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A morte da minha rainha das árvores

Uma frondosa figueira, sem motivo aparente, foi levada ao chão. O episódio deixou muita gente emocionada e leva a uma reflexão sobre razões que temos para preservar qualquer árvore.

23 de dezembro de 2008 · 15 anos atrás
  • Fernando Fernandez

    Biólogo, PhD em Ecologia pela Durham University (UK). Professor do Departamento de Ecologia da UFRJ, trabalha com Biologia da Conservação.

He was the King of trees
Keeper of the leaves
A deep green god of young
Love stained memories
We used to meet by him
Far form the hustling town
I loved you
Now they’ve come to cut you down
…Down
(Ele era o Rei das árvores
Guardião das folhas
Um profundo deus verde
De jovens memórias tingidas de amor
Nós costumávamos tratá-lo por ele
Longe da cidade agitada
Eu amei você
Agora eles vieram derrubar você
…Derrubar)
Cat Stevens, “The King of trees”

Uma das letras de música mais marcantes da minha adolescência foi sem dúvida a de “The king of trees”, do cantor grego-britânico Cat Stevens. Tenho esta letra até hoje, escrita à mão num pedaço de papel, numa gaveta na minha casa. Me lembro bem do quanto me emocionei com o sentimento de um homem por uma árvore que era parte dos melhores momentos de sua juventude, e com sua dor pela sua perda.

Acho que até a semana passada nunca tinha percebido conscientemente que, anos depois, eu também acabei tendo a minha própria rainha das árvores. Rainha, e não rei, porque era uma figueira. Rainha, sim, porque era uma árvore majestosa. Ela ficava logo em frente à entrada do prédio da Fundação BIO-RIO, na Ilha do Fundão, onde há um comida-a-quilo onde eu vou almoçar quase todos os dias.

Era um verdadeiro colosso. Seu tronco, na verdade o complexo emaranhado de raízes se abraçando, tinha mais de três metros de diâmetro, talvez quatro. A copa espalhava seus galhos longuíssimos e sinuosos sobre o telhado do prédio, num diâmetro de mais de trinta metros. Era, disparado, a árvore mais bonita e mais impressionante de toda a Ilha do Fundão, onde fica o campus da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Nela nidificava pelo menos um casal de sabiás. Muitas vezes vi socós pousados nos galhos mais altos. Mais raramente, micos também apareciam. Não há muitas árvores naquele trecho bastante inóspito da Ilha do Fundão, e era natural que aquela figueira gigantesca fosse um refúgio importante. As folhas propiciavam uma densa sombra, que tantas vezes foi um gostoso alívio ao chegar ao restaurante depois de uma caminhada sob o sol de verão.

Não me lembro se alguma vez já tinha feito alguma ligação consciente entre a letra de “The King of trees” e aquela figueira – talvez apenas uma vez. Mas me lembro de ter conversado umas poucas vezes com outras pessoas sobre aquela árvore – o quanto ela era especial, e, sim, o quanto ela fazia o nosso dia-a-dia melhor, simplesmente por vê-la e admirá-la todo dia na hora do almoço.

Terça-feira passada veio de repente. Nos dias anteriores, eu havia notado que os longos galhos sobre o telhado haviam sido cortados, mas achei que isso era apenas uma poda e não me preocupei. Mal sabia que eram só os primeiros golpes. Na terça-feira, porém, fui almoçar na BIO-RIO, pensando em um monte de problemas, e tive um baque ao olhar de longe: a árvore não estava mais lá.

O vazio, no lugar onde a imensa figueira sempre tinha estado, era mais chocante do que qualquer coisa que pudesse estar ali. Continuei andando para lá, com o coração batendo forte, e então vi. Da figueira só restava o tronco central, cortado na altura de uns três metros, com uns pedaços de árvore ainda precariamente pendurados. Grandes pedaços de tronco e raízes jaziam pelo chão à toda volta, numa mortalha de serragem. Uma moto-serra vermelha tinha a lâmina ainda enfiada em um dos pedaços. Umas fitas amarelas de plástico mantinham os transeuntes à distância. O que era lindo tinha se convertido numa visão horrorosa. Em um minuto eu tinha esquecido todos os problemas que tanto me ocupavam. Uma imensa tristeza me invadia, e eu não conseguia tirar os olhos daquela cena.

