Análises

Rosemary e Peter Grant: evolução em tempo real

Uma seca exterminou quase toda a população de testilhões da ilha Daphne Maior, em Galapágos. Mas parte sobreviveu, por causa do formato do bico.

Marcos Rodrigues ·
25 de junho de 2015 · 9 anos atrás

*Texto originalmente publicado no site Vida das Aves

Peter e Rosemary Grant. Foto:
Peter e Rosemary Grant. Foto:

Às vezes, com um pouco de sorte, paciência e muito suor, podemos observar a evolução de uma espécie em poucos anos, praticamente em tempo real. Para ilustrar um exemplo desse fenômeno temos que ir para um local bem conhecido dos biólogos e naturalistas.

Galápagos. Sim, Galápagos! O mesmo arquipélago visitado por Charles Darwin e cantado em verso e prosa pelos biólogos. Mas desta vez vamos às Galápagos como elas são hoje.

Você está planejando sua viagem para as Ilhas Galápagos? Talvez, como biólogo, ou ambientalista, ou como amante da vida outdoor, ou simplesmente como turista mesmo, você deveria ir. Você não tem certeza de como chegar ao arquipélago? É simples. Seu primeiro destino é o Equador. Depois de aterrissar em Quito, ir para as ilhas é fácil. O arquipélago está localizado a cerca de 1.000 km da costa do Equador e talvez a maneira mais confortável de viajar seja embarcando em um avião, pois viajar de barco pode demorar pelo menos três dias. Mas viajar de barco tem seu simbolismo romântico, afinal, Charles Darwin aportou em Galápagos em 16 de setembro de 1835 na ilha de San Cristóbal, a mesma ilha onde existe hoje o aeroporto. Já de cara, San Cristóbal é a ilha das famosas tartarugas, das iguanas marinas e da grande colônia de leões marinhos.

Leões marinhos em San Cristóbal, Galápagos. Foto:
Leões marinhos em San Cristóbal, Galápagos. Foto:

O arquipélago é composto por 13 ilhas principais de origem vulcânica, das quais apenas cinco são habitadas. Formado entre três e cinco milhões de anos atrás, as Ilhas Galápagos são relativamente jovens. As ilhas estão situadas ao longo de um manto quente da crosta terrestre que gera atividade vulcânica. Erupções se empilham em erupções anteriores e eventualmente chegam à tona do oceano formando as ilhas. Essas são ilhas oceânicas, desprovidas totalmente de vida assim que foram formadas, o que nos faz deduzir que todos os seres vivos ali encontrados hoje, ali chegaram vindos de alguma maneira do continente. Em geral, cada ilha é criada por um grande vulcão cujas erupções derramam lava basáltica e expandem suas margens. Nos últimos 200 anos, as ilhas experimentaram cerca de 50 erupções. Tenha isso em mente quando estiver passeando entre as tartarugas.

Rosemary e Peter Grant são dois pesquisadores da Universidade de Princeton que visitam a ilha Daphne Maior anualmente, faça chuva ou faça sol desde 19731. Daphne Maior é uma das menores ilhas do arquipélago, com apenas 0,34 km2. Na verdade Daphne Maior é a boca de um antigo vulcão (o clássico cone piroclástico): uma montanha de pedra formada por uma erupção vulcânica, nada mais.

A pequena ilha tem cerca de três quartos de um quilômetro de comprimento e 120 m de altura, e jamais teve um assentamento humano. Pudera. A ilha é um ambiente hostil e pouco acolhedor onde não existe uma árvore sequer. O centro é uma cratera que é periodicamente ocupada por atobás (Sula nebouxii). Topograficamente há três habitats: a inclinação interior do cone do vulcão, a inclinação exterior, e uma área no lado sul com uma inclinação mais suave, onde a vegetação arbustiva e rala cresce no pequeno platô em direção ao centro da cratera.

Rosemary e Peter chegam à ilha numa pequena lancha a motor. Não há um porto na ilha. Não há nada na ilha. Os Grant apenas encostam a lancha próximo a um ponto tradicional, isto é, um paredão de pedra onde eles já esculpiram alguns degraus para ter acesso a uma encosta menos íngreme. Tudo é feito sem nenhuma infraestrutura. Os pesquisadores e os estagiários desembarcam e transportam os equipamentos de mão em mão, e assim vão subindo o cone de pedra, o antigo vulcão, frente ao inexorável risco de queda sobre o mar translúcido de Galápagos. É uma suadeira até chegar ao cume. Mas tudo vale a pena quando a alma não é pequena. Do alto do platô se tem uma esplêndida visão das outras ilhas do arquipélago eternamente envolvidas pelo azul marinho do Oceano Pacífico.

