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Eu também tenho um sonho

Eu tenho o sonho de um mundo com uma economia estável, abandonando o objetivo obsoleto do eterno crescimento, que maltrata o nosso planeta.

14 de junho de 2011 · 13 anos atrás
  • Fernando Fernandez

    Biólogo, PhD em Ecologia pela Durham University (UK). Professor do Departamento de Ecologia da UFRJ, trabalha com Biologia da Conservação.

 No dia 28 de agosto de 1963, nas escadarias do Memorial de Lincoln em Washington, Martin Luther King falou para duzentas mil pessoas e para a História. Ele falava da possibilidade de brancos e negros um dia viverem em paz, nos Estados Unidos ainda divididos por um vergonhoso racismo. Depois de um começo contido, ele foi se empolgando aos poucos, crescendo em entusiasmo, e sua fala foi se transformando em um emocionado compartilhamento dos seus sonhos com a multidão. Talvez nada expresse melhor isso do que uma das várias frases maravilhosas que deram o nome pelo qual o discurso se imortalizou: “Eu tenho um sonho de que meus quatro filhos pequenos irão um dia viver numa nação onde eles não serão julgados pela cor de sua pele, mas pelo conteúdo do seu caráter.”

Nós, pessoas comuns, provavelmente nunca chegaremos a ter a inspiração de um Martin Luther King, ou sua importância na história. Mas qualquer pessoa – eu, você, qualquer um de nós – também tem direito a ter um sonho. Eu também tenho o meu.

O crescimento, objetivo de um mundo que não existe mais

Eu tenho o sonho de um mundo com uma economia estável, abandonando o objetivo obsoleto do eterno crescimento.

“A idéia da necessidade de crescimento, progresso, tornou-se um dogma que pouquíssimas pessoas sequer se atrevem a questionar. Nascia o que o famoso zoólogo Konrad Lorenz chamou, há quase três décadas, de “a falsa religião do progresso.”

Durante a maior parte da história humana, a nossa espécie se expandiu pelo nosso planeta. Se expandiu em todos os sentidos – na área ocupada por nós, nos nossos números, no tamanho das economias, no estrago e na quantidade de lixo que produzimos. Durante milênios, isso pareceu perfeitamente razoável: afinal de contas havia vastas regiões do planeta ainda pouco exploradas, que a expansão da população e da economia iam nos empurrando para ocupar. Nessas circunstâncias, e numa época em que recursos naturais eram ainda abundantes em relação às nossas demandas, é bastante fácil de entender que em nossa cultura o crescimento tenha passado a ser considerado algo bom por si mesmo. O mesmo ocorreu com a noção de progresso, uma palavra muitas vezes associada ao crescimento. Em seu sentido original “progresso” quer dizer “ir para a frente” – o que torna inevitável que progresso nos pareça bom, se considerarmos que essa é obviamente a única direção em que nós, humanos, temos facilidade de andar. Se você pensar bem, no entanto, um caranguejo talvez achasse “ir para o lado” um discurso bem mais atraente.

Com isso tudo, a idéia da necessidade de crescimento, progresso, tornou-se um dogma que pouquíssimas pessoas sequer se atrevem a questionar. Nascia o que o famoso zoólogo Konrad Lorenz chamou, há quase três décadas, de “a falsa religião do progresso”. Na nossa relação com a natureza, a tradução disso é a “mentalidade de fronteira” – a maneira de pensar que diz que o nosso destino é crescer para sempre, o planeta é algo a ser conquistado, e a natureza uma eterna fornecedora de recursos naturais que podemos usar à vontade.

A maneira de pensar de muita gente ainda não mudou – mas o planeta sim. O nosso planeta, que antes parecia tão vasto, hoje parece pequeno. Pequeno, superpovoado, abarrotado, maltratado, poluído e superaquecido. Nas últimas fronteiras naturais que restam, a devastação avança em escala gigantesca a cada ano. As terras virgens, a água, as áreas livres de poluição, os recursos pesqueiros, a biodiversidade, diminuem cada vez mais. Depender cegamente da tecnologia para sair dessa enrascada seria um caminho suicida, porque a tecnologia, ao permitir que estendamos alguns limites e continuemos crescendo, só nos faz dar de cara mais dolorosamente com outros limites.

A equação é simples: a nossa espécie, que um dia foi mais uma humilde espécie entre tantas outras, cresceu demais e o planeta já não aguenta mais nossas agressões em tão grande escala. Até o clima não aguenta mais. Poucas décadas atrás, o clima era simplesmente um dado, uma coisa que estava lá, do jeito que sempre foi (pelo menos na escala de tempo de nossas vidas), indiferente e imune a qualquer coisa que fizéssemos aqui embaixo. Hoje, até o clima estamos mudando, e é impossível superestimar a gravidade das consequências disso para a conservação da natureza e para a vida de todos nós e de nossos filhos e netos. O planeta nos diz “basta” com toda a força de seus pulmões entranhados do nosso CO2. Precisamos urgentemente ouvir. Precisamos urgentemente perceber o óbvio – crescimento é um objetivo de um mundo do passado.