Fui almoçar sozinho, em silêncio e com o dia completamente estragado. Confesso que meu pensamento naquela hora foi fatalista, do tipo, “que droga, vou ter que me acostumar a isso aqui sem ela”. Mas quando fui ao caixa pagar, uma mulher na fila perguntou a uma atendente do restaurante: “por que cortaram essa árvore aí em frente? Ela era tão linda!”. A atendente respondeu: “não sei, nós não tivemos nada a ver com isso. Eu adorava aquela árvore!” A caixa então comentou: “Eu também! Como é que alguém corta uma árvore dessas?” Naturalmente entrei na conversa, e fiquei impressionado ao perceber o quanto aquela árvore era importante não só para mim, mas para tantas outras pessoas também. Eu mal suspeitava disso, depois de vários anos almoçando ali, mas ela não era uma rainha das árvores só para mim.

Saindo do restaurante, encontrei meu colega Gílson e outros dois funcionários do Instituto de Biologia, parados, olhando para a cena com tristeza. Gílson me disse: “Está todo Mundo revoltado”. Várias pessoas já tinham fotografado a cena, segundo ele, para enviar para blogs ou coisas assim. Estava um dia muito quente, e só aí reparei o calor que fazia ali, na entrada do prédio. O lugar era coberto com telhas de amianto, mas antes se estendia sobre elas a densa folhagem, e o microclima era sombreado, fresco e úmido. Agora, o sol aquecia diretamente as telhas, e tudo estava quente, árido, abafado, como se estivéssemos num forno. De algum modo me pareceu uma versão em miniatura do que está acontecendo com um Mundo que não sabe preservar suas árvores.

Não sei porque mataram aquela figueira. Pode ter havido boas razões. Ela podia estar doente, embora eu não tenha achado nenhum sinal disso. Há outras possibilidades. figueiras são árvores que podem causar muitos problemas, com suas raízes abalando a estrutura dos prédios, ou seus pesados galhos caindo sobre os telhados ou forçando-os para baixo. Não vi nenhum sinal de que as raízes estivessem levantando as calçadas, embora quem sabe elas pudessem estar tendo algum efeito mais para dentro do prédio. Quanto aos galhos, me recuso a acreditar que não teria sido possível lidar com esse problema com medidas de manejo, como poda ou escoramento dos galhos mais perigosos. Não sei. Prefiro acreditar que ela foi morta por uma boa razão. Só não sei se vou conseguir me convencer disso.

Você pode a essa altura estar se perguntando: mas porque tanta preocupação com uma árvore, se a cada dia só na Amazônia milhares de árvores estão sendo derrubadas e mortas? Não é esse um problema minúsculo, insignificante?

Isso me lembra um velho lema do movimento ambiental, um guia simples, mas sábio: pense globalmente, aja localmente. Nossas ações podem parecer pequenas, mas só as pequenas ações de milhões de pessoas, somadas, podem virar o jogo. Árvores servem de habitat para bichos, como os sabiás, os socós e os micos que usavam aquela figueira. Árvores produzem uma imensa variedade de produtos. Árvores fixam CO2 e com isso ajudam a combater o aquecimento global que terá efeitos devastadores não só sobre a conservação como também sobre a própria economia. Árvores regulam o clima e garantem a qualidade da água das nascentes. Árvores seguram encostas e se tivessem mantido mais delas não teria havido tantas mortes em Santa Catarina (mas culpar as “intempéries” da “natureza” é tão mais fácil). Árvores fazem os lugares mais bonitos e agradáveis, por conta da nossa biofilia, e assim melhoram a qualidade de vida das pessoas. Árvores merecem viver por serem árvores. Há muitas razões para preservá-las, e bem poucas justificativas para matá-las com tanta facilidade como sempre fizemos ao longo da triste história ambiental brasileira. E aí cabe virar de cabeça para baixo o velho provérbio: devemos, sim, ver a floresta pelas suas árvores, se não como forma de entendê-la, pelo menos como forma de preservá-la. Cuidar das árvores que a gente gosta é colocar um pequeno tijolinho para construir um Mundo melhor.

“As árvores que a gente gosta?” Sim, por que não? Sempre defendi que conhecimento científico sobre os organismos e os processos ecológicos é imprescindível para que se consiga conservar a natureza. Continuo, claro, pensando assim. Mas se quisermos mesmo ser bem-sucedidos em conservação, a razão só não é o suficiente. Sentimento não é para se explicar, é para se sentir. A emoção é fundamental. Naquela fila da caixa do comida-a-quilo, aprendi que para muita gente aquela também era a “sua” árvore. Quase sempre é do sentimento de pessoas assim que nascem as ações para a conservação. A razão é uma ferramenta necessária, mas o sentimento é a origem de tudo.

Eu não pude fazer nada pela “minha” árvore, porque não sabia que ela ia ser morta. Mas quem sabe minha tristeza ajude alguém a fazer alguma coisa por alguma outra árvore, ou por algum bicho. Aí, pelo menos, a morte dela não vai ter sido em vão.

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