Análises

Belo Monte e o fim do paradigma econômico

Por mais que os economistas ignorem, há sim claros limites físicos, planetários, ecológicos e acima de tudo sociais para manter o crescimento.

Hugo Penteado ·
30 de junho de 2010 · 14 anos atrás

Sobre o caso da usina Belo Monte, tanto Roberto Smeraldi (entrevista ao Valor Econômico no dia 28/04/2010) quanto Rogério Cezar de Cerqueira Leite (artigo para Folha de São Paulo no dia 19/05/2010) estão certos e errados ao mesmo tempo. Certo Smeraldi porque os problemas ambientais tocados por ele, se realmente necessário for construir a usina, precisam fazer parte da equação sim. Certo Leite quando ataca os ambientalistas verdolengos, porque seu extremo é igual a seu oposto: não há diferença alguma entre ambientemaníacos (que não enxergam o econômico ou as pessoas) dos economaníacos (que não enxergam o meio ambiente nem as pessoas). É muito difícil discutir com ambientemaníacos que vivem de luz – podem brigar com os ruralistas com poder de persuasão enorme, pois não comem nenhum alimento que vem da terra – e que não possuem nenhuma posse – vivem como São Francisco de Assis. Os extremos são idênticos e estranhamente em nenhum dos dois enxerga as pessoas, é como se a humanidade não existisse.

É possível buscar equilíbrio nesse debate se juntarmos os argumentos de Smeraldi e Leite (note que o mesmo vale para o tema Código Florestal trazido à tona pelo projeto do deputado Aldo Rebelo).  Esse equilíbrio poderia levar aos problemas centrais relacionados com a construção da usina Belo Monte. O primeiro deles é que a economia não pode ser maior que o planeta e que uma demanda crescente de energia é impossível de ser atendida, como muitas outras coisas.  Por mais que os economistas – e nosso sistema – ignorem, há sim claros limites físicos, planetários, ecológicos e acima de tudo sociais para manter o crescimento. Aí começa toda uma sucessão de mitos que só estão acelerando ainda mais a rota ao precipício.  O mito da energia limpa, dos empregos verdes, da economia do baixo carbono veio em nosso socorro só para mostrar que os problemas centrais seguem teimosamente ignorados. Não podemos ter uma demanda infinita de energia, porque produzimos energia para construir carros, casas, construções, movimentar instrumentos e equipamentos sobre ecossistemas cada vez mais pressionados e dilapidados.  Temos na verdade um problema de matéria e de energia e, de acordo com os físicos, o ser humano não produz nenhum dos dois e para ter mais matéria e mais energia, é preciso fazer uso de mais matéria e de mais energia (referência encontrada em Nicholas Georgescu-Roegen (1)).  Uma parte importante da matéria que fazemos uso é o solo finito sobre o qual tudo se instala e a água, finita e viva, produzida por todos os seres vivos e seus ecossistemas. Para se ter uma idéia, se todas as plantas e animais sumissem de uma hora para outra da Terra, a água, que sequer pode ser estocada, sumiria junto.

“A usina de Belo Monte, nesse modelo de crescimento eterno, seria a primeira de uma série interminável para atender a expansão energética ad eternum de um modelo megalomaníaco que colocou a humanidade à beira da sua própria extinção.”

O segundo ponto central é ser absolutamente desnecessário a produção adicional de energia nesse país face a falta de atualização tecnológica da estrutura já existente, o desperdício estonteante em quase todas as áreas de consumo (vale para água e outros materiais, nossa regra é o desperdício e descarte).  Portanto, ao invés de simplesmente dizer não à Belo Monte, é necessário mostrar alternativas, porque o Brasil e nenhum pais irá viver sem energia. Esses dois fatores – 1) há como obter oferta de energia adicional com ganho de eficiência e mudança de hábitos suficiente para se evitar umas 10 Belo Montes e 2) não há como manter um sistema que demanda produção de energia crescente – precisam ser endereçados antes que seja tarde demais.  Nas cidades do Brasil, o tráfego de automóveis, cuja eficiência de energia é baixíssima, bastaria uma mudança no sistema de transportes para economizar muitas e muitas Belo Montes. Nas construções idem. Nas usinas existentes com turbinas antiquadas idem. Nas linhas de transmissão desatualizadas idem. Por que a regra é sempre construir mais, mesmo quando é claramente uma ineficiência e um desperdício que, uma vez cortados, poderiam evitar maior impacto ambiental? O que define um veneno não é a sua substância, mas a quantidade. Nós, seres humanos, não iremos viver de luz, sem posses ou sem regalias ou prazeres, mas não podemos ignorar a viabilidade e a distribuição das nossas demandas no presente e no futuro, que devem estar sempre de acordo com as regras do planeta. Há uma passagem bíblica na qual Deus pergunta a Jó: “Por ventura foste tu que deste lei à luz da manhã?” Resposta sonora de toda a comunidade científica: “Não”.

