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Poucos conservacionistas para muita biodiversidade

O Brasil precisa de mais profissionais em biologia da conservação. Mesmo com poucos recursos naturais, países ricos contribuem muito mais com pesquisas.

5 de julho de 2006 · 18 anos atrás
  • Suzana Padua

    Doutora em educação ambiental, presidente do IPÊ - Instituto de Pesquisas Ecológicas, fellow da Ashoka, líder Avina e Empreen...

Uma discussão interessante e ao mesmo tempo preocupante acaba de ocorrer em Chicago sobre a importância da capacitação de conservacionistas e a escassez de profissionais de alto nível na América Latina. A equipe do Brookfield Zôo – muitos deles latinos, como Dr. Alejandro Grajal (venezuelano) e Ricardo Stanoss (argentino), ou um norte-americano com larga experiência de trabalhos de campo nessa parte do mundo como Dr. Stuart Strahl, responsável por uma geração de conservacionistas na Venezuela – convidaram para um encontro de três dias, de 19 a 21 de junho, pesquisadores ou profissionais da conservação que têm experiência em educação. O objetivo foi trocar idéias sobre o status da educação em áreas afins à conservação, que incluem ciências naturais e sociais, para analisar as deficiências, os cursos que podem ser acrescidos ou criados, e os passos que devem ser tomados para uma mudança de patamar referente à realidade nesses países.

A situação na maior parte da América Latina é preocupante. Em comparação com as nações desenvolvidas, que contam com uma fração da biodiversidade encontrada nos países do sul, o número de doutores e mestres é irrisório. O contraste com os Estados Unidos, por exemplo, mostra uma enorme disparidade. O mais irônico é que as publicações sobre os locais de alto índice de biodiversidade são predominantemente escritos por autores do primeiro mundo. Portanto, o saber está desconexo quando comparado à geografia da biodiversidade.

Jon Paul Rodrigues, por exemplo, experiente conservacionista venezuelano e membro da Wildlife Trust Alliance, ajudou a organizar o encontro e mostrou uma pesquisa reveladora. Nos 26 países que compõem a América Austral e América Neotropical – que vai do México ao sul da Argentina – existem apenas 12 programas acadêmicos em biologia da conservação e 42 que mencionam cursos ligados às ciências naturais ou à conservação. Em contrapartida, nos EUA existem 95 programas de biologia da conservação que vêm formando uma massa de profissionais que estão sempre em evidência, publicando e ditando as tendências de como atuar, principalmente nas regiões onde a biodiversidade é mais predominante. Jon Paul fez um exercício e estimou quantos cursos seriam necessários no sul para se chegar ao mesmo nível de ofertas dos EUA. Se a comparação levasse em conta o número de habitantes dessas regiões geográficas para se ter uma equivalência do que é oferecido nos EUA, a quantia de cursos seria 174. Entretanto, se a comparação se referisse ao número de aves (sem considerar toda a biodiversidade encontrada nesses países do sul) o número de cursos deveria ser 351.

Importância do saber

Por que é tão importante disponibilizar ensino superior nas áreas da conservação? Não há dúvida de que a massa crítica que se forma quando se tem uma quantidade de profissionais bem preparados faz uma enorme diferença. Basta observar os caminhos trilhados pelo primeiro mundo ou os países emergentes e os investimentos nas áreas da educação.

Claudio Pádua recentemente publicou um ensaio na revista Conservation Biology enfatizando que o verdadeiro desenvolvimento está no saber. Quando analisa a situação de países que chegaram a avanços significativos, percebe que o conhecimento é a base para um progresso que independe de exploração da natureza. O conhecimento leva ao avanço de tecnologias e de participação que podem influenciar políticas públicas. A chave pode estar no uso sustentável dos recursos naturais com base em conhecimentos científicos e em descobertas que podem contribuir para um mundo mais equilibrado. São esses os conhecimentos com potencial de serem exportados e não os recursos naturais de nosso país.

Infelizmente, o Brasil insiste na exploração de recursos naturais, uma prática histórica sempre voltada às exportações e não às necessidades internas. Outra preferência nacional perniciosa tem sido a troca da biodiversidade por monoculturas como a soja, que com certeza representa um atraso que jamais levará a um progresso sustentável ou a um desenvolvimento com eqüidade. Muito pelo contrário, essas práticas têm acirrado a desigualdade social e a destruição das riquezas naturais que sempre foram consideradas singulares no Brasil.

Disparidade Um estudo de Castro e Locker de 2000 indica que doações para conservação realizadas por 118 diferentes fontes entre 1990 e 1997 somaram 3.2 bilhões de dólares, dos quais 70% se destinaram à proteção de Unidades de Conservação e apenas 4,3% à capacitação. Mais uma vez se percebe que dar peixe não é suficiente para se solidificar um trabalho eficaz e de longa duração, que dependerá de se ensinar a pescar.

