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De volta à trilha transcarioca seis anos depois

É possível cruzar a cidade do Rio de Janeiro pelas trilhas em suas áreas verdes. Mas quem faz isso hoje se depara com vestígios de caçadores e casas irregulares em construção.

2 de fevereiro de 2007 · 17 anos atrás

Desde pequeno percorro as trilhas do Rio de Janeiro. Comecei com cerca de sete anos de idade, participando de excursões com o grupo escoteiro João Ribeiro dos Santos. À medida que fui crescendo, comecei a me enveredar sozinho pelas matas da Serra da Carioca, próximas à casa da minha mãe em Laranjeiras. Quando este torrão se esgotou, passei a explorar a Floresta da Tijuca e, depois, a Pedra Branca, o Mendanha, a Bocaina e a Serra dos Órgãos.

Mais velho, tomei gosto por viajar pelo exterior e percorrer trilhas de longo curso. Entre outras, caminhei longos trechos da Appalachian Trail, nos Estados Unidos, completei os 250 km da Great North Walk na Austrália e finalizei trilhas de mais de quatro dias na África do Sul, no Quênia, na Malásia e na ilha francesa de Reunião.

Ao juntar minha paixão pelas trilhas cariocas e a experiência em travessias no estrangeiro, me dei conta que o Rio também tinha sua trilha de longo curso. Ligando as diversas picadas que conhecia na Pedra Branca e na Tijuca, com pouquíssimas lacunas, seria possível caminhar sem interrupção por dentro da floresta desde a Marambaia até quase ao Pão de Açúcar.

Pus-me então a explorar as matas em busca das poucas ligações que completariam o percurso, fechando as lacunas. Sem abrir trilhas novas, mas apenas caminhando por picadas já existentes, com a companhia de alguns amigos, passei os anos de 1998 e 2001 procurando esses elos. Aos poucos o quebra-cabeças foi se fechando. Em fins de 2000 toda a Tijuca e a Serra da Carioca já estavam mapeadas e interligadas com um trajeto ininterrupto passando pelos principais pontos de interesse. Em princípios de 2001 foi a vez da Pedra Branca. Depois, em abril daquele mesmo ano finalmente encaixaram-se as últimas peças: o trecho que liga a Estrada Edson Passos ao Morro do Caranguejo, passando pelos Pretos Forros e Covanca e o pedaço entre a Grota Funda e a estrada do Morgado, nos confins da Zona Oeste.

Uma vez terminado, o projeto transformou-se no livro “Transcarioca- Todos os Passos de um Sonho”, onde explico como uma trilha de longo curso ligando a Marambaia ao Pão de Açúcar pode ser mais que um mero equipamento de lazer e servir de ferramenta de manejo para a biodiversidade carioca.

Hoje, no Rio de Janeiro, defende o verde apenas uma diminuta comunidade de pesquisadores, biólogos, engenheiros florestais, geógrafos, procuradores e outros profissionais do meio ambiente, além de um punhado de aguerridos ambientalistas. Essa realidade talvez derive da tradicional política de manejo ambiental que encara o visitante como um impacto indesejável nas Unidades de Conservação. No geral, não nos aparelhamos para receber o leigo. Não trazemos as escolas de forma sistematizada para dentro de nossos Parques, temos pouquíssimos programas de interpretação ambiental, concentramos quase toda a visitação em uns poucos pontos completamente antropomorfizados, como o Corcovado e o Pão de Açúcar e, mesmo aos trilheiros, não damos uma noção do todo, canalizando sua imensa maioria para dois ou três destinos, como o Pico da Tijuca e a Pedra da Gávea.

O intuito de não incentivar a visitação monitorada é deixar a mata em paz. Doce ilusão! Em uma área metropolitana do tamanho do Rio de Janeiro, a especulação urbana e o uso econômico são a regra. Não há vazio de ocupação; não há vazio de uso. Os espaços não ocupados pelas pessoas de bem, são preenchidos por gente mal-intencionada. Está aí o exemplo das favelas, onde a ausência do Estado de Direito criou um vácuo logo ocupado pelo poder paralelo do tráfico de drogas.

Enquanto nossas florestas urbanas não forem percebidas por uma substancial parcela dos cariocas como um bem fundamental a ser preservado, elas não terão fiscais nem orçamento suficiente para sua sustentabilidade. As favelas e condomínios de classe média crescerão às suas expensas. Os caçadores, os palmiteiros e os coletores de bromélias seguirão freqüentando as áreas onde os excursionistas não vão.

Nesse sentido, constituir uma Trilha Transcarioca atravessando todo o município do Rio de Janeiro, bem sinalizada e com manutenção freqüente, seria dar oportunidade à cidade de beneficiar-se com o fato de ser cortada ao meio por um corredor verde. Por gerar atividade de lazer, quantificável em valores econômicos e de bem estar à saúde, advinda de seus usuários, uma Transcarioca ajudaria a reverter a lógica corrente de que esse corredor é um entrave à expansão e ao desenvolvimento. Manejar essa trilha, significa assegurar que os Parques do Rio serão ligados por um caminho verde, que terá um grupo permanente de apoio à sua manutenção — os próprios transcarioqueiros e a comunidade montanhista, cujos membros se multiplicariam muito.

Na área entre a Pedra Branca e o Parque Nacional da Tijuca, uma Trilha Transcarioca deve, sobretudo, servir ao objetivo de estabelecer uma coluna vertebral psicológica entre os dois parques. Uma cabeça de ponte para a proteção legal da área em que está inserida. A partir da demarcação da trilha, podemos sonhar com o manejo efetivo daquela área e as medidas práticas benéficas que se seguem, como o reflorestamento.

