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Todos os dias morre Juma

Onças-pintadas morrem todos os dias vítimas de caça, de perda de habitat, de ausência de políticas públicas efetivas, de indiferença.

Mirella Lauria D’Elia ·
24 de junho de 2016 · 8 anos atrás
Juma era mascote do 1º Batalhão de Infantaria de Selva do Exército. A onça foi abatida após ser exposta durante o revezamento da Tocha Olímpica em Manaus e escapar. Foto: Vandré Fonseca
Pele de onças-pintadas apreendidas em Mato Grosso. Foto: Ascom/Ibama/MT

Talvez a comoção que sucedeu  o trágico fim da onça-pintada Juma desperte a sociedade para os conflitos socioambientais brasileiros. Trabalhar as dimensões humanas da conservação e manejo de animais silvestres é mais do que necessário, é urgente.

Todo dia morre uma onça-pintada — pior, várias — em razão da ignorância de pessoas e comunidades que vivem próximas a esses grandes predadores sobre sua biologia, comportamento; sobre como é possível reduzir os conflitos diários decorrentes dessa convivência. Infelizmente, não adianta apontarmos nossos dedos, sentados em nossos sofás urbanos. É fácil julgar se você não vive a realidade dessas pessoas. Se quisermos uma saída, os maiores aliados serão a educação e o diálogo.

Todo dia morre uma onça-pintada em decorrência de pessoas que ainda insistem em abater esses indivíduos por prazer, por status, para aprisionar sua beleza singular em um tapete sob o qual jaz o escrúpulo humano. E não me venham com a história de que faz tempo que esse tipo de esse tipo de criatura não habita mais a Terra.

Todo dia morre uma onça-pintada atropelada por excesso de velocidade, por falta de reconhecimento de governos da necessidade de passagens de fauna nas estradas para a segurança de pessoas e animais;

Todo dia morre uma onça-pintada para que seu filhote seja feito de mascote, vendido numa fronteira do Brasil, principalmente se for melânico, criado por comunidades ribeirinhas até que se torne um problema para a segurança pública e para os órgãos ambientais. Há dezenas de grandes felinos em condições inadequadas de cativeiro precisando de destinação, muitas vezes insalubres, apesar dos esforços daqueles que se dedicam a melhorar suas condições de vida. Verba e estrutura nunca chegam.

Todo dia morre uma onça-pintada quando esta é subtraída da natureza e fica incapacitada de exercer seu papel biológico. Salvo os programas de cativeiro onde esses indivíduos são incluídos em planos de manejo sérios, que visam a conservação da espécie.

Para que fique claro, cabe a sociedade demandar esclarecimentos e cabe ao poder público apurar o acidente. Em qualquer esfera e instituição, seja ela pública ou privada, condutas abusivas precisam ser combatidas, revisadas e corrigidas. Nem sempre exibição de animais em público será sinônimo de conservação. Mas acredito que um animal acorrentado e exibido num evento desta magnitude foi um despropósito para a proteção da onça-pintada no Brasil. Sinto vergonha de que o mundo tenha presenciado tamanha infelicidade.

Precisamos nos educar e nos enxergar como sentinelas de nossas próprias riquezas e não como seus algozes. E me refiro a cada um de nós.

Não é a primeira vez que nossa fauna tem sua imagem utilizada como símbolo de eventos desportivos. Fuleco, o tatu-bola, foi mascote da Copa do mundo FIFA 2014. Agora Ginga, aqui representado por Juma, enfrentou um trágico fim ao “receber” a tocha olímpica das Olimpíadas Rio 2016. Diariamente usamos, abusamos, subtraímos e depredamos nossa biodiversidade. E me assombra que eventos de visibilidade internacional como esse, que utilizam a nossa fauna como símbolo, que vendem sua imagem embutida em pelúcias, chinelos, camisetas, bonés, chaveiros e toda sorte de souvenires, repassem uma fração muito pequena equivalente das suas vendas para auxiliar projetos de conservação de espécies ameaçadas de extinção.