Procura-se esperança

Uma economia estável, que substitua o objetivo do crescimento pelo da qualidade de vida das pessoas, pode ser um objetivo difícil de alcançar, mas é necessário para devolver à humanidade aquilo que mais nos faz falta – esperança.

“Hoje, o individualismo cada vez mais substitui a esperança de soluções coletivas, e a competitividade extrema parece ser o único caminho para o sucesso, com efeitos óbvios sobre os valores das pessoas.”

Olhe os livros e filmes de umas cinco décadas atrás, e os que se fazem hoje. Há muitas diferenças é claro, mas uma é particularmente chocante: a leveza. O mundo daquela época tinha seus próprios problemas, e grandes, é óbvio. Ganhamos em muitas coisas nessas décadas, claro, na duração de nossas vidas, nas conquistas de muitos direitos humanos, na tecnologia a nosso dispor, no acesso à informação e por aí vai. Mas perdemos em muitas outras também, frequentemente mais difíceis de contabilizar. Há poucas décadas não se falava como hoje em perda de biodiversidade, colapso dos estoques pesqueiros, poluição, a grande mancha de lixo do Pacífico (de 1,5 milhão de Km2), desordem climática global, doenças emergentes, confrontos entre geração de energia e conservação, confrontos entre pressões sociais e ambientais, escassez de recursos e de água, competição cada vez mais feroz por tudo isso, vidas estressadas e agressivas, falta de perspectivas, desesperança. Um filme de Fellini hoje nos parece quase insuportavelmente idealista ou ingênuo. Quão imensamente triste isso é!

Hoje, o individualismo cada vez mais substitui a esperança de soluções coletivas, e a competitividade extrema parece ser o único caminho para o sucesso, com efeitos óbvios sobre os valores das pessoas. Somos bombardeados com a noção de que temos que aprender a nos tornar cínicos e dizer que a vida moderna é assim, que só pode ser assim.

Será? Uma economia estável nos devolveria algo impalpável, que não está no PIB, mas nem por isso é menos necessário – poder olhar para o futuro não como algo ameaçador, mas com esperança.

Algumas possíveis bases de uma economia estável

Para mim, uma economia estável do futuro, que possa reduzir a pressão sobre a natureza e gerar qualidade de vida para as pessoas por muitas gerações, precisa deixar de depender do crescimento alimentado pelo consumismo. Hoje a economia só consegue se manter atrás de uma corrida compulsiva para criar pseudo-necessidades, produzir para preenchê-las, descartar o mais rapidamente possível e produzir mais. Além dos efeitos ambientais já mencionados, é ilusório depender da indústria para a geração de empregos no futuro, como muitos países já descobriram, porque quanto mais a indústria se moderniza, mais ela se automatiza e menos empregos ela gera.

Uma economia verdadeiramente sustentável do futuro precisa antes de tudo se basear numa matriz infinitamente mais limpa do que a atual, aprender a reciclar tudo o que for possível, e mais importante ainda, utilizar tudo – dos objetos à energia – muito bem, abolindo qualquer desperdício. Mas sobre tudo isso já se escreveu muito, e prefiro falar sobre outros aspectos do meu sonho.

Uma economia do futuro precisa ser baseada principalmente em serviços, tendo como pilares centrais uma pequena coleção de atividades hoje consideradas secundárias: esporte, turismo, cultura, entretenimento e lazer.

“Uma economia do futuro precisa ser baseada principalmente em serviços, tendo como pilares centrais uma pequena coleção de atividades hoje consideradas secundárias: esporte, turismo, cultura, entretenimento e lazer.”

Pode parecer à primeira vista uma lista bizarra, mas o objetivo é claro: uma economia voltada não para o aumento contínuo da produção de bens, mas sim para melhorar a qualidade de vida das pessoas através de atividades econômicas de baixo impacto. Por exemplo, esporte pode parecer a mais estranha inclusão de todas nessa lista, mas atividades econômicas ligadas ao esporte têm várias características desejáveis. Primeiro, empregam diretamente muita gente; segundo, fornecem oportunidades de ascensão social que são raras em outras atividades; terceiro, são uma das bases de uma “indústria” gigantesca e potencialmente de baixo impacto, a do entretenimento. Além disso, esportes nada mais são que combates ritualizados, e quando alguém está na arquibancada torcendo por seu time, está sublimando seus instintos agressivos, ao invés de usá-los de uma de tantas maneiras piores.

