Análises

O Rio de Sangue que sai do Cerrado

O encanto do Cerrado sobre um biólogo em formação acaba substituído pelo pesadelo de manipular carcaças de animais mortos brutalmente.

Everton Miranda ·
2 de outubro de 2013 · 10 anos atrás
 Restos de luz na noite do Cerrado. Foto: Luiz Navarro
Restos de luz na noite do Cerrado. Foto: Luiz Navarro

Dia bom. Cerrado, céu azul. Recém acordado, abro a janela para ver a música do mundo. Aqui há sempre passarinhos cantando, todos, muitos, tantos, um bom ornitólogo poderia dizer um por um. Eu só ouço e acho tudo muito musical. Levanto, me alimento frugalmente, vou cuidar das coisas. Cartões de memória, pilhas, todos às dezenas, centenas, para suprir as armadilhas fotográficas.

Estou em um programa de estágio, num dos mais importantes parques de cerrado do Brasil. Serviços braçais simples, cuidar de câmeras, muita técnica e pouca biologia, mas não enjoa por que é tudo novo e eu trabalho com uma vista fenomenal para o parque. É tudo muito plano, então, uns dez metros acima da chapada já me mostram um bom pedaço desse mundão que é o Cerrado. Volta e meia passam uns bichos para me distrair, araras, curicacas, tucanos e periquitos no céu o tempo todo, emas passeiam pela frente do alojamento. Toda noite um cachorro do mato circula aqui, e a distância pode-se ver os veados campeiros. Na chegada, duas cotias cruzaram a frente do carro, lindas. Vim para cá lendo um artigo do George Schaller que comparava o parque ao famoso Serengueti. Se você não entende o que isso significa para um estudante de biologia, imagine que eu sou um nerd, Tolkien é correspondente de guerra,
e eu estou indo a Mordor para ajudar a destruir um Anel.

Serengueti não é aqui

“…descubro que o parque está morrendo. Caça, envenenamento e atropelamentos se intensificaram à medida que a ocupação do entorno tornou-se consolidada”

Mas os tempos aqui não são os mesmos. Chegando lá, descubro que não cabem mais as comparações com o Serengueti. Conversando descubro que o parque está morrendo. Caça, envenenamento e atropelamentos se intensificaram à medida que a ocupação do entorno tornou-se consolidada, e hoje o parque é uma sombra do que foi. Biólogos contam que num trecho percorrido regularmente onde antes observava-se cerca de quarenta veados-campeiros, hoje ele veem quatro. As profecias são de um cerrado vazio, com o vácuo evolutivo das interações ecológicas. Dispersão de sementes, herbivoria, predação e outros fatores fundamentais para manutenção de sua diversidade somem com os bichos. Hoje essa defaunação já se estabeleceu na Mata Atlântica, que lentamente se transforma num bioma a cada dia menos rico. Dormi com o amargo dessa informação.

Carcaças no carrinho

“Me assusto, cheiro de podre, sangue preto escorrendo pelo ralo, os bichos feios, estraçalhados, babando sangue, olhos leitosos, opacos.”

Acordo para o dia seguinte com a surpresa feliz de ver uma pegada de anta na soleira da porta. Chega uma estagiária correndo e diz que precisam de todo mundo. Um refrigerador descongelando ou algo assim. No refrigerador, está um queixada descongelando. Queixadas são criados em cativeiro, então poderia ser para consumo, apesar do tamanho excepcional do bicho. Mas não, o refrigerador está cheio de carcaças até a tampa. Me assusto, cheiro de podre, sangue preto escorrendo pelo ralo, os bichos feios, estraçalhados, babando sangue, olhos leitosos, opacos. Atropelamentos no entorno do parque. Explicam-me sobre o refrigerador e contam que temos que levar os bichos para outro, há uns duzentos metros dali. Luvas? Nem pensar. O chefe está com um problema na coluna. Eu sou o estagiário que se declarou muito rústico na sua carta de apresentações. Eu e o queixada, e um carrinho de mão. Pego o animal pelas pernas, jogo no carrinho, o bicho está meio duro, meio mole, devia estar descongelando lentamente há horas. Sangue viscoso, coagulado, pinga no meu pé, fezes pretas escorrendo. É só o primeiro, acumulo em cima dele uma capivara semiadulta, um veado com crânio desfigurado pelo impacto, e um tamanduá-bandeira, sem pelos em vários pontos pelo atrito com o asfalto. O medo da dor desses bichos me enfraquecer é maior do que de qualquer doença relacionada às carcaças.

Thoreau comenta as extinções dizendo que não gostaria que algum semideus tivesse, antes dele, tomado do céu as melhores estrelas para si. Ver esses bichos mortos é forte. Vim aqui esperando ver o poema perfeito, o céu estrelado. Dói onde é mais sensível. Coloco na pilha um cachorro do mato e um quati, para partir com a primeira carga do carrinho de mão. Ao chegar ao refrigerador que seria o destino dos bichos sou instruído a deixá-los no chão. Ao indagar sobre o destino final desses tristes símbolos insepulcros do descaso do Estado com a conservação da natureza, descubro que devem ficar ali para um experimento. Dieta de carnívoros, coisa muito séria pelo tom. Satisfeito com a explicação, vou buscar outra carrada de carniça. Filhotes de emas eviscerados vivos pela roda de um carro, um tatu empapado de sangue dentro de um saquinho preto, cotia, gambá, capivaras, mais duas. Uma sofreu um impacto tão grande das rodas de um carro que as unhas, pequenos cascos nessa imitação de ungulado, foram arrancadas dos dedos. Outros tatus, um tapiti, bichos ininteligíveis, estraçalhados, que não cumprem seus papéis ecológicos. O desmonte da natureza.

