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Gente com pata

Ser humano odeia quando cachorro se comporta como animal. Cria o bicho para ter um escravo afetivo. Esse relacionamento acabou gerando um grande negócio.

1 de setembro de 2004 · 20 anos atrás

Na recepção de um hotel da rede Best Western, numa pacata cidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos, me deparei com uma plaquinha que dizia: “por favor, registre aqui, seu animal de estimação”. Ou seja, para que o cachorro possa circular pelos corredores do hotel, é preciso que o dono faça uma coleira de identificação, com o nome do bicho e o número do quarto.

Sim. Os cachorros são aceitos, aliás, muito bem aceitos. Se a grande maioria da população trata cachorro como gente, é natural que esta grande maioria procure hotéis, supermercados e restaurantes que tenham comprado essa idéia. Funciona como qualquer outro hábito de consumo. Enquanto os cachorros estiverem gerando despesas e movimentando o mercado, eles serão bem vindos Só nos Estados Unidos, 7 bilhões de dólares são gastos, por ano, na saúde dos animais domésticos. No Brasil, de acordo com dados do Sindicato Nacional das Indústrias de Alimentação Animal, de 1994 a 2004, o mercado de alimentos voltados para animais de estimação cresceu 690%.

Em matéria publicada na revista Super Interessante, especial Bichos 2, o químico e jornalista científico Stephen Budiansky, autor de The Truth About Dogs (“A verdade sobre os Cães”, ainda inédito no Brasil) dá algumas dicas sobre a “educação” de cachorros. Fazendo um comparativo entre um bebê e um filhote de cachorro, o americano diz que uma criança precisa de amor incondicional e não pode ser criada obedecendo a comandos. Mas, para um cão, isso só mostra qual é a hierarquia dele dentro da casa. “A sociedade deles é mais simples: uns mandam e outros obedecem. E, se deixarmos isso claro, eles vão fazer de tudo para nos agradar e ganhar um cafuné ou biscoito”.

Ou seja, se você tem um cão, você busca uma relação segura, consistente, sem surpresas desagradáveis. Na verdade, você anula o cachorro e faz dele uma extensão sua, um rabo que se abana. As relações humanas se tornaram competitivas, assustadoras e cheias de ciladas, o homem ficou amedrontado e resolveu estabelecer vínculos de afeto com animais não ambiciosos, que se satisfazem com aquilo que lhes é apresentado. Ficou mais fácil tratar bichos como pessoas e pessoas como bichos.

Para ter o cachorro abanando o rabo, seu dono faz o que for preciso. O bicho é como filho da casa e tem direito a tudo o que quiser, desde que não vire gente. Acredito que isso aconteça porque os bichinhos são mais facilmente adestrados, educados num regime de troca e condicionamento. A submissão do animal conforta seu dono. Todo e qualquer sentimento de liberdade está atrelado ao dono, que é o chefe da cadeia e enxerga a escravidão do cachorro como fidelidade absoluta.

Vontade própria é desacato a autoridade. Quando um ou outro mostra ou lembra que é cachorro e engole uma galinha, come um rato ou morde alguém, pelo motivo que for, é submetido a “torturinhas” chamadas de castigos ou adestramento, dependendo do grau de violência instintiva do animal e de seu dono.

Talvez eles tenham se acostumado com sua atual realidade e esquecido que são bichos. É natural que isso aconteça. Como não são mais estimulados a agir como cachorro, com o tempo, deixam de lado suas habilidades caninas. Depois de adotá-los, o homem afirma, se justificando, que o bicho morreria de fome se fosse passar uma temporada com um grupo de animais selvagens. É óbvio.

Mas, o importante é que eles não estão em extinção. Aliás, a superpopulação canina vem incomodando a sociedade, a mesma que nos últimos tempos, lutou para transformar cachorros em ursinhos de pelúcia e estimulou a produção de animais “transgênicos”.

Médicos veterinários afirmam que tanto no Brasil como em outros países mais desenvolvidos, existem pessoas que não assimilam o conceito da posse responsável de um animal.

Traduzindo: Posse responsável, além de bons tratos, significa controlar a reprodução dos bichos para evitar que cães mendigos circulem pelas ruas. O sistema é parecido com o que poderia ser imposto aos homens, já que assim como os cães, também tem muita gente dando cria sem controle.

Recentemente, o país das soluções apresentou uma novidade. A FDA, órgão do governo dos EUA que supervisiona alimentos e remédios, aprovou o Neutersol, uma alternativa à cirurgia de castração para filhotes de cachorro. O produto, injetado nos testículos do filhote na idade correta, produz atrofia dos testículos e da próstata.

A alternativa cirúrgica, remoção dos testículos, garante a esterilidade em 100% dos casos. Já o Neutersol, é menos eficiente: análises de sêmen mostraram uma esterilização química malsucedida em 224 cães testados. o novo método pode não eliminar os comportamentos do cão associados ao hormônio, como demarcação de território e agressividade. É importante ressaltar que o cão não precisa assinar nenhum documento para se submeter ao tratamento. Quem faz isso é a mamãe ou o papai, como se intitulam os donos do cachorro.

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