Daphne Maior em Galápagos. Foto:
Daphne Maior em Galápagos. Foto:

Captura

Depois que atingem o platô, é hora de montar as redes-de-neblina, essas maravilhas tecnológicas inventadas pelos japoneses. Redes-de-neblina são redes feitas de nylon usadas por ornitólogos para capturar aves. Essas redes são suspensas entre duas estacas, de forma semelhante a uma rede de vôlei, mas que caem até o chão. Quando bem colocadas tornam-se quase invisíveis, e assim uma ave que venha voando naquela altura não a percebe e cai sobre bolsos frouxos formados pela rede. Uma ave na rede é o delírio do ornitólogo. Não só ele pode agora manusear a ave, observar a beleza de suas penas e a delicadeza do seu corpo (a maioria das aves capturadas tem menos de 40 gramas). Mas o mais importante, o ornitólogo pode tirar medidas das partes do seu corpo: bico, asa, pernas, cauda. Também pode registrar se a ave está mudando de penas, ou se tem a placa de incubação no seu ventre, sinal de que está chocando ovos. Uma infinidade de informações pode ser registrada com uma ave na mão. Mas o trabalho é pesado.

Sob o sol equatorial, Rosemary, Peter e seus ajudantes montam dezenas de redes entre os parcos arbustos que crescem na ilha. Na verdade, todos os três habitats da ilha têm solos rasos, poucas espécies de plantas anuais e perenes, estacionais e deciduais (perdem as folhas ou secam durante a estação seca) e aglomerados de Opuntia, um cacto arbustivo onde os tentilhões nidificam. Tentilhões?

Sim, tentilhões. Os famosos tentilhões de Darwin (popularizados com esse nome pelo ornitólogo britânico David Lack2).

Os tentilhões de Darwin são cerca de 15 espécies de pequenas aves muito semelhantes aos nossos papa-capins da família Emberizidae, como por exemplo o curió: corpo atarracado e bico geralmente cônico usado para triturar sementes. Mas na realidade, algumas evidências sugerem que os tentilhões sejam considerados como sendo sanhaços modificados (da família Thraupidae) e assim colocados dentro de uma subfamília específica, a Geospizinae.

Peter e Rosemary Grant trabalhando em Galápagos. Foto:
Peter e Rosemary Grant trabalhando em Galápagos. Foto:

Rosemary e Peter foram pela primeira vez à ilha Daphne Maior a fim apenas de conhecer quais espécies de aves poderiam viver num ambiente tão hostil. Descobriram que na ilha vivem duas espécies de tentilhões (que se reproduzem e nunca saem da ilha): o tentilhão terrícola Geospiza fortis e o tentilhão do cactus Geospiza scandens.

Biólogos se apaixonam por lugares, paisagens ou animais por motivos ainda não estudados detalhadamente. Sabe-se lá o que moveu Rosemary e Peter a permanecer nesta ilhota por tantos anos sob o sol equatorial. O fato é que desde 1973 Rosemary e Peter acompanham as populações destas espécies. Como é de praxe entre os ornitólogos, após capturar o tentilhão, colocam-no uma anilha (um anel em volta da perna) e fazem as dezenas de medidas já mencionadas. Esse anel leva um número e uma cor específica e assim funciona como uma carteira de identidade daquele indivíduo. Se essa ave for recapturada um dia ou observada, todos os seus dados serão conhecidos. Depois de colocar este anel na perna da ave, o animal é solto novamente no seu habitat. Rosemary e Peter fizeram isso por quarenta anos. A vantagem de trabalhar em Daphne Maior é o tamanho da ilha, reduzida a uma montanha que abriga menos de 60 espécies de plantas e pouca diversidade e abundância de insetos. As populações desses tentilhões raramente ultrapassam os 150 pares, e todos eles podem ser monitorados, com o uso das anilhas, do nascimento até a morte. Estes pequenos números populacionais tornam a análise de dados relativamente fácil e altamente confiável se o objetivo é determinar como os fatores ambientais afetam as características morfológicas dessas aves, e como a mudança no ambiente provoca mudanças na morfologia das mesmas.

