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Uma no cravo, outra na ferradura

As condicionantes propriamente ambientais da licença de Angra 3 são uma minoria. E a imposição da solução definitiva dos rejeitos nucleares é totalmente inconseqüente e ilógica.

1 de agosto de 2008 · 16 anos atrás
  • Paulo Bessa

    Professor Adjunto de Direito Ambiental da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

“Chernobyl, Harrisburg, Sellafield, Hiroshima
Stopt Radioaktivität
Weil`s um unsere Zukunft geht
Strahlentod und Mutation
Durch die Schnelle Kernfusion“
(Kraftwerk)
 

Encontra-se disponível no sítio internet do Ministério do Meio Ambiente a Licença Prévia nº 279/2008 emitida pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA em favor de Eletrobrás Termonuclear S/A.. A concessão do alvará foi tratada em grande estilo e anunciada pelo próprio Ministro de Estado da pasta à qual o IBAMA está vinculado. Estaremos diante de uma licença eco-libertária?

O tema merece reflexão. Como sabemos a resolução Conama nº 237/98, em seu artigo 10, § 1º estabelece que: “O procedimento de licenciamento ambiental obedecerá às seguintes etapas ………………………..§1º – No procedimento de licenciamento ambiental deverá constar, obrigatoriamente, a certidão da Prefeitura Municipal, declarando que o local e o tipo de empreendimento ou atividade estão em conformidade com a legislação aplicável ao uso e ocupação do solo e, quando for o caso, a autorização para supressão de vegetação e a outorga para o uso da água, emitidas pelos órgãos competentes.”

Seguramente, tal certidão se encontra nos autos do licenciamento ambiental. Contudo, não se pode esquecer que o artigo 225, § 6º da Constituição Federal determina que a localização de instalações nucleares dependa de lei definindo-lhe a localização. Não se desconhece a polêmica acerca da existência de direitos adquiridos à instalação haja vista que a sua concepção é anterior à Constituição Cidadã. Sabemos, no entanto, que a usina não teve a sua construção iniciada e, portanto, em conformidade com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tal “direito adquirido” é muito contestável. Não encontrei no sítio internet do Supremo Tribunal Federal nenhuma decisão que afirme o direito adquirido para a construção de Angra III sem a prévia existência da lei autorizando a localização. Penso que, diante da relevância do tema, tal situação deveria ser explicitada claramente, pois na dúvida, não há motivos para que se presuma um direito, quando todo o contexto constitucional e legal é de ampla cautela em relação à utilização da energia nuclear. Em casos de simples construções de condomínios e loteamentos, o Supremo Tribunal Federal tem decidido seguidamente que “não há direito adquirido” à legislação pretérita, caso a obra não tenha sido iniciada.

“DIREITO DE CONSTRUIR. MERA FACULDADE DO PROPRIETARIO, CUJO EXERCÍCIO DEPENDE DE AUTORIZAÇÃO DO ESTADO. INEXISTÊNCIA DE DIREITO ADQUIRIDO A EDIFICAÇÃO ANTERIORMENTE LICENCIADA — MAS NEM SEQUER INICIADA –, SE SUPERVENIENTEMENTE FORAM EDITADAS REGRAS NOVAS, DE ORDEM PÚBLICA, ALTERANDO O GABARITO PARA CONSTRUÇÃO NO LOCAL. Precedentes do Supremo Tribunal Federal. Agravo regimental improvido”.1

No mesmo sentido vai a seguinte decisão:
“EMENTA: CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. CIVIL. DIREITO DE CONSTRUIR. LIMITAÇÃO ADMINISTRATIVA. I. – O direito de edificar é relativo, dado que condicionado à função social da propriedade: C.F., art. 5º, XXII e XXIII. Inocorrência de direito adquirido: no caso, quando foi requerido o alvará de construção, já existia a lei que impedia o tipo de imóvel no local. II. – Inocorrência de ofensa aos §§ 1º e 2º do art. 182, C.F. III. – Inocorrência de ofensa ao princípio isonômico, mesmo porque o seu exame, no caso, demandaria a comprovação de questões, o que não ocorreu. Ademais, o fato de ter sido construído no local um prédio em desacordo com a lei municipal não confere ao recorrente o direito de, também ele, infringir a citada lei. IV. – R.E. não conhecido.”2

Modestamente, penso que dadas as grandes somas envolvidas no empreendimento, as preocupações (reais e irreais) da população com o empreendimento e aos longos anos que a questão vem sendo debatida, a matéria merecia ter sido tratada quando da solenidade da outorga da licença, ou mesmo sob a forma de uma nota explicativa.