Quando fui diretor da Floresta da Tijuca, o parque nacional chegou mesmo a recuperar e sinalizar cerca de 60 quilômetros de trilhas cujo traçado era sobreposto ao defendido em “Transcarioca”. Infelizmente, contudo, o projeto não teve continuidade. Hoje, exceto por um punhado de idealistas, não se fala mais no assunto.

Nesse começo de ano, passados cerca de seis anos da publicação de “Transcarioca”, aproveitei as férias no Brasil para, junto com dois desses idealistas, percorrer novamente um dos trechos menos conhecidos da Transcarioca, a picada que liga a estrada da Grota Funda, entre o Recreio e Guaratiba, e a estrada do Morgado em Vargem Grande. Fui com o mesmo companheiro de seis anos atrás, Flávio Gondim, além de seu irmão Francisco. Criados no alto da Boa Vista, os Gondim são dois dos melhores mateiros que o Rio de Janeiro já pariu. Conhecem a Floresta da Tijuca e a Pedra Branca como a palmilha de seus pés.

Encontramos uma trilha bastante utilizada, mas não para visitação ou manejo. Iniciamos a caminhada no topo da estrada da Grota Funda, mesmo ponto de partida da última vez que fizéramos esse trajeto. Caminhamos uns dez minutos à meia encosta através de um denso capim colonião até virarmos à esquerda e galgarmos o morro da Ilha em direção aos 435 metros de altitude do seu topo. Uma vez vencido o colonião, a trilha abre-se óbvia e fácil de caminhar. Não é uma avenida, não possui canais de drenagem nem tem sinalização, mas seu traçado é claro e há sinais evidentes de quem tem sido utilizada.

Flávio, que percorreu a trilha há poucas semanas, avisa que da borda da floresta ao topo do Ilha são 8 minutos em marcha forçada. Francisco e eu optamos pela velocidade de cruzeiro e gastamos um quarto de hora. Na subida, há menos de 20 minutos do asfalto, deparamos um girau. São degraus bem pregados a uma árvore grande levando a uma espia. Trata-se da forma mais comum de se caçar no Rio de Janeiro. O caçador põe comida (ou ceva, no linguajar popular) embaixo da árvore e sobe no girau, aboletando-se na espia. Quando o animal aproxima-se do alimento, é abatido por cima. Não chega nem a ver seu predador. O engenho dá uma boa pista de quem tem e quem não tem usado essa trilha nos últimos tempos.

Uma vez alcançado o cume do Ilha, a caminhada é feita em uma sucessão de pequenos sobes e desces que nos levam às cumeeiras do Boa Vista (341 m), Francês (347 m) e Morgado (402 m). A trilha, sempre dentro da mata fechada, não é para principiantes, o que não quer dizer que não receba tráfego. Logo após deixarmos o Boa Vista, cuja parte superior ainda não se recuperou de um incêndio causado por balões há cerca de cinco anos, encontramos uma grande lona dobrada e pronta para ser estendida em acampamento. No chão, garrafas vazias de cachaça reiteram a presença recente de caçadores.

Mais adiante, três cachorros cruzam nosso caminho. De dentro da floresta, fora de nosso campo de visão, um estridente assobio os chama. Logo somem. Vão ao encontro do caçador seu dono. Poucos metros abaixo encontramos um segundo girau mas não é o último. Na encosta do Morgado, cerca de 10 quilômetros depois do início da caminhada, ainda há outra espia- esta recém construída, pois os paus pregados em forma de escada ainda estão verdes.

Espanta que ainda haja o que caçar, afinal desde que Magalhães Correa escreveu o Sertão Carioca, em 1936, a fauna da Pedra Branca tem sido vítima de uma perseguição feroz e rarefeitamente fiscalizada. Para quem caminha naquele maciço muitas vezes fica a impressão de que se trata de uma floresta vazia, sem alma.

Mas a tristeza não terminou. Ao descermos em direção ao Morgado, tivemos ainda uma última constação desagradável. Há seis anos a estrada era pouco mais de uma trilha por onde transitavam apenas cavalos e excursionistas, hoje é digna do nome. Foi, até bem próximo ao topo, alargada e terraplanada para a passagem de automóveis. Novas casas estão sendo construídas acima da cota 100, que por lei já é área localizada dentro do Parque Estadual da Pedra Branca.

Aonde isso vai parar? Há esperança? Enquanto observamos a bela vista que se descortina da encosta do Morro do Morgado em direção à Baixada de Jacarepaguá, comentamos o projeto da nova presidente do Instituto Estadual de Florestas do Rio de Janeiro, Yara Valverde, de administrar as unidades de conservação localizadas no município do Rio como um mosaico. A idéia de Yara, utilizando-se ou não dos conceitos propostos em “Transcarioca” é auspiciosa, afinal a Pedra Branca e a Tijuca são complementares e necessitam ser manejadas de forma estreitamente coordenada. Difícil é tirar a idéia do papel. Quem afirma isso já tentou fazê-lo. A experiência de Yara Valverde à frente da APA de Petrópolis, entretanto, mostrou que se alguém é capaz de resolver grandes problemas desse tipo, esse alguém é ela. Contará com nosso apoio.

PS: Em meio à discussão sobre o aquecimento global, o papel das energias limpas e o debate sobre o uso das usinas nucleares no futuro da economia mundial, o jornalista Álvaro Rocha lançou o livro Renato Archer – Energia Atômica, Soberania e Desenvolvimento. Trata-se de leitura indispensável para quem quer entender como se deu a aquisição da tecnologia nuclear no Brasil e quais os caminhos que estão abertos para o país nessa área.

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