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As flores africanas de Nieuwoudtville

Ecoturismo na África não é apenas sobre elefantes e leões. O turismo botânico também gera empregos e promove a conservação no sul do continente.

22 de abril de 2009 · 15 anos atrás
  • Fabio Olmos

    Biólogo, doutor em zoologia, observador de aves e viajante com gosto pela relação entre ecologia, história, economia e antropologia.

Clique e confira imagens das riquezas naturais da África do Sul. (Fotos: Fábio Olmos)
Clique e confira imagens das riquezas naturais da África do Sul. (Fotos: Fábio Olmos)

A África do Sul é famosa por seus parques e reservas, tanto nacionais como provinciais, que incluem alguns dos destinos ecoturísticos mais conhecidos do mundo. O país é pioneiro em metodologias como translocações, reintroduções de animais, restauração de habitats e há uma forte participação do setor privado em iniciativas que geram conservação e dão lucro, de reservas privadas a concessões turísticas em reservas públicas.

A maioria dos brasileiros que visita o país escolhe como destino algum parque para observar os famosos Big Five (Cinco grandes*), visita a agradável Cidade do Cabo e arredores, e talvez faça um cage-diving (mergulho dentro de uma gaiola reforçada) com tubarões-brancos em False Bay ou Gansbaai ou vá surfar nas belas praias que vão do Cabo a Kwazulu-Natal.

O que muitos não sabem é que o país abriga uma das maiores riquezas botânicas do planeta, incluindo os hotspots exclusivos do Fynbos ou Região Florística do Cabo, a menor das seis regiões florísticas do planeta. Um tour por esta diversidade está acessível aos visitantes do fabuloso Kirstenboch National Botanical Garden, um dos mais aprazíveis locais de Cape Town.

Além de combinar apresentações de música, estufas e canteiros com espécies de todos os biomas do país, observação de pássaros, exposições de arte e bons restaurantes, as dezenas de famílias fazendo piqueniques com suas crianças brincando nos gramados me fazem pensar no que seria possível no Brasil urbano se áreas verdes recebessem a atenção merecida.

Um hectare de Fynbos pode ter centenas de espécies de arbustos e ervas, muitas com flores fantásticas, uma inesperada diversidade crescendo sobre solos pobres e afloramentos rochosos. Neste ambiente, incêndios naturais são tanto um fato da vida como uma necessidade para que algumas plantas, como as proteas, possam se reproduzir. As semelhanças, tanto fisionômicas como ecológicas, entre o Fynbos e os campos rupestres brasileiros são evidentes, embora eu desconheça trabalhos que as tenham analisado. Fica aqui a dica.

Alguns dos melhores exemplos do Fynbos podem ser encontrados próximos da Cidade do Cabo, como no famoso Cape Point & Table Mountain National Park, certamente destino de muito brasileiros. Ali, os que olham através de False Bay verão o imponente maciço do Kogelberg, com paredões quase verticais que chegam ao mar. A estreita estrada que o contorna permite boa visão das muitas baleias-francas que ali se reúnem para reproduzir, e acesso ao excelente Harold Potter National Botanical Garden, em Betty’s Bay. Por sinal, pertinho de uma colônia de pingüins que anos atrás sofreu com o apetite de um leopardo.

Alguns devem ter percebido que até agora mencionei dois “jardins botânicos nacionais” e estranhado, já que o Brasil têm apenas um que mereceria este nome (no Rio de Janeiro). A África do Sul tem oito espalhados pelo país, uma rede ainda em crescimento que pretende ser representativa da riqueza botânica e ecológica do país. Esta é administrada pelo South Africa National Biodiversity Institute. Os sul-africanos não batizaram seu instituto responsável pela biodiversidade com o nome de um suposto ecologista.

Um dos mais novos jardins botânicos sul-africanos, Hantam está em uma vila de, talvez, 2 mil pessoas chamada Nieuwoudtville, a “apenas” 360 quilômetros da Cidade do Cabo. Apenas porquê as estradas sul-africanas são excelentes e, a rota, interessantíssima.

Nieuwoudtville está no Bokkeveld Plateau, colonizado nos anos 1700 por voertrekkers, que batizaram a região devido à abundância de antílopes e zebras que ali existiam. A maioria foi eliminada para dar lugar a fazendas, mas algumas fazendas de caça e manejo estão recompondo manadas de algumas espécies.

O Bokkeveldt está na fronteira entre o Karoo semi-árido e o Fynbos, de clima mediterrâneo. Juntamente com uma geologia que combina xistos, arenitos, depósitos glaciais e depósitos de lava, e o bom e velho tempo evolutivo, o resultado é uma flora que inclui um mínimo de 1.350 espécies, com 80 são endêmicas do Bokkeveldt. Muitas espécies têm bulbos que desabrocham após as primeiras chuvas. Daí Nieuwoudtville ostentar o título de Capital mundial do Bulbo.

A flora local ostenta um número incomum de flores que, aos olhos humanos (e de seus polinizadores), são muito atraentes. Estas cobrem a paisagem, lembrando quadros de Monet, durante maio-outubro, com pico em julho-setembro, e são um dos grandes espetáculos naturais do continente, atraindo visitantes sul-africanos e estrangeiros que se dedicam a fazer coleções de flores com suas câmeras digitais (que revolucionaram o hobby da observação de flores), observar aves, praticar esportes de aventura e degustar a ótima culinária local.

