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Um país e seis biomas

A consciência ecológica dos brasileiros deve aumentar quando passarmos a ver o país como uma constelação de biomas, em vez das tradicionais divisões políticas.

3 de novembro de 2005 · 18 anos atrás

Os conceitos fundamentais do pensamento ecológico, muitas vezes abstratos ao serem estudados em livros ou aulas, ganham uma nitidez admirável quando os vivenciamos em circunstâncias concretas. É neste momento que revelam todo o seu poder para iluminar o nosso entendimento de conjunturas específicas.

Vivi uma situação assim em 1994, quando trabalhava em projetos de conservação florestal no sul do Chile. Observei com certo espanto a intensa presença de empresas, cientistas e ambientalistas canadenses atuando naquela área e me perguntei sobre o porquê deste fenômeno: que relação poderia existir entre realidades tão distintas como o Chile e o Canadá?

O mapa das “Províncias Biogeográficas do Mundo”, elaborado em 1975 por Miklos Udvardy, me auxiliou a recordar o que eu já sabia em teoria, mas nunca tinha visualizado com tanta clareza. As “Florestas Temperadas Úmidas” da costa Sudoeste do Chile eram da mesma natureza das “Florestas Temperadas Úmidas” da costa Noroeste do Canadá. A identidade entre os ecossistemas, situados em dois pólos da costa Oeste das Américas, ao longo do Oceano Pacífico, criava uma linha de força potencial nas relações internacionais, por onde passavam, no eixo Norte-Sul, empresas de exploração, estudiosos e defensores daqueles bosques.

Pensar o planeta como um conjunto de províncias biogeográficas, que podem ser agregadas em alguns grandes biomas, é um componente importante da consciência ecológica. O mapa de Udvardy permite visualizar a lógica da simetria Norte-Sul que existe na distribuição dos biomas planetários. De maneira geral, em latitudes semelhantes ao Norte e ao Sul costumam existir biomas igualmente semelhantes: Florestas Temperadas no Norte e no Sul, Savanas no Norte e no Sul, Desertos no Norte e no Sul etc.

É verdade que precisamos considerar também a distribuição desigual das massas continentais. As Florestas Temperadas do Norte, por exemplo, espalham-se por enormes áreas continentais no Canadá e na Rússia, enquanto nas mesmas latitudes ao Sul existem massas de terra muito menores. Mesmo assim podemos observar Florestas Temperadas ocupando espaços significativos no Chile, na Argentina, na Austrália e na Nova Zelândia.

O estudo dos biomas planetários ajuda a entender muita coisa da história e da economia globais. No caso do bioma “Florestas Tropicais”, por exemplo, que se distribui longitudinalmente ao longo da linha do Equador, a simetria não é Norte-Sul e sim Leste-Oeste. Por esse motivo as empresas estrangeiras que mais ameaçam a Amazônia no futuro próximo não são as canadenses, acostumadas a explorar florestas temperadas através do corte raso, mas sim as madeireiras do Sudeste Asiático, acostumadas a fazer uma exploração seletiva – intensa e predatória – em Florestas Tropicais. O discurso de vir para a Amazônia com o objetivo de praticar o “corte sustentável” é contraditório com a realidade. Se esse corte é tão “sustentável”, por que não foi capaz de sustentar-se em seu lugar de origem? Por que essas grandes madeireiras precisam cruzar o planeta em busca de Florestas Tropicais que ainda sejam ricas em madeiras nobres e valiosas?

Esse tema revela-se também essencial para um país como o Brasil, que possui dimensões continentais. A mega-diversidade das formas naturais existentes em nosso território estimula a busca de sistemas de classificação que ajudem a organizar e sintetizar esse quadro, facilitando a identificação dos seus muitos recursos.

As populações de língua tupi, que habitavam o litoral Leste do Brasil quando da chegada dos europeus, já realizavam um exercício dessa natureza, criando palavras para distinguir os grandes conjuntos naturais observados em suas constantes andanças pelo território. Uma chave para isso são as palavras iniciadas por Caá (mata). A Mata Atlântica e a Amazônia, ao que parece, eram identificadas pelo sugestivo nome de Caá-Etê (mata verdadeira) e Caá-Guaçu (mata grande), fazendo justiça à sua grandeza e complexidade fisionômica. Caminhando em direção ao interior do Nordeste e do Centro-Oeste apareciam a Caá-Tinga (mata branca) e a Caá-Tã (mata dura). Penetrando na Várzea Amazônica aparecia a Caá-Yg-Apó (mata que a água invade).