O tiro desferido contra Juma é a metáfora perfeita do dano que praticamos contra nossa biodiversidade. E a mudança cabe a todos nós. Espero que hoje encontre a liberdade merecida no lugar do qual nunca deveria ter saído, Juma!

E para aqueles que acreditam que o ocorrido foi uma exceção, compartilho imagens de absurdos cometidos contra onças-pintadas no Brasil. Nós que amamos e trabalhamos com esses magníficos animais precisamos engoli-los no nosso dia a dia.

Onça-pintada encontrada em cativeiro ilegal. Foto: Ibama
Onças caçadas: cabeças e caudas estavam sendo transportadas para serem exibidas como troféus. Foto: Divulgação/PRF Onça-pintada encontrada em cativeiro ilegal. Foto: Ibama
Segundo os policiais, tratava-se de um animal adulto. A onça-parda está na lista de animais em extinção do ICMBio na categoria vulnerável. Crédito: PMA-MS

 

Apesar do desabafo, espero que todos os projetos sérios de conservação de onça-pintada de cativeiro e vida livre sejam amplamente divulgados e apoiados. E que suas equipes sejam reconhecidas. Convido cada um dos envolvidos a formar uma corrente positiva para divulgar seus trabalhos pela América Latina, que conte como a onça-pintada transforma a vida de quem se dedica a salvá-la. Por mais respeito pela onça-pintada!

 

 

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  • Mirella Lauria D’Elia

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Comentários 6

  1. Andreia diz:

    Claro que isso tudo acontece, e muito, principalmente pela falta de estrutura que o governo fornece para coibir a caça e proteger de fato as áreas protegidas.
    A minha pergunta é: A lei permite, que estes animais sejam mantidos em cativeiro com este s objetivos: Usá-los como mascotes e treiná-los para desfile acorrentados? Por mais que "não possam mais retornar à natureza"!!!


  2. dayane diz:

    Ola essa pagina é um projeto de onças aqui em manas são onças bebês que não pode voltar pro seu habitat natural queria que você conhecesse esse trabalho e lindo coisa que nenhuma ONG daqui de Manaus faz


  3. Cláudio Maretti diz:

    Juma (onça-pintada) e nós? Todo dia morre uma ou mais Jumas ou outras onças-pintadas, veados, macacos, pássaros, tatus, pirarucus, pintados, baleias, tubarões, tartarugas-da-Amazônia, tartarugas-marinhas… mais que nada pela perda e degradação de habitats (desmatamento, barragens e outros tipos de conversação de ecossistemas, usos ilegais ou insustentáveis de pesca, caça, retirada de madeira etc.) e carência de parques e reservas e outras categorias de unidades de conservação e outros tipos de áreas protegidas . E todos temos a ver com isso, quando consumimos alimentos, energia, materiais de construção, jóias… sem procedência clara ou de produção não sustentável, e quando votamos.


    1. Cidadão Normal diz:

      O Sr. sabe a procedência real do seu caríssimo notebook, Sr. Maretti? Sabe se foi feito explorando mão de obra na Ásia, ou se foi feito com minérios de origem ilícita? Sabe se houve sonegação de tributos ao longa da cadeia? Sabe se a loja em que adquiriu tem alvará? Sabe se a agencia de marketing da empresa não faz caixa 2? Sabe tudo disso?


  4. sousa santos diz:

    Desculpe discordar . Mas isso nada tem a ver com falta de dialogo ou educação.
    Isso é criminalidade explicita . Ou vai me dizer que gente com acesso a internet , armas caras , etc , não é informado.
    Muitos dos animais mortos tem vídeos expostos na internet com imagens feitas por celulares caros.
    Quem faz isso não é coitadinho não .É bandido mesmo. Muitas vezes com conivência de policia , políticos , empresários , fazendeiros , isso se não feito por eles próprios.