Análises

Uma Noite no Museu (Vivo)

Localizada no Japão, há quem chame a ilha Amami-ooshima de "Galápagos do Oriente", pois, isolada do continente desenvolveu fauna própria.

Elsie L Rotenberg ·
22 de agosto de 2013 · 11 anos atrás
Lidth’s Jay dormindo no alto de uma árvore. Foto: Elsie L Rotenberg
Lidth’s Jay dormindo no alto de uma árvore. Foto: Elsie L Rotenberg

Há quem chame Amami-ooshima de “Galápagos do Oriente” ou “museu vivo”. Motivos para isso existem. Cerca de 1,5 milhão de anos atrás, ela, junto com outras ilhas na área – as ilhas Ryukyu, ou Nansei Shoto, se estendem do sul do Japão até Taiwan, num arco –, fazia parte do continente eurasiano. O nível do mar se elevou, a ilha se isolou do continente e as espécies terrestes ali presentes evoluíram em isolamento. O resultado é que hoje as ilhas, em especial Amami-ooshima, abrigam espécies animais que não existem em nenhum outro lugar do planeta.

Em Amami-ooshima, que tem uma área de 720 km², o governo japonês transformou 3,2 km² da floresta de Yuwangatake em reserva nacional, e a administração local designou mais 4,6 km² de mata como área de conservação, na tentativa de preservar sua fauna ameaçada.

Um método consagrado na ilha para encontrar algumas dessas espécies é sair à noite, tanto para avistar animais noturnos quanto aves raras que estariam empoleiradas, dormindo, a essa hora. Por isso, numa agradável noite em junho, final de primavera nipônica, fizemos exatamente isso. Eu estava no Japão para observar aves guiada por Kaz Shinoda, profissional extremamente competente que já conhecia de uma visita anterior. Mas esta era uma saída para um especialista, e contratamos um guia local, Mamoru Tsuneda.

Ele apareceu no hotel pouco depois das 20 horas, mostrando-se cauteloso quanto às nossas possibilidades de sucesso: nas suas últimas saídas, não havia sido fácil avistar certas espécies. Mas nessas coisas sou uma otimista, ainda mais por estar no Japão, onde acumulara uma sucessão de excelentes registros nas minhas duas viagens. Assim, ignorei o tom pessimista de Mamoru.

Os guias na frente, conversando (Mamoru não fala inglês), eu no banco de trás da van, partimos. Após uns 20 minutos, Mamoru parou e abriu o teto solar. Kaz me avisou, “Fique preparada.” Noite de lua nova, só via vultos de árvores adiante. A van entrou numa estrada estreita e começou a subir uma ladeira, Kaz e Mamoru iluminando o entorno com suas fortes lanternas.

“Coelho-fóssil”

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Não se passaram nem 30 segundos, Mamoru meteu o pé no freio e apontou. O primeiro coelho! Pendurei-me no teto solar e tentei fotografar, mas o bicho se embrenhou mato adentro (terminei com um traseiro de coelho escuro e borrado, me lamentando caso fosse esse nosso único encontro com a espécie). O coelho de Amami (Pentalagus furnessi), não é um leporino qualquer: é um fóssil vivo, parente de coelhos ancestrais que viveram no continente asiático. Lá ele se extinguiu, mas em Amami-ooshima e em Toku-no-shima, uma pequena ilha próxima, resiste. É noturno e, previsivelmente, primitivo, com orelhas curtas e olhos pequenos. Tem boas garras para cavar e, eventualmente, subir em árvores. Um animal fascinante, ameaçado de extinção e que naquela noite, para a minha sorte, fez várias aparições – a segunda meros 5 minutos depois do malfadado traseiro borrado. Deu para observar, fotografar, me esbaldar.

Quatro minutos depois, o segundo achado da noite: uma Lidth’s Jay (Garrulus lidthi), dormindo no alto de uma árvore. Mais uma vez, imagens do traseiro…Com essa espécie, endêmica de apenas algumas pequenas ilhas japonesas, vulnerável à extinção e protegida no país, também acabei dando sorte: não só vimos outros indivíduos mais bem posicionados logo em seguida, como ainda escutei, observei e fotografei esta barulhenta ave de manhã, à luz do dia.

Continuamos rodando pela estradinha, ocasionalmente cruzando com outros turistas notívagos – e também com um caçador de habu, Trimeresurus flavoviridis. Esta serpente venenosa se transformou em criatura mítica no imaginário local, embora seu veneno raramente seja fatal. Em 1979, numa decisão política, mangustas foram soltas na ilha para controlar a população de habus. As consequências foram desastrosas. Não só as mangustas não se interessaram pelas víboras, como, com raros inimigos naturais, se reproduziram em um ritmo alarmante e começaram a predar espécies nativas. Ações oficiais para erradicar as mangustas estão melhorando a situação. Enquanto isso, segundo Mamoru, os caçadores de habu são pagos por cobra morta.

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Uma noite e tanto

As lanternas dos guias iluminavam os barrancos do lado da estrada e as árvores, mas nada encontravam. Ouvíamos o chamado da Otus elegans, uma arredia corujinha, e chegamos a vê-la ao longe, voando para o interior da mata, mas ela nos escapou. Passaram-se uns bons 15 minutos e nada apareceu.

Comecei a ficar preocupada, achando que talvez não visse uma das grandes estrelas da ilha, a Amami Woodcock (Scolopax mira). Estava errada: a noite me reservava nada menos do que 10 destas fascinantes aves. Quase sempre penduradas em barrancos, onde se fincavam pelos grandes pés, nos olhavam com curiosidade e sem um pingo de timidez enquanto forrageavam por alimento. A espécie é legalmente protegida em Amami-ooshima e está vulnerável à extinção.

Pouco depois, dormindo numa árvore, apareceu a mais rara das aves de Amami-ooshima, um solitário Amami Thrush (Zoothera major), espécie que praticamente só ocorre nesta ilha. Embora a Birdlife International a considere sub-espécie de Z. dauma desde 2006, a maior parte das autoridades ornitológicas a reconhece como espécie independente. Ela está criticamente ameaçada de extinção: segundo censos recentes, restam apenas cerca de 60 indivíduos na natureza. A espécie, parente dos melros, só vive em florestas primárias ou que estão intocadas há mais de 60 anos – e como em qualquer lugar do mundo, esse tipo de hábitat encolhe a olhos vistos. A Zoothera major é um “Monumento Natural” no Japão desde 1971. Fiquei feliz ao avistar a ave, mas também triste, pensando quanto tempo demorará para que ela suma da floresta.

Absorta nos meus pensamentos, um minuto depois quase perdi a Elegant Scops Owl (Otus elegans), uma pequena coruja endêmica a algumas poucas ilhas japonesas, chinesas e filipinas, empoleirada num galho. Disparei algumas fotos, mas ela voou. Pousou um pouco adiante, me permitiu mais um par de imagens e sumiu na escuridão. Quando enfiei a cabeça para dentro da van de novo, Kaz me perguntou, “Conseguiu? Conseguiu?” Respondi que sim. Ele e Mamoru engataram numa conversa animada, falando ao mesmo tempo. Então Kaz se virou para mim e disse, “Vimos todas as espécies em duas horas, e você fotografou tudo! Mamoru nunca viu algo assim!”

Depois disso tudo? Fomos tomar um café!

 

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