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E agora Brigitte?

Está aberta a temporada de caça às focas no Ártico. O alvo são os filhotes com menos de duas semanas que têm pêlos brancos. Morrem aos milhares e à paulada.

7 de abril de 2006 · 18 anos atrás
  • Frederico Brandini

    Oceanógrafo e líder Avina que participou de várias expedições do Programa Antártico Brasileiro. Trabalhou como Professor do C...

É primavera no Ártico. Período de reprodução e amamentação dos filhotes de focas. Aqueles pompons mamíferos com focinho preto, pelos brancos e olhar inocente, mamando o leite materno. O clima boreal é de pura tranqüilidade e alto astral. O sol tangencia no horizonte e volta a subir. De repente, uma caravana de embarcações vindas do sul (nessa latitude quase tudo vem sempre do sul) encosta no bloco de gelo marinho. Desembarcam vários homens armados com porretes e ganchos e iniciam uma seqüência cruel e desumana de matança de filhotes. Cenas de terror e agonia entre as focas adultas que não sabem como salvar suas crias e, junto com os machos, são abatidas com rifles.

Milhares de filhotes são sacrificados em seqüência com pauladas certeiras na cabeça por caçadores, que procuram cuidadosamente evitar manchas de sangue e cicatrizes no pêlo branco dos recém-nascidos que dura apenas 2 semanas, quando o pêlo branco cai e a pele se torna acinzentada.

O pêlo branco sujo de sangue perde valor no mercado. O sangue quente dos bichinhos escorre pela cabecinha esborrachada e é imediatamente cromatografado pela neve ao redor, como num mata-borrão de sangue, ou escorre para água adjacente. O branco se suja com o vermelho do sangue coagulado de milhares de carcaças de filhotes e indivíduos adultos de foca. É o holocausto sobre o gelo do Oceano Ártico. Em muitos casos os filhotes são esfolados ainda vivos e as mamães focas, que se salvaram pulando na água, ficam ainda por horas ao lado de seu filhote morto tentando proteger e amamentar a carcaça. O que sobrou da sua cria.

Esse tipo de caça, ou melhor, de extermínio, ocorre todos os anos entre 15 de março e 15 de maio. Nos últimos 3 anos foram abatidos com porrete quase 1 milhão desses animais indefesos. Mais de 90% eram filhotes com menos de três semanas. É a maior caça organizada de animais selvagens da história da humanidade para atender a três mercados estúpidos:

1) confecção de casacos de pele para as peruas do Hemisfério Norte;
2) gordura animal (como pode no mundo de hoje alguém ainda pagar por isso, sem saber que existem milhões de pessoas que dariam as suas de graça) e
3) a genitália !!!!! Isso mesmo, o pênis de foca é considerado afrodisíaco na China. Justo eles que comem com dois pauzinhos. Nunca entendi de onde saiu essa invenção de que pênis de foca é afrodisíaco. Duvido que Confúcio algum dia tenha dito isso.

A briga

Em 1976 Brigitte Bardot ajudou a liderar uma campanha internacional contra a matança de filhotes de focas do Atlântico Norte, precisamente na região ártica do Atlântico canadense. Desde então a Fundação Brigitte Bardot, uma ONG internacional criada pela própria, luta contra o comércio internacional de espécies ameaçadas e a crueldade humana contra qualquer animal selvagem ou doméstico. No caso das focas do Ártico, as principais estratégias de ação do movimento anti-massacre são (i) o boicote ao comércio de produtos alimentares oriundos de paises que apóiam, toleram ou fazem vista grossa à essa matança em massa para atender a interesses industriais específicos; e (ii) a divulgação de imagens e vídeos com cenas cruéis de extermínio em massa de filhotes de foca – ainda hoje emblemáticas para o movimento internacional de conservação da natureza – procura chocar a opinião pública e aumentar a pressão sobre os governos e tomadores de decisão.

As cenas chocantes ajudaram a banir o comportamento antiecológico das temporadas prêt-à-porter de todo o mundo. A campanha da Fundação BB também obteve sucesso satisfatório do ponto de vista da conservação da natureza, uma vez que a matança de filhotes de foca passou a ser proibida no Canadá a partir de 1987. A garantia de sobrevivência dos filhotes de foca do Ártico se manteve por alguns bons anos, exceto na província de Newfoundland. A Suprema Corte local considerou inconstitucional a moratória da caça de filhotes e a matança continua desde então, bem como a luta do movimento ambientalista internacional liderado pela Fundação BB.