Para facilitar a vida dos adeptos do self-service há livros e guias regionais, não só sobre Nieuwoudtville como outras partes do país, que permitem a qualquer visitante identificar as flores que encontra. Para os que preferirem, também é possível contratar excursões guiadas.

De fazenda a parque

Que as flores sejam o grande atrativo turístico da região se deve à história de Glenlyon, a fazenda que em 2007 se tornou o Hantam National Botanical Garden. Com séculos de idade, Glenlyon eventualmente foi herdada por Neil MacGregor. Criador de carneiros que também apreciava flores, MacGregor percebeu que áreas de onde excluía seus animais mostravam menos flores que as que sofriam pastejo e desenvolveu um manejo que imitava as condições que prevaleciam quando antílopes e zebras existiam na região, com rotação de pastagens e permitindo o pastejo apenas depois que as plantas tivessem liberado suas sementes.

Ao contrário do padrão dos pecuaristas brasileiros, MacGregor buscou, e conseguiu, conciliar sua atividade econômica com a conservação da biodiversidade. E foi além.

Glenlyon promoveu os primeiros tours de observação de flores já em 1960, ganhando reputação internacional ao longo das décadas seguintes e atraindo visitantes ilustres. Em 1991 a BBC filmou ali parte do genial “A Vida Secreta das Plantas”, com Sir David Attenborough. Sir Ghillean Prance, diretor do Kew Gardens, ao visitar Glenlyon, declarou que “esta fazenda é um tesouro botânico de importância internacional”.

Ao contrário do que costumamos ver por aqui, esta importância não ignorada pelo governo. Quando os herdeiros de MacGregor decidiram não seguir a carreira de fazendeiros a fazenda foi comprada pelo governo sul-africano em 2007 e transformada em um dos jardins botânicos nacionais. A compra foi viabilizada com recursos vindos de ONGs e do Department of Environmental Affairs and Tourism, cujo nome mostra uma associação que aqui ainda não fizemos.

Glenlyon não foi a única iniciativa para conservar a flora local. Em 1974 foi criada a Nieuwoudtville Wildflower Reserve, onde vi o teste de metodologias para excluir plantas invasoras vindas pastagens próximas, e a maioria das fazendas, que também trabalham com turismo, adota práticas que conciliam a criação de ovelhas com a conservação das flores.

Quem visita a minúscula Nieuwoudtville verá que as flores não são o único atrativo. Há várias opções de trilhas a serem feitas a pé, motocicleta ou com 4×4 (a cênica estrada de terra até Clamwilliam é fabulosa tanto para flores como aves) e paisagens incríveis, como na vizinha reserva de Oorlogskloof. Esta inclui propriedades privadas que pertencem à The Southern Africa Hiking Trail Owners Association. Algo para dar idéias ao pessoal daqui.

Resultado de uma combinação de small is beautiful com empreendedorismo são as muitas opções de turismo rural e hospedagem, incluindo charmosas casas do século XVIII, por preços convidativos e com tratamento extremamente gentil, onde a agropecuária é manejada de forma a conservar a flora nativa, considerada um ativo econômico.

Para os brasileiros pode parecer estranho que flores no “mato” possam ser importantes para uma economia regional. Para nós, “mato” é algo a ser derrubado, queimado e transformado em algo “produtivo”, reflexo de uma cultura de desprezo pelo meio natural.

O turismo botânico de Nieuwoudtville, que transforma flores silvestres em emprego e renda, também é explorado em países como a Espanha, Chipre, Reino Unido, Japão, Estados Unidos, Chile e Turquia, onde há tours organizados com participantes ávidos por observar e fotografar as raridades regionais de dia e pagar bons hotéis e restaurantes à noite.

Embora aqui haja guias de flores do Cerrado, da Chapada Diamantina e do sul da Cadeia do Espinhaço, este tipo de turismo ainda é incipiente. Tanto pelo desinteresse do brasileiro pela história natural como pelo pouco investimento em ecoturismo para estrangeiros que fuja do esquema banho de cachoeira, praia, bicho engaiolado e gente fantasiada de índio.

É interessante pensar como a cultura de um povo não apenas define sua relação com o mundo natural como as possibilidades econômicas desta relação. Algumas culturas apreciam e valorizam o mundo natural e a oportunidade de degustá-lo, o que sustenta uma parcela não desprezível de sua economia. Outros preferem queimá-lo e chamar de progresso.

Uma vila com economia movida a flores e onde implantar uma reserva e um jardim botânico são estratégia de desenvolvimento deveria fazer nossos desenvolvimentistas coçar a cabeça.

* Leão, elefante, rinoceronte, búfalo e leopardo.

Atalhos:

http://www.nieuwoudtville.com/
http://www.sanbi.org
http://www.botanicalsociety.org.za/publications/wildflowerguides.php
http://www.pacificbulbsociety.org/pbswiki/index.php/BokkeveldPlateau

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