Análises

Pesca não, Brasil

Anacrônico, o governo aponta o alto mar como solução para a produção de alimentos, enquanto temos a maior e menos aproveitada bacia hidrográfica do planeta.

Carlos Secchin ·
1 de outubro de 2004 · 20 anos atrás

Países populosos, com pequena área territorial litorânea, enfrentam o problema da fome e da escassez de alimento construindo frotas pesqueiras, aparelhando-as para a navegação de longo curso, em águas internacionais. Esses países investem, também, na pesquisa de aqüicultura, resguardando-se de prováveis tempos difíceis oriundos de guerras.

Qualquer que seja o preço do barril de petróleo, qualquer que seja o custo de se manter uma frota navegando a milhares de quilômetros do centro de consumo, até onde houver peixe no mar para se capturar, a iniciativa da pesca sempre se justificará.

Além do alimento essencial, a indústria da pesca movimenta outros setores industriais de relevante importância, tais como a indústria pesada dos armadores navais, das máquinas e dos motores, de implementos de pesca, dos instrumentos de navegação, dos frigoríficos, dos transportes, das embalagens, etc. Uma verdadeira rede interdependente de empresas industriais com grande capacidade de empregar mão-de-obra qualificada.

A maior parte dos países asiáticos tem o mar como porta de saída para a sobrevivência de seus povos, assim como são os maiores produtores de alimentos provenientes de criadouros. Empreendem enorme esforço político para garantir o direito de exploração das zonas internacionais de pesca, assegurando-se o direito conquistado de explorá-las, mesmo que muitas espécies comerciais já estejam com os seus estoques naturais bastante reduzidos e ameaçados. Seus interesses comerciais provocam embaraços diplomáticos quando freqüentemente invadem ilegalmente águas pertencentes a outras nações costeiras.

Contra tudo isso acima relacionado, os números reveladores da queda mundial de produção apontam como principais fatores responsáveis a pesca predatória, o aumento das frotas, o desrespeito às épocas de defeso, a alta tecnologia empregada, a poluição dos mares e o desequilíbrio climático do planeta.

As agências internacionais de regulamentação passaram a exigir dos governos maior controle e obediência aos limites estabelecidos por cotas das espécies comerciais mais pescadas e, apesar disso, uma divisão injusta e desproporcional entre as nações pesqueiras foi estabelecida e é bastante sentida pelos países emergentes.

Depois que os grandes bancos pesqueiros, liberados de sua moratória, demonstraram a incapacidade de se manter os índices que garantem a sobrevivência do bacalhau, uma nova ordem mundial está sendo instituída nos mares. E o oeste do Atlântico sul ocidental tem sido contemplado por uma desenfreada exploração capitaneada pelos pesqueiros espanhóis.

O que o Brasil pesca hoje no mar é insuficiente. É dez vezes menos que o direito de nossa cota permite para atuns e espadartes. Mas, antes de cedermos à tentação de correr atrás do tempo perdido, e se voltarmos um pouco atrás nele, veremos que nos últimos 30 anos o país praticamente exauriu os recursos naturais renováveis nas águas rasas e litorâneas e na faixa estreita da plataforma continental. Foi nessas últimas três décadas que o nosso país sofreu com o maior êxodo rural que uma nação experimentou em toda a história da humanidade. Não só o litoral, mas também nossos rios sofreram uma brutal e vertiginosa degradação provocada pela falta de saneamento básico e com o descontrolado desmatamento de nossas florestas e matas ciliares. E, o que é pior, nossas capitais litorâneas não dão sinais de parar de crescer ou parar para equacionar e resolver os problemas ambientais criados.

O atual programa do governo, que aponta o alto mar como solução para a produção de alimento farto, barato e saudável e de permanente disponibilidade, é inusitado e falacioso. Todo ele é voltado para beneficiar exportadores de pescado e a falida indústria naval.

O preço da proteína obtida no mar pode sair muito salgado quando há em terra firme a maior e a menos aproveitada bacia hidrográfica do planeta e, junto dela, uma lâmina d’água com mais de 11 milhões de hectares de superfície em seus reservatórios e, ainda, um litoral de 8 mil quilômetros de extensão pronto para receber projetos de fazendas marinhas.

A pesquisa de produção de peixe em água doce é bastante avançada e requer apenas um pequeno investimento para uma alta taxa de retorno. Nesse nosso território caberiam milhões de bem-sucedidos projetos de produção e de engorda de peixes que são conhecidos e já consagrados no cardápio do brasileiro. Por que então pescar em águas incertas e cada vez mais traiçoeiras (vide o primeiro furacão registrado no litoral sul do Brasil), se podemos produzi-lo próximo ao mercado de consumo? O que está por trás desse impulso anacrônico se afinal os países desenvolvidos estão fazendo o caminho contrário? Eles sabem que o mar não está mais para peixe. Por que não estabelecemos rígido controle de nossa costa aparelhando nossa Marinha para reprimir os infratores estrangeiros que aqui pescam? Por que não criar um braço dela capaz de fazer a proteção do nosso patrimônio ambiental e das tripulações de embarcações perdidas, resgatando-as no mar? Por que pescar quando todo o mundo civilizado está investindo na produção da aqüicultura? Vide o sucesso do Chile com a produção de salmões e de camarões.

A pesca no mar é uma atividade extrativista perigosa à saúde do planeta porque emprega tecnologias de ponta associadas às antigas práticas nocivas e nefastas das redes de arrasto sobre o fundo do mar, destruindo-o, eliminando indiscriminadamente toda forma de vida e até mesmo fabulosos cenários desconhecidos da ciência. Sem falar das imensas redes arrancadas de suas bóias pelas tempestades cada vez mais freqüentes, largando-as perdidas vagando nos mares como necrotérios flutuantes.

O Brasil pode e deve produzir alimentos que dependam tanto de água doce como de salgada. O nosso país detém todos os meios para fazê-lo de forma correta e sem prejuízo para o meio ambiente. Seria muito melhor o governo voltar-se para o pequeno produtor rural e para comunidades caiçaras e a eles propiciar condições para que empreendessem cultivos locais. Seria muito melhor se cuidássemos de nossas águas ao invés de navegar para rumos distantes, incertos e caros.

Site recomendado: Pescabrasil

Carlos Secchin é autor dos livros: Narcosis, histórias de mergulhador e Mar do Rio – fronteira azul da cidade, ambos à venda.

  • Carlos Secchin

    Carlos Secchin é engenheiro e fotógrafo, Carioca, vive no Cerrado onde se dedica a conservar uma pequena porção deste rico bi...

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