Com o saber concentrado no norte, não é de se estranhar que o número de publicações seja totalmente desbalanceado. Existe uma predominância de mais de 50% — por vezes chegando a 80% e dependendo do país até mais – de autores do norte publicando pesquisas sobre a biodiversidade do sul. Essa discrepância só tende a crescer com o aumento de pesquisadores sendo capacitados no norte e a falta de oportunidades no sul.

Um artigo de Ricardo Bonalume Neto, publicado na Folha de São Paulo em 29/11/2005, aponta para o fato dos americanos produzirem mais pesquisas e publicarem mais que os brasileiros sobre a floresta amazônica, muitos sem qualquer colaboração de cientistas daqui. Apenas 37% dos artigos publicados incluem ao menos um autor brasileiro, segundo os dados compilados por Adalberto Val, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), que lamenta por considerar essa taxa uma perda da soberania nacional.

Fabio Scarano, professor de Ecologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), parece concordar com essa linha de pensamento. Suas palestras enfatizam que o país com maior biodiversidade do planeta precisa, para fins de soberania, estar na ponta do conhecimento sobre sua biodiversidade. Segundo ele, levantar informação gera conhecimento, e país que produz conhecimento é um país soberano. Só conhecimento permite a aplicação segura de ações, ou uma busca sólida de soluções para os problemas detectados.

A reunião de Chicago contou com a presença de pesquisadores de vários dos países das Américas Central e do Sul, principalmente aqueles que têm papel de multiplicadores no processo de ensino. Também participaram três representantes de agências doadoras -Gilberto Cintron, do Fish and Wildlife Service, dos EUA, Steve Cornelius, da MacCarthur Foundation e Jaime Cavelier, da Moore Foundation -, todas com tradição em apoiar capacitação, o que não é muito comum entre financiadores. Os três ofereceram orientação valiosa no sentido de como apresentar um projeto de maior escala que seja atraente a um financiador, cujo objetivo é formar uma rede de multiplicadores com cursos de pós-graduação (especializações, mestrados e doutoradas) que, após a conclusão, garanta por três anos ao graduado uma posição em alguma instituição de ensino.

Desafios

Os desafios para se implantar um programa de capacitação são muitos. Por exemplo, as discussões giraram em torno do que leva um profissional a se tornar um conservacionista. Nem sempre os doutores e mestres das áreas ecológicas ou afins se dedicam à implementação de suas pesquisas. Outra questão é como incluir aspectos sociais ao ensino ecológico, cruciais para se ter uma eficácia nas abordagens adotadas em conservação, já que são as atitudes e comportamentos humanos aqueles que mais protegem ou destroem o ambiente natural.

Desafios institucionais também foram abordados. Por exemplo, como criar cursos novos em instituições que resistem a mudanças? As universidades públicas, que em geral não só no Brasil são as melhores, são engessadas e levam muito tempo a se estruturar para adotar novos campos do conhecimento. Já as instituições particulares, que certamente dependem de lucros para sobreviver, não são atraídas pelas áreas da conservação, que comumente contam com verbas limitadas ou insuficientes para capacitação. Houve ainda uma troca de idéias de como estimular uma integração de instituições, já que a idéia é formar uma rede que permita um intercâmbio dos alunos entre os países participantes.

Um dos maiores desafios é, sem dúvida, a obtenção de fundos para se montar um programa como esse. A idéia é reunir várias instituições interessadas em capacitação, para que juntas possam submeter uma proposta a uma organização doadora. Quem escreve tal proposta, quais os critérios de escolha das instituições participantes e como identificar os alunos interessados, são apenas alguns dos temas que irão necessitar de detalhamento minucioso.

No Brasil, um exemplo prático de todo esse processo foi vivenciado pela equipe do IPÊ (Instituto de Pesquisas Ecológicas). Em 1992, houve uma tentativa frustrada de se criar um Mestrado em Biologia da Conservação junto com a USP de Piracicaba (Esalq). Mesmo com perspectivas promissoras, a idéia nunca avançou. A burocracia reteve a iniciativa e as tentativas foram em vão.

Com o tempo, o IPÊ fundou o Centro Brasileiro de Biologia da Conservação (CBBC), que oferece cursos de curta duração em áreas ligadas à conservação não disponíveis em outras instituições de ensino, ou, ao menos, não com as perspectivas que o IPÊ considera importantes. O CBBC deu origem a um novo programa, o primeiro mestrado profissional em ecologia no Brasil, que acaba de ser autorizado pela Capes, Ministério da Educação.

Em parceria com a Natura, uma empresa brasileira apontada como modelo nacional e internacionalmente por seu compromisso socioambiental, um campus universitário está sendo construído em Nazaré Paulista (SP) para sediar o novo mestrado. Esse pode ser um passo ainda tímido para reverter o quadro da escassez de oportunidades de ensino em conservação e desenvolvimento sustentável no Brasil. Mas, certamente irá dar uma contribuição na formação de mais mestres, e quem sabe sirva de exemplo a outras instituições e empresas, chamando a atenção para a importância do tema. Que a idéia contagie e se multiplique!

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