É verdade que ainda está em discussão o sentido do uso indígena dessas palavras, que chegaram até nós filtradas pelas grandes transformações culturais ocorridas com a colonização européia. Mas o objetivo de classificar de alguma forma o território parece evidente, inclusive deixando marcas explicitas na língua e na geografia brasileiras.

Com o início da investigação científica sistemática da natureza brasileira, especialmente através dos viajantes naturalistas europeus no século XIX, outras propostas de classificação começaram a aparecer. Uma das mais deliciosas foi formulada por Carl Friedrich Philipp von Martius. Em seu discurso sobre “A Fisionomia do Reino Vegetal no Brasil”, de 1824, o autor da Flora Brasiliensis, valendo-se de referencias à mitologia grega no estilo da cultura neo-clássica européia, classificou a diversidade ecológica do território brasileiro em 5 grandes reinos, simbolizados por deusas ou ninfas gregas.

O labirinto de rios da Floresta Amazônica era o Reino das Náiades, deusas dos regatos e fontes. A Caatinga nordestina, onde muitas plantas nascem e morrem anualmente, era o Reino das Hamadríades, ninfas mortais dos carvalhos, que nasciam e morriam com as árvores que lhes serviam de morada. As montanhas e serras da Mata Atlântica justificavam sua identificação com o Reino das Dríades, deusas imortais dos montes cobertos com bosques de carvalho. Os sertões interioranos do Cerrado correspondiam ao Reino das Oréades, ninfas imortais que governavam os campos a serviço de Diana, deusa da caça… (1)

Com o andar do tempo, outras classificações, mais sisudas e menos poéticas que a de Martius, foram feitas para identificar os tipos de vegetação do Brasil, procurando relacioná-los com os diferentes climas, geologias e hidrologias do nosso vasto território. O geógrafo Aziz Ab’Saber, por exemplo, dividiu o país em 6 domínios morfoclimáticos. O botânico Carlos Toledo Rizzini desenhou um sistema fitogeográfico baseado em 3 domínios e 9 sub-províncias. Nos últimos anos, porém, a idéia de distribuir conceitualmente o espaço ecológico brasileiro em 6 biomas vem ganhando força, consolidando-se em 2004 com o lançamento, pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA) e pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) , do “Mapa dos Biomas Brasileiros”.

O uso da imagem de “biomas”, ao meu ver, possui uma série de vantagens em termos de comunicação, educação e política de desenvolvimento sustentável. O conceito possui, inicialmente, uma grande capacidade de agregação. A idéia de bioma unifica um conjunto de ecossistemas que possuem identidades físicas, ecológicas e até culturais. Cada bioma, na verdade, constitui um mosaico de ecossistemas. A Mata Atlântica, por exemplo, pode ser subdividida, através de uma linguagem científica de difícil compreensão para o grande público, em florestas estacionais – semideciduais ou deciduais – e florestas ombrófilas – densas e mistas. É claro que, em termos de conscientização e esforço de conservação, compreender a necessidade de preservar o bioma em sua integridade é mais relevante do que conhecer esses detalhes. Ao definir uma quantidade pequena de unidades – seis ao todo – que unificam o território brasileiro, a idéia de “biomas brasileiros” pode gerar uma consciência sinóptica e motivada sobre a importância de cuidar da riqueza e da diversidade ecológica do país.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A idéia de biomas possui uma territorialidade bem definida, formando unidades geográficas contínuas, como se pode ver no mapa acima, que estabelecem identidades entre estados vizinhos (apesar de alguns estados maiores poderem compartilhar diferentes biomas em seu interior). A designação dos seis grandes biomas, por outro lado, vale-se de termos que já ganharam densidade e popularidade na linguagem e na cultura das várias regiões. Longe de serem herméticas ou cientificistas, as palavras “Amazônia”, “Caatinga”, “Mata Atlântica”, “Cerrado”, “Pantanal” e “Pampa” são de fácil compreensão, invocando em indivíduos e setores sociais um sentimento de pertencimento e identidade. Apesar de separados por milhares de quilômetros, por exemplo, acreanos e paraenses não têm dificuldade em identificar-se como “amazônidas”.