Descarrego e vou buscar os últimos dois volumes com as mãos. Lembro das palavras do chefe, ao terminar de me ouvir sobre o vazio das florestas atlânticas do Brasil. Me diz ele que é o mesmo destino do Cerrado: bichos poucos e arredios, extinções locais, grandes animais ausentes. Eu não quero acreditar. No refrigerador, resta um lobo-guará e um volume preto. Levo um em cada mão. O lobo-guará está dobrado, torcido, com as pernas longas destoando do círculo em que seu corpo se transformou. No caminho, seu pescoço semicongelado se estende e sua cabeça molhada de sangue toca minha perna pelo resto do caminho. Um lobo-guará, com sua postura elegante, caminhando pelos campos do Brasil central tem tanta nobreza. Seu sangue frio lambuza minha roupa, minha pele e minha mente.

Chegando ao novo refrigerador, verifico o saquinho preto, leve, quase insignificante. Abro: felpudo, cinzento, macio e infantil no meio dessa carnificina está um pequeno tamanduá-bandeira, os olhos fechados na paz da morte. A mãe pereceu sob as rodas de um carro, ele, não sei. Espero que tenha morrido sem dor. Começamos a ajeitar os bichos nas gavetas de uma geladeira velha, os pequenos apenas. Ao lado, o fundo de um refrigerador vaza água vermelha, e suponho que ali ficarão os bichos grandes.

Um saco de 100 quilos

“A forma do saco preto vai se assentando, parece familiar. Pode ser carne, um porco, um bezerro…”

Acomodados os bichos pequenos, abro o refrigerador grande. Um volume enorme dentro de um saco preto me espera lá dentro. Tentamos ajeitá-lo de qualquer jeito para permitir a acomodação dos outros animais, e logo percebemos que seria impossível, não importa a maneira ou força que façamos. Não quero pensar nesse bicho, não quero mais saber de morte por hoje. Ele pesa uns cem quilos. Com algum custo me ajudam a ajeitá-lo no carrinho, os quilos duros de bicho morto. Encaminho-o para o refrigerador quebrado, fazendo o caminho inverso, por que essa máquina ainda consegue manter uma temperatura de uns 15º C e há tempo para conseguir outro refrigerador até amanhã. Vou quicando o carrinho de mão pelo caminho, A forma do saco preto vai se assentando, parece familiar. Pode ser carne, um porco, um bezerro, um peixão. Mas parece familiar, algo naquele cheiro reflete um cheiro velho das visitas ao zoológico na minha infância.

Encosto o carrinho, ponho o bichão de pé e o viro delicadamente, equilibrando-o para a borda do refrigerador. Quando me inclino para pensar uma forma de escorregá-lo sem fazer muita força, toco o cotovelo no metal e levo um choque. Crispo as mãos no saco preto e o bicho escorrega violentamente para dentro, sem saco nem nada. O choque estava por vir: o bicho era uma onça-pintada.

Volto, triste, fatigado. Não quero saber como a onça morreu. Estou sujo de sangue e merda. Pego os restos de vísceras, os pedaços de sangue, patinhas de emas e todos os sacos pretos lambuzados para por fogo em tudo. Irônico é tentar por fogo em qualquer coisa no cerrado durante a estação úmida: impossível. Penso nos incêndios anteriores do parque, nos milhares de bichos queimados, tamanduás correndo em chamas, febre de fogo. Queimo tudo, com grande esforço. Agora eu sou cinzas, carniça, sangue e dedos queimados. Não sei mais do mundo.

Depois de um banho, sento-me para comer. O cheiro saiu do corpo, mas não da mente. Vem o recado que estão me chamando. Tinha um viveiro perto do local onde processávamos as carcaças, e é para lá que devo ir. Vou impaciente, imprudente, prestes a ser mal-educado. Abro a porta do recinto, entro e fecho. Dentro, estão três oncinhas. Louca brincadeira de um destino debochado. Correndo na minha direção, impossivelmente receptivas. Eu agacho e elas sobem em mim, umas nas outras, brincam, rolam, polpudas, quentinhas, vivas, quase sorridentes. Vejo aquilo que raramente sinto no trato pessoal com um animal: afeto. Me ensinaram que os bichos são feitos de vontade de comer e se reproduzir, e eu acho isso muito sincero e bonito. Se pensar diferente você vira um cientista meio bobo – a gente chama isso de “antropomorfizar” o bicho. Fui treinado para não fazê-lo, mas ali foi aquele afeto que se tem com criança mesmo. E penso hoje que se você perde isso é que vira um cientista meio bobo, que esqueceu a que veio e virou um burocrata. As oncinhas estavam sorrindo sim.

Volto para o alojamento. Eu não sei quando essas coisas vão mudar, mas há pressa. Conservação tem pressa. Posso ser só mais um universitário idealista, achando que o mundo vai mudar. Posso acabar em algum cargo público tentando resolver os meus problemas, mas quero mais do que isso. Eu quero escrever sobre um rio de sangue que sai do cerrado, e apodrece na lente do desenvolvimentismo, invisível e insepulto. Eu quero as oncinhas correndo livres por aí.

Enquanto termino de escrever na varanda, um par de olhos brilhantes cruza a noite, rumo a BR. Talvez pela última vez.

 

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  • Everton Miranda

    Biólogo e doutorando, admirador das feras soberbas da natureza, que acredita em cadeia alimentar de poder e glória.

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Comentários 1

  1. Dornelles diz:

    Triste e ao mesmo tempo nos faz despertar para a urgência de se conscientizar que uma vez perdidas, as espécies não voltam. Ser Biólogo é um misto de constante decepção e satisfação.