Chamo a atenção para o fato de que a observação que fiz acima nada tem a ver com ser “contra” ou “a favor” da energia nuclear. Aqui, vale recordar a importante lição de Burger em TVA v. Hill “It may seem curious to some that the survival of a relatively small number of three-inch fish among all the countless millions of species extant would require the permanent halting of a virtually completed dam for which Congress has expended more than $ 100 million. The paradox is not minimized by the fact that Congress continued to appropriate large sums of public money for the project, even after congressional Appropriations Committees were apprised of its apparent impact upon the survival of the sail darter. We conclude however that the explicit provisions of the Endangered Species Act require precisely that result.” Não é ocioso lembrar que, no caso brasileiro, é a própria Constituição que faz a exigência da lei para localização.

Contudo, não se pode deixar de registrar o fato de que, em se tratando de arrecadação, o órgão ambiental está bastante antenado para as decisões judiciais, conforme se extrai da leitura da condicionante “2.59. Assinar até a Licença de Instalação Termo de Compromisso para Compensação Ambiental, a ser definida pela Câmara Federal de Compensação Ambiental segundo a Lei Federal nº 9.985/00 e o Acordão ADI 3378.

Se fôssemos analisar as condicionantes da LP nº 297/2008 veríamos, sem grande esforço, que elas formam um conjunto assistemático, incongruente e até mesmo inacreditável. Elas partem da instalação de ”lombadas eletrônicas” (cláusula 2.4) que é um assunto inteiramente dissociado de uma LP para uma instalação nuclear, passam por “reiniciar as atividades da trilha Porã (2.55), percorrem terras quilombolas e indígenas (2.57), isto para não se falar na abstração da cláusula 2.56, “apoio, de cunho social, às populações das áreas de influência do empreendimento.”

A massa das cláusulas de licença prévia é constituída pelo tradicional clientelismo, transformado em socioambiental. Convênios com prefeituras, hospitais, segurança pública, estradas e toda uma série de condicionantes que, respeitosamente, nada têm a ver com o que se está licenciando, dão a tônica da LP.

Mas não é só. A cláusula 2.18 que me permito transcrever dado o nível de irrealismo nela contida tem a seguinte redação: “2.18. Apresentar proposta e iniciar a execução do projeto aprovado pelo órgão ambiental para disposição final dos rejeitos radioativos de alta atividade antes do início da operação da Unidade 3.” Como é do conhecimento de todos, a matéria dos rejeitos radioativos é tratada pela lei nº 10.308, de 20 de novembro de 2001 que “dispõe sobre a seleção de locais, a construção, o licenciamento, a operação, a fiscalização, os custos, a indenização, a responsabilidade civil e as garantias referentes aos depósitos de rejeitos radioativos, e dá outras providências.” Na forma do artigo 9º da lei em questão, compete à CNEN e não ao operador da instalação nuclear cumprir a “condicionante” aposta na LP ora examinada. “Art. 9o Cabe à CNEN projetar, construir e instalar depósitos intermediários e finais de rejeitos radioativos. Parágrafo único. Poderá haver delegação dos serviços previstos no caput a terceiros, mantida a responsabilidade integral da CNEN.”

Contudo, a cláusula é capciosa e mostra um descompromisso do órgão ambiental com o seu papel primordial que é o de conceder ou negar licenças. Não cabe ao órgão ambiental formular condicionantes que não possam ser cumpridas, ou que venham a ser cumpridas “de pé quebrado”. O chamado “destino final” dos rejeitos radioativos de alta atividade não foi resolvido no mundo inteiro até hoje e, certamente, não será “antes do início da operação da unidade 3”. Recomenda-se, no particular, uma visita ao sítio do DOE no qual há ampla informação disponível sobre o planejado depósito de rejeitos finais de Yucca Mountain. Para que se tenha uma pálida dimensão do problema, vejam-se a enorme quantidade de ações judiciais propostas contra o empreendimento. A cláusula é, portanto, inteiramente fora de propósito e sem sentido. A quantidade de rejeitos de alta atividade a serem gerados não é significativamente maior do que aquela que já foi gerada e, provavelmente, com o aumento da produtividade da usina poderá ser menor. Aqui estou palpitando, mas gostaria que a questão fosse esclarecida por quem de direito. Ora, se o licenciamento ambiental é tripartido, com uma licença prévia, uma de instalação e uma de operação que se sucedem mediante a comprovação do cumprimento das condicionantes anteriores, fica fácil perceber que a LI é impossível. Todos sabemos que, mais cedo ou mais tarde, a LI será concedida. A condicionante será cumprida ou o destino final que ela preconiza é uma mera meia-sola?