O aspecto mais importante, a meu ver, no que se refere ao avanço da consciência ecológica no Brasil, é começarmos a entender o país como uma constelação de biomas, para além das tradicionais divisões políticas, em estados e regiões, que condicionam o planejamento econômico e as políticas públicas – até pelo fato de os biomas apresentarem uma imagem mais concreta da realidade nacional. O Cerrado mineiro, por exemplo, tem mais identidade, inclusive em termos econômico-sociais, com os Cerrados de Goiás e Mato Grosso, formalmente na região Centro-Oeste, do que com as regiões litorâneas do Sudeste, domínio da Mata Atlântica.

A idéia de “biomas brasileiros” tem potencial para transformar-se em importante ferramenta conceitual para a educação ambiental e o desenvolvimento sustentável. É importante lembrar que a vida social e cultural dos seres humanos, que define seus vínculos e identidades, se desenvolve em espaços ecológicos específicos, dotados de determinadas características. Não se trata de determinismo ecológico, mas sim da simbiose necessária entre a realidade biofísica e a condição humana. Não apenas a economia, mas também a memória dos indivíduos e grupos sociais, está relacionada com o ambiente vivido. A paisagem é o elo necessário entre sociedade e natureza.

Ao trabalhar o tema da importância e das características do bioma dominante onde as pessoas vivem, do lugar ecológico onde existe cada localidade brasileira, é possível trazer a discussão ambiental para mais perto da sociedade, esclarecendo a relevância dos serviços ambientais que a natureza presta em cada região. É possível criar uma espécie de “patriotismo ecológico”, através do qual cada indivíduo se sinta, ao mesmo tempo, cidadão de unidades políticas (município, estado, país etc.) e ecológicas (bioma, planeta etc).

Não se trata, por certo, de fomentar a divisão e o chauvinismo ecológico, mas sim de fortalecer o sentido de respeito e intimidade com o lugar onde se vive. Esse deve ser o primeiro elo para aprender a cuidar do mundo natural. Lembrando que os vários biomas, como sempre acontece, estão interligados uns com os outros, sendo todos igualmente importantes na grande cadeia de interdependência que constitui o mundo biofísico. É importante, nesse sentido, que a sociedade brasileira compreenda a interdependência entre os vários biomas que formam o seu território, inclusive em termos de clima, chuvas, bacias hidrográficas, etc.

A idéia de “biomas brasileiros” é também fundamental para o desenvolvimento sustentável. Freqüentemente se critica o caráter abstrato do atual pensamento econômico, que produz um planejamento descolado da realidade geográfica, muitas vezes com conseqüências trágicas do ponto de vista ambiental. No mundo da globalização irreversível, mais do que nunca, é preciso igualmente saber “localizar”. O desenvolvimento sustentável busca exatamente uma harmonização mais inteligente entre as praticas econômicas e a realidade ambiental. Infelizmente, porém, isso raramente acontece. É o caso da continua expansão da pecuária bovina na Floresta Amazônica, quando existem outras paisagens muitos mais adequadas para essa atividade, como os campos e cerrados. Nas diversas regiões do país, no entanto, observa-se o aparecimento de projetos econômicos alternativos, que visam demonstrar a possibilidade do desenvolvimento sustentável – gerador de trabalho e renda sem desequilibrar o meio ambiente – em simbiose com cada bioma.

Em suma: é preciso encontrar formas inovadoras de aproximar a consciência ecológica da vida cotidiana das pessoas. A difusão da idéia de “bioma” e de “desenvolvimento bio-regional” pode ser um passo essencial nessa longa caminhada.

(1) Uma boa discussão sobre essa e outras classificações pode ser encontrada no livro “Conexões Florísticas do Brasil” de Afrânio Fernandes, Fortaleza, 2003. O historiador ambiental goiano Paulo Bertran, recentemente falecido, apresentou belas reflexões sobre o sistema simbólico-ecológico de Martius no seu livro “História da Terra e do Homem no Planalto Central”, Brasília, 1994.

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