Turismo também é uma atividade que emprega muita gente, frequentemente mão-de-obra local, de todos os níveis de qualificação. Além disso, quanto mais frequentes se tornam os contatos entre pessoas de vários locais, quanto mais as pessoas conhecem outras culturas e valores, mais tendem a diminuir, ao longo do tempo, a xenofobia e o racismo. O turismo, claro, é um grande produtor de gás carbônico e de efeito estufa com as viagens intercontinentais, e precisa de uma ajudinha da tecnologia para ser sustentável. Mas o ecoturismo, em particular, se administrado corretamente, poderia ainda ser uma atividade verdadeiramente – não apenas pretensamente – sustentável, permitindo fazer conservação da natureza. Permitiria ainda ajudar a cultivar a biofilia nas pessoas, através do contato próximo com animais e plantas, coisa cada vez mais difícil de obter no Mundo atual (ver minha crônica “Por que conservar a natureza afinal?”, aqui em ((o))eco).

Quanto à cultura, entretenimento e lazer, são consequências naturais da automação industrial, que deveria permitir que as pessoas tivessem cada vez mais tempo para atividades criativas, como defendido por Domenico De Masi. Nós deixamos de nos permitir este tempo por causa da nossa louca corrida para atender a todas as pseudo-necessidades do consumismo. Se conseguirmos nos livrar delas, veremos que é possível obter esse tempo, e que isso resultará numa maciça geração de emprego para bilhões de pessoas. A cultura tem a vantagem adicional de que, assim como a educação – que não é apenas o pilar de uma economia, é o pilar de qualquer economia – ajuda as pessoas a entender o Mundo. Isso é essencial se queremos mudá-lo. Além disso, cultura, arte, entretenimento em geral, são atividades que permitem a quem os pratica desenvolver explosivamente os potenciais de cada um, como seres humanos capazes de atividades criativas e desafiantes, que fazem cada um tirar o melhor de si. Atividades assim geram vidas mais gratificantes para quem as pratica, e seres humanos melhores uns para os outros.

A mudança cultural necessária

Para isso tudo precisamos, claro, de uma profunda mudança cultural. Eu tenho o sonho de que os filhos que um dia terei viverão num mundo onde as pessoas não vão ser avaliadas pelo que elas têm, mas sim pelo que elas são. Um mundo assim, pós-consumismo, iria tender a aumentar a distribuição de renda e justiça social, pois a procura insaciável por possuir sempre mais bens materiais é a causa fundamental de todos os mecanismos concentradores de renda. Por sua vez, a maior distribuição de renda permitiria fazer que a cultura, a arte e o entretenimento chegassem a cada vez mais gente, dando origem a um círculo virtuoso.

Mas e quanto ao papel da tecnologia e da indústria em um mundo estável? Será que o gigantesco complexo tecnológico-industrial mundial ficaria condenado ao sucateamento em uma economia cuja produção de bens estivesse voltada a atender necessidades, mas não mais as pseudo-necessidades consumistas como hoje? Não, eu penso que a tecnologia e a indústria apenas seriam usadas para coisas melhores. Em primeiro lugar, todas as atividades que citei acima usam tecnologia, embora nem sempre para a produção de bugigangas materiais. Em segundo lugar, a tecnologia tem um imenso desafio para as próximas décadas – mitigar os efeitos da desordem climática global, e adaptar absolutamente tudo – nossos modos de geração de energia, nossa eficiência energética, nossos transportes, nossas casas, nossos modos de produção – a um novo mundo de baixa emissão de CO2. Esse desafio deve empregar centenas de milhões de pessoas e exigir o melhor da criatividade e inventividade humanas. No mundo com o qual eu sonho, precisamos, sim, de tecnologia avançada. Mais que nunca na verdade – mas usada para tornar o mundo mais limpo, não mais sujo.

É isso, e não mais o crescimento, o que eu hoje chamaria progresso – ir para a frente, ir na direção onde precisamos ir.

Apenas um sonho?

Não tenho nenhuma pretensão de que isso seja uma proposta completa de uma nova economia. É só um esboço, um vulto, uma visão imprecisa. Mas sonhos são assim. E vale a pena sonhar este sonho? Prefiro acreditar que sim. Como diz uma música que representa maravilhosamente aquele idealismo que tanto nos faz falta,


Você pode dizer que eu sou um sonhador
Mas eu não sou o único
Eu espero que um dia você se junte a nós
E o mundo será um só
(John Lennon, “Imagine”)

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Comentários 1

  1. Muito bom. Sobre esse assunto, recomendo o livro "O decrescimento", do economista Nicholas Georgescu-Roegen.