Em 15 de março deste ano, o governo do Canadá acabou por se envolver em mais um round da luta contra a Fundação BB, que conta com 30 empregados trabalhando em regime permanente no escritório em Paris, 323 “vigilantes voluntários” e recebe doações de 57 mil associados doadores espalhados em 60 países. Ou seja, a luta vai ser acirrada.

Os argumentos de ambos os lados do conflito são as armas da batalha. Relatórios do governo canadense afirmam que a população de focas triplicou desde 1970 e que a população precisa ser controlada para o bem dela mesma e, obviamente, para o bem das indústrias pesqueiras – que contribuem com menos do que 3% do PIB de Newfoundland com a exploração desse comércio estúpido e insustentável. Estima-se que ainda existam cerca de 5 milhões de focas ao largo do Canadá, Groenlândia e Rússia. A indústria pesqueira e seus interlocutores governamentais dizem que esse número é excessivo e é responsável pela queda dos estoques de bacalhau e salmão, prejudicando a pesca.

Visão simplista

Pura bobagem! O movimento ambientalista e os cientistas mostram o outro lado da história. O verdadeiro. Nada está provado em relação à culpa das focas pelo declínio dos estoques de peixes de interesse comercial. Muito pelo contrário. Essa é a visão simplista e linear de uma única cadeia alimentar. Coisa rara na maioria dos ecossistemas, tanto marinhos quanto terrestres. Como em todos os oceanos, a teia alimentar do Ártico é multilinear e extremamente complexa, formada por inúmeras cadeias alimentares interligadas. Veja se dá pra entender alguma coisa no esquema que representa a teia verdadeira do Mar Ártico.

A foca é parte integrante dessa teia intrincada; ou seja, ela come e é comida por outros carnívoros do topo da pirâmide ecológica local. Precisa de muita energia para crescer, reproduzir e reservar gordura como isolante térmico contra o frio polar, que pode chegar a algumas dezenas negativas de graus Celsius. Portanto, alimenta-se de mais de 60 espécies de peixes, lulas e crustáceos.

O declínio de salmão está mais associado à alteração do curso dos rios tais como barreiras hidrelétricas, transposição de cursos de água para irrigação, desmatamento seguido de assoreamento e poluição por metais pesados de mineradoras. O colapso do bacalhau do Atlântico Norte está claramente associado à sobre-pesca. As focas não têm nada a ver com tudo isso.

Antes da chegada dos europeus na região, no século XVII, a população de focas era estimada em 24 milhões. Hoje, após décadas de caça intensiva são menos de cinco milhões. No último triênio 2003-2005 foram mortos quase um milhão de focas, a maioria filhote com menos de três semanas. Desde a década de 60 até 1996 a quota de caça era de 129.999. Agora em 2006 aumentou para 325.000. Fora a Rússia que abate anualmente 80.000 focas todos os anos e de modo mais cruel ainda.

É possível que o declínio da população de focas com esse extermínio anual em massa diminua ainda mais os estoques de peixes comerciais. Com menos focas, aumenta a população de peixes que a foca come. E eles também comem outros peixes, inclusive salmão ou bacalhau! Deu pra entender a relação causa-efeito? Um mínimo de conhecimento ecológico é suficiente pra tirar a foca do banco dos réus e torná-la novamente a vítima de mais um das centenas de interesses comerciais da indústria de pesca.

A matança já começou. Está acontecendo nesse momento, pois no Ártico o dia tem praticamente 24 horas nessa época do ano. Os mercenários dessa guerra ambiental não têm tempo a perder. São pagos pelo número de animais abatidos. E a temporada de caça tem prazo para terminar ou um número máximo de abates autorizados para executar. O que acabar primeiro. Nos próximos cinco anos o governo canadense condenou à morte por bordoada na cabeça e esfolamento in vivo cerca de 1.650.000 focas. Além do impacto na teia alimentar marinha do Ártico, o efeito psicológico pode aumentar a potência sexual de pelo menos 1.650.000 felizardos chineses, comedores de pinto de foca. Isso também não é bom. Melhor é deixar as focas se reproduzirem e criarem seus filhotes em paz.

Leia mais nos sites:

The Humane Society of the United States
Protect Seals

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