A usina de Belo Monte, nesse modelo de crescimento eterno, seria a primeira de uma série interminável para atender a expansão energética ad eternum de um modelo megalomaníaco que colocou a humanidade à beira da sua própria extinção. Os economistas tradicionais acreditam piamente que seu sistema econômico imaginário é totalmente descolado do meio ambiente ou do planeta que o acolhe. Esses magnânimos intelectuais  não sabem e nem se preocupam com quanto de água é preciso para atender um crescimento de 5 a 10% do PIB.  Não há uma só variável nos seus modelos econômicos que contabilize a contribuição importantíssima dos serviços irreproduzíveis da natureza, sem os quais não teríamos nada. Herman Daly, seguidor de Roegen, que foi chefe do departamento do meio ambiente do Banco Mundial décadas atrás, sugeriu aos ativistas de ONGs como o Greenpeace atacar esse pensamento em todos os fóruns nos quais esse debate é feito monotonicamente como se nada de mais interessante estivesse acontecendo com o globo terrestre, exceto crescimento econômico, expansão de consumo, vendas e lucros.  Com isso evitaríamos a fábula do rinoceronte de Monteiro Lobato: “numa determinada cidade um rinoceronte fugiu do zoológico e imediatamente foi criado um órgão para sua recaptura; a única finalidade desse órgão era jamais achar o bicho, para continuar existindo.”  Nós precisamos capturar o rinoceronte e a única forma é atacar as causas dos problemas sistêmicos atuais.

Uma causa bem clara é o crescimento econômico nesse modelo de consumo e produção que jamais será possível de ser disseminado para toda a população terrestre sem antes gerar guerras e hecatombes ambientais colossais e, no limite, a extinção da vida. Outra causa importante é o próprio crescimento populacional ininterrupto, associado com um explosivo materialismo humano, ou seja, é a combinação de mais pessoas inconscientes e sempre insatisfeitas com seu nível de materialismo, que pressiona e leva à ruína a capacidade da Terra sustentar a vida. Esse é um destino duro que se vislumbra agora, se não mudarmos radicalmente esse modelo. Nada até agora indica que mudará.

Portanto, antes de falarmos sim ou não à Usina Belo Monte ou de levantar uma oposição ferrenha contra qualquer um dos lados dessa questão, precisamos rever nossa posição:

– somos uma espécie animal vulnerável e dependente dos serviços finitos da Terra e de todos os demais seres vivos (sem a Amazônia todos estaríamos mortos, por exemplo);

– a pressão da nossa espécie desde há muito se tornou ameaçadora demais e pode revogar as bases de sustentação da vida sem tempo hábil para ser reconstituída no ciclo atual da vida que conhecemos;

– já provocamos a maior extinção global da vida dos últimos 65 milhões de anos e é muita ingenuidade achar que essa extinção não irá se voltar contra os causadores (de acordo com Stephen Jay Gould (2));

– a causa dos problemas planetários globais e locais é nosso modelo econômico e as decisões práticas derivadas dele;

– não existe até agora nenhum exemplo relevante de economia ou sistema sustentável, com o abandono da rota de colisão contra a Terra e da nossa mania de crescimento quantitativo em detrimento de desevolvimento qualitativo ou ao menos melhor mensurado;

– o crescimento econômico não é nem salvação ecológica nem social, na verdade é a razão das mazelas ambientais e é hoje um poderoso mecanismo de diferenciação social que cristaliza a distância entre as classes sociais do mundo todo;

– não existe tecnologia atualmente que possa limpar a sujeira a ponto de substituir a necessidade urgente de reduzir globalmente nosso consumo, escala e desperdício, além do nosso descarte imediato de bens que transformou a Terra numa lixeira e foco de contaminação; e

– qualquer tecnologia que exista, só pode ser usada com a finalidade de redução, do contrário, insere-se na mesma filosofia de “solucionar problemas que antes deveriam ser evitados” (um exemplo são os mirabolantes esquemas de captura de carbono, cuja tragédia atmosférica podem até torná-los necessários, mas que em nenhum momento eliminariam a necessidade do sistema econômico parar de injetar carbono e metano na atmosfera).

O fim do paradigma econômico atual vai ocorrer. O que virá depois depende da análise que fizermos de problemas que sempre existiram, mas que por uma aceleração histórica e ênfase no comércio global, tornaram-se grandes o suficiente para forçar um resultado totalmente diferente do previsto e muito indesejável, sob qualquer prisma analisado.

(1)Considerado pai da Economia Ecológica, seu livro “The Entropy Law and The Economic System (1971)” e outros são um marco desse pensamento na década de 1970 e adiante.

(2)Paleontólogo estadunidense, autor de “Dinosaur in a Haystack (1995)” e outros livros, com conhecimento profundo acessível a pessoas de outras áreas.

  • Hugo Penteado

    Autor do livro "Ecoeconomia – Uma Nova Abordagem", Ed. Lazuli, 2003 e 2008. mestre em economia pela Universidade de São Paulo.

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