Na verdade, o que tem sido considerado como uma solução definitiva para os rejeitos radioativos de alta atividade não será encontrada antes da entrada em operação de Angra III, a condicionante que se está criticando é uma demonstração muito precisa da crise de identidade do sistema ambiental brasileiro que, em minha opinião, não consegue definir qual o papel a ser desempenhado no contexto nacional. É a expressão do que já tratei em outras oportunidades, a falta de legitimidade básica do licenciamento ambiental e o precário espaço de autonomia que é atribuído às instituições. É evidente que se há uma política de governo que entende necessária a Usina de Angra III, desde que cumpridos os preceitos legais pertinentes, a Usina deve ser instalada. Em nossa legislação não há qualquer norma que estabeleça como condição para a implantação de uma instalação nuclear que o destino final dos rejeitos de alta atividade esteja resolvido. Além do mais, a cláusula é inócua, pois inviável.

Infelizmente uma cláusula relevante como a de 2,373 fica perdida e pouco específica, tendo o mesmo destaque da 2.384. Aliás, considerando-se que ANGRA I e II já operam há bastante tempo, seria muito razoável uma análise detalhada dos impactos das usinas na saúde humana, sobretudo se há um incremento da incidência de câncer, por exemplo, na região. Em dezembro de 2007 foi divulgada matéria na Alemanha na qual se afirma que: “Uma pesquisa feita pela Universidade de Mainz para o Escritório Federal de Proteção contra Radiação chocou as famílias que vivem próximas dos 16 reatores nucleares do país. “Nosso estudo confirmou que, na Alemanha, foi observada uma ligação entre a distância do domicílio em relação à usina nuclear mais próxima no momento do diagnóstico e o risco de contrair câncer, como por exemplo, leucemia, antes do quinto aniversário”, diz o relatório, cujas conclusões foram publicadas na edição deste fim de semana do jornal Süddeutsche Zeitung, de Munique. Essa ligação é “estatisticamente significativa”, diz o estudo. Os pesquisadores descobriram que 37 crianças residentes num raio de 5 km de distância de usinas nucleares haviam desenvolvido leucemia entre 1980 e 2003, enquanto a média estatística esperada para o mesmo período era de 17, segundo o jornal. Foram examinadas 1.592 crianças vítimas de câncer e 4.735 saudáveis, que viveram no mesmo tempo na mesma região. Resultado: quanto mais próximo do reator, maior o risco de desenvolver câncer e vice-versa.”5

Do conjunto das condicionantes da LP penso que podemos concluir, com um grau elevado de certeza, que as cláusulas propriamente ambientais são uma minoria, que a imposição da solução definitiva dos rejeitos de alta atividade é um “jogo para parte da torcida”, pois totalmente inconseqüente e ilógica; a questão referente à norma constitucional do art. 225 § 6º foi convenientemente abandonada e, por meio das cláusulas de compensação ambiental buscou-se apaziguar as resistências locais, não sem antes deixar de azeitar as próximas eleições e as que virão à frente, nas quais já se pode vislumbrar vários “pais” da licença de Angra III.

Não. A LP não foi eco-libertária.

***

1 – AI-AgR 135464 / RJ – RIO DE JANEIRO. elator(a): Min. ILMAR GALVÃO. Julgamento: 05/05/1992. PRIMEIRA TURMA

2 – RE 178836 / SP – SÃO PAULO. Relator(a): Min. CARLOS VELLOSO. Julgamento: 08/06/1999 Órgão Julgador: Segunda Turma

3 – Apresentar dentro do Programa de Saúde Pública, os resultados detalhados dos estudos técnicos desenvolvidos pela FIOCRUZ sobre os possíveis efeitos da radiação, a longo prazo, sobre a população no entorno do empreendimento. Considerar também as teses relacionadas a esse tema. A equipe técnica da FIOCRUZ deve ser consultada sobre a necessidade de dar continuidade a esses estudos.

4 – Apresentar no plano de evacuação em situação de emergência medidas que contemplem os animais domésticos;

5 – http://www.dw-world.de/dw/article/0,2144,2996108,00.html, capturado aos 25 de julho de 2008.

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