Tentilhões

Tentilhão do cactus ([i]Geospiza scandens[/i]). Foto:
Tentilhão do cactus ([i]Geospiza scandens[/i]). Foto:

Os pesquisadores descobriram que a morfologia dos tentilhões varia naturalmente. Em uma população há indivíduos maiores e mais robustos (pesados), ou ainda indivíduos com comprimento e largura de bicos maiores, enquanto outros indivíduos são menores. Todos os parâmetros analisados por Rosemary e Peter variavam dentro de uma média para cada espécie. Isso é natural. Pense em você e no seu vizinho. Vocês são indivíduos completamente diferentes não é mesmo? Talvez ele seja mais gordo que você, mais alto talvez, e por aí vai. E você sabe que essas diferenças são hereditárias. Pense nos seus pais. Provavelmente você é mais semelhante aos seus pais do que a qualquer outra pessoa no mundo. O mesmo fenômeno ocorre com qualquer outra espécie. No caso dos tentilhões, há os mais gordinhos e mais bicudos, há os mais mirrados e de bico fino. Os pesquisadores ainda descobriram que o tamanho do corpo e do bico são características herdáveis, que passam de pais para filhos através dos genes. Ou seja, indivíduos maiores têm filhos grandes como eles. Na realidade, Rosemary e Peter também descobriram, após centenas de horas de observação, que tentilhões maiores e com bicos mais robustos da espécie Geospiza fortis eram mais eficientes para se alimentar das sementes duras e cheias de espinhos da erva do gênero Tribulus. Enquanto isso, os indivíduos menores e com bicos mais finos preferem se alimentar das sementes do gênero Cacabus.

Tudo estava indo bem, e quase tedioso, na ilha de Daphne Maior. Rosemary e Peter haviam estimado a população de Geospiza fortis em 1200 indivíduos e de Geospiza scandens em torno de 280 indivíduos. Eis que chega o dia do grande desastre.

Em 1977 uma seca avassaladora arrasou o arquipélago de Galápagos. Os arbustos murchavam a olhos vistos. A paisagem da ilha tornava-se cada vez mais cinza e desprovida de vida. O céu permanecia azul e inalterado, o sol aquecia a pedra exposta do vulcão e torrava miolos e entranhas de quem ali estivesse. Trabalhar sob o sol equatorial naquelas condições era um suplício. Os pesquisadores suavam e precisavam de muito mais água para aguentar aquele inferno. Tiveram que dobrar o estoque de água no pequeno acampamento, levando pesados galões morro acima e morro abaixo, o que os deixava exaustos. Foi um ano difícil. Na ilha de Daphne Maior, a seca exterminou quase todos os arbustos de Cacabus. As consequências para a população dos tentilhões foram desastrosas. Apenas 180 indivíduos de Geospiza fortis e 110 de Geospiza scandes sobreviveram até a chegada das primeiras chuvas. Mas quem foram os sobreviventes? Teriam eles características especiais?

Tentilhão terrícola ([i]Geospiza fortis[/i]). Foto:
Tentilhão terrícola ([i]Geospiza fortis[/i]). Foto:

Rosemary e Peter descobriram que apenas os indivíduos grandes e com bicos largos de Geospiza fortis haviam sobrevivido. Por quê? Pelo fato de que as sementes de Tribulus eram mais resistentes à seca, e no final daquela malfadada estação era tudo o que existia na ilha para os tentilhões comerem. A maioria dos tentilhões sobreviventes era de machos e, por isso, no ano seguinte houve uma intensa disputa entre eles pelas poucas fêmeas restantes. Mais uma vez, Rosemary e Peter puderam observar que somente os machos maiores, com bicos maiores haviam se reproduzido, deixando descendentes como eles: filhotes grandes e de bicos grandes. Bingo! Um episódio evolutivo mediado pela seleção natural havia sido testemunhado por Rosemary e Peter Grant em apenas um ano.

Evolução é isso. Evolução significa mudança na forma e no comportamento dos organismos entre gerações. As formas dos organismos, em todos os níveis (de sequências de DNA à morfologia macroscópica e até o comportamento social), podem ser modificadas daquelas de seus antepassados ao longo do tempo3. Rosemary e Peter calcularam que seriam necessários 23 episódios de seca como os de 1977 para transformar a população de Geospiza fortis de Daphne Maior em algo muito diferente do que é um Geospiza fortis, ou seja, levando-se em conta outros parâmetros, teríamos outra espécie!

Para saber mais

  1. Essa e outras incríveis histórias sobre evolução dos tentilhões das Ilhas Galápagos podem ser encontradas no livro de Peter e Rosemary Grant: “40 Years of Evolution: Darwin’s Finches on Daphne Major Island” publicado em 2014 pela Princeton University Press.
  2. David Lack é o ornitólogo britânico que escreveu um livro sobre os tentilhões de Galápagos e popularizou o nome ‘tentilhões de Darwin’. Veja: “Darwin’s Finches” publicado pela Cambridge University Press.
  3. Veja o livro de M. Ridley ‘Evolution’ publicado pela Blackwell./ Esta história também está magistralmente recontada no livro de Richard Dawkins ‘A grande história da evolução’ publicada pela Companhia das Letras em 2009.

 

 

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  • Marcos Rodrigues

    Doutor em zoologia pela Universidade de Oxford (UK). Hoje, é professor e pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais.

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