Análises

A floresta em pé

Ao tentar definir florestas que já não merecem ser chamadas puramente assim, especialistas e a imprensa começam a inventar expressões que pouco revelam a realidade das matas.

Rodolfo Salm ·
15 de fevereiro de 2007 · 17 anos atrás

Segundo o biólogo Philip Martin Fearnside, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), para captar o valor de qualquer serviço ambiental prestado pela floresta tropical, é necessário ter uma comparação entre um cenário com a floresta mantida “em pé” e outro com os usos alternativos da terra que ocorreriam na mesma região; ONGs discutem propostas para manter a floresta “em pé”; o Banco Mundial financiará carbono de floresta “em pé”; para a ministra Marina Silva, a lei de gestão de florestas públicas é um dos instrumentos que viabilizará os esforços para que “as nossas florestas continuem de pé”.

Achei interessante um artigo de Gabriel Perissé, “Deixe sua opinião”, publicado no Correio da Cidadania em setembro do ano passado (edição 514). Perissé argumenta no texto como é importante “implicar” com clichês que se repetem em leituras e conversas, como “efeito multiplicador”, “caldo de cultura” e, uma das preferidas dele, “a boa notícia é que”, vício da mídia que, depois de comunicar a “má notícia”, acha que se deve sempre ter algo a comemorar.

Pois um dos clichês com os quais eu mais implico na área da biologia da conservação é esse da “floresta em pé”. Primeiro porque eu não consigo imaginar a mata em outra posição. Deitada só se foi cortada, mas aí não é mais uma floresta. Tudo bem se isso fosse apenas mais um dentre os inúmeros cacoetes de linguagem que se multiplicam no cipoal da verborragia florestal, como manejo florestal, sustentabilidade etc. Mas vejo na expressão algo de sinistro.

Fearnside é um pesquisador bem-informado, e usou o termo a partir do termo em inglês “standing forest”. Ele sabe que, a partir do momento em que não se pode garantir a integridade total do ecossistema, inevitavelmente serão eliminadas em vastas áreas, pela caça, todas as espécies de mamíferos de médio e grande porte – as mais desejadas para o consumo humano. Assim, nessas condições, não seria razoável falar em “preservação da floresta” ou em sua integridade. Sobra, então, a idéia da “floresta em pé”, que é a cobertura vegetal mais ou menos contínua, mantendo-se estruturalmente como floresta, mas depauperada de parte de sua fauna e flora.

Projeções para o futuro da região amazônica, considerando as obras de infra-estrutura em implementação e planejadas, agora principalmente pelo PAC, e estudos do impacto de caça sobre populações de espécies selvagens revelam que, logo, logo, esta será a situação de boa parte da região. Para ter-se uma idéia da velocidade da ocupação, de acordo com dados do Imazon (Instituto do Homem e do Meio Ambiente da Amazônia), em 1990, existiam 5.042 quilômetros de estradas ilegais na região centro-oeste do Pará. Hoje, a extensão dessa malha viária ilegal saltou para o impressionante total de 61.798 quilômetros, por onde se caça, se tira madeira e se estabelecem garimpos. Mas a região ainda é coberta essencialmente por “floresta em pé” — e daqui a pouco tempo talvez nem mais isto.

O problema do jargão “floresta em pé” é que ele tem um grande (Gabriel Perissé que me perdoe) efeito multiplicador no caldo de cultura pútrido que é o debate em torno da devastação/conservação da floresta amazônica. Assim, a ministra do Meio Ambiente defende a preservação da “floresta em pé”, o Banco Mundial financia e o povo acha bonito. Acontece que, a partir de então, ninguém defende mais, simplesmente, a preservação “da floresta”. Na verdade, a “floresta em pé” pode ser qualquer coisa, desde a floresta íntegra a uma mata depauperada, ou até mesmo um bosque de eucaliptos. Pensem no caso da iminente extinção dos últimos orangotangos selvagens no sudeste asiático (discutida semana retrasada nesta coluna), devido, entre outras coisas, à expansão das plantações de dendê para a produção de biodiesel. O dendê é uma palmeira arborescente, e, ao se queimar parte da mata para plantá-lo, mantém-se a floresta “em pé” e também parte de seus “serviços florestais”, mas perdemos os orangotangos, além de uma infinidade de espécies vegetais e outros animais de menor porte, muitas vezes ainda nem mesmo catalogados.

A boa notícia é que (perdão novamente) outro biólogo norte-americano cunhou e consagrou outro termo que pode nos salvar do abominável “floresta em pé”. Em um artigo publicado em 1992 na revista BioScience, Kent H. Redford denunciou o fenômeno das florestas vazias (The Empty Forests), onde os animais de grande porte estão ecologicamente extintos (já desapareceram por completo ou se tornaram tão raros que não mais desempenham suas funções ecológicas), mas a vegetação parece estar intacta. Redford ilustra o problema com o trocadilho em inglês: “We must not let a forest full of trees fool us into believing all is well” (não podemos deixar uma floresta cheia de árvores – a tal “floresta em pé” – nos enganar, fazendo-nos acreditar que vai tudo bem). Com esta alternativa, podemos nos expressar melhor, dando a entender claramente que as alternativas que temos à integridade da floresta são o pasto, a soja ou, no melhor dos casos, a “floresta vazia”.

  • Rodolfo Salm

    Rodolfo Salm, PhD em Ciências Ambientais pela Universidade de East Anglia, é pesquisador do Museu Paraense Emílio Goeldi.

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