parar! A capacidade de sustentar-se através da relação com os recursos da natureza, portanto, parecia bastante eficiente. Apesar do impacto ambiental das aldeias Tupi não ter sido irrelevante, considerando os efeitos agregados da caça permanente e das queimadas para a agricultura e a abertura de aldeias/caminhos, tampouco se poderia chamar o seu modo de vida de insustentável. A população total das aldeias indígenas do litoral atlântico, no momento de chegada dos europeus, foi calculada em um milhão de indivíduos. A simplicidade material dos seus padrões de consumo, no entanto, permitia que cada abertura de floresta para agricultura se desse em escala pequena, cerca de um hectare. O tempo de recuperação da floresta após o uso agrícola do solo, por outro lado, era bastante grande, sendo calculado por Dean entre 20 e 40 anos. A economia extrativa e agrícola dos Tupi, dessa forma, não chegou a inviabilizar a integridade da floresta ou diminuir drasticamente a sua cobertura, como veio a acontecer nos séculos posteriores à chegada dos europeus.

Um historiador não deve errar datas. Mas quando isso acontece é importante ter a humildade de corrigir. Na minha primeira coluna, por um lapso, afirmei que A Ferro e Fogo foi publicado originalmente nos Estados Unidos em 1994. Na verdade a publicação efetiva ocorreu em 1995. Esse detalhe não invalida, é óbvio, as afirmações que fiz na coluna. Mas o correto é que estamos rememorando em 2004 os dez anos da morte de Warren Dean. No próximo ano, 2005, estaremos comemorando os dez anos da publicação do seu livro sobre a história da Mata Atlântica

*Editado às 00h45, do dia 18/03/2019, para melhoria da diagramação e recorte de fotografias. O texto não foi alterado.

 

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Comentários 1

  1. MICHELLE ARAÚJO diz:

    valiosíssimo artigo. Bem explicativo, leitura de fácil compreendimento. Me ajudou bastante a entender a leitura do livro. Gratidão!