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Água de quem?

A captação de água em nascentes, prática comum entre ricos e pobres nas encostas cariocas, torna a floresta mais vulnerável a incêndios e prejudica a fauna.

3 de dezembro de 2004 · 19 anos atrás

Evelyn e Steve Torrence estabeleceram-se no Parque Nacional da Tijuca, no município do Rio de Janeiro, em uma área conhecida como Sertão. Localiza-se na vertente Jacarepaguá da Floresta, cujas cotas mais baixas encontram-se já muito degradadas. Passava por ali em tempos remotos uma belíssima estrada toda calçada em pés-de-moleque, ligando a Taquara da Tijuca ao Sertão da Onça, daí o nome do lugar. Ainda é possível ver longos trechos dessa estrada tanto na vertente do Morro das Pedras, próximo ao Platô do Céu, na parte superior da Floresta, quanto na própria vertente Jacarepaguá, quando se desce no sentido do sítio do Cigarrão.

Infelizmente são apenas trechos, pois a integridade da estrada já está muito comprometida por anos e anos de desmazelo administrativo. No biênio em que o Parque se engajou em combate sistemático a caçadores, aquela região era um verdadeiro covil. Espias, armadilhas e acampamentos os havia a mancheias. Em uma patrulha de fiscalização, foi detido um caçador no momento em que preparava suculento guizado de quatis. De outra feita, apreendeu-se um fogão de cozinha, abastecido por enorme botijão a gás, levado pelos caçadores até o interior de uma gruta onde costumavam dormir as noites.

A área também convive com crescentes fechamentos de acessos a trilhas centenárias e servidões que historicamente têm dado acesso aos montanhistas de Jacarepaguá. Já houve mais de um caso de tiros disparados em direção a excursionistas, cujo único crime é transitar por picadas consagradas por décadas de uso contínuo e ininterrupto.

Outra causa de degradação é o fogo repetitivo que, todos os invernos, se espraia capim colonião acima em direção à Floresta, cujas bordas lambe com calor voraz, movendo anualmente a fronteira entre o colonião e a Mata Atlântica, às expensas dessa última. Incêndios esses que não são acidentais. Beneficiando-se de uma fiscalização próxima do inexistente, têm o notório objetivo de “limpar os pastos” para a escassa boiada que os sitiantes do Sertão insistem em criar nas fraldas da Floresta da Tijuca.

Pois foi nesse contexto que Evelyn e Steve Torrence se estabeleceram. Lá construíram uma casa aparentemente “ecológica”, com uso de energia solar e materiais renováveis. A Secretaria Municipal de Meio Ambiente, contudo, não concordou com a suposta “sustentabilidade” da construção e aplicou-lhe diversos autos de infração. Um deles por captação ilegal de água em nascente.

Tida por muitos como inofensiva, a captação de água em nascentes é um problema muito mais sério do que aparenta à primeira vista. Tanto a captação legal feita pela Companhia Estadual de Águas e Esgotos (CEDAE) quanto a irregular feita por moradores do entorno têm sido danosas à Floresta da Tijuca. Se, por um lado, sabemos que a parte do leão do fornecimento de água da cidade do Rio de Janeiro vem por adutoras que nos ligam ao sistema Guandu Lameirão, na Serra do Mar, é importante lembrarmos que a Floresta da Tijuca (e o Maciço da Pedra Branca) ainda têm seus diversos córregos e rios represados por captações da CEDAE. A própria Floresta da Tijuca deve a existência a seu papel como nascedouro de mananciais; afinal seu reflorestamento, iniciado em 1861, teve por motor principal a recomposição das matas nas cabeceiras dos rios, de modo a acabar com as recorrentes secas que então assolavam o Rio de Janeiro.

Embora a legislação determine que a captação de água em Parques reverta compensação financeira para as áreas afetadas, a situação atual é bem diferente. Nem a Pedra Branca nem a Tijuca recebem hoje qualquer investimento extra pelo fato de que a seus usuários seja legalmente vedado o banho de cachoeira, tão comum em outras unidades de conservação. Ao Parque da Tijuca chega-se ao absurdo de lhe ser cobrada conta de água.

Absolutamente pressionada por falta de recursos, a CEDAE não tem sido capaz sequer de garantir a vigilância adequada das caixas d’água, que via de regra têm se transformado em piscinas gratuitas, com graves riscos para a saúde pública. Estes são os casos flagrantes da represa dos Ciganos, que abastece o hospital Cardoso Fontes, e da represa de Camorim, em Jacarepaguá.

Esse, contudo, sob o ponto de vista ambiental, não é o problema mais sério, já que as represas oficiais e legalizadas tendem a se localizar na borda da Floresta, longe das nascentes. O que assusta ambientalmente é o crescimento desordenado das favelas, da ocupação por condomínios e, também, da esperteza de alguns membros das classes mais abastadas da sociedade carioca. São as captações irregulares, que infestam os Parques do Rio de Janeiro. Feitas sem autorização ou critério, nos últimos anos elas se multiplicaram em progressão geométrica e hoje se interpõem a todos os rios e córregos das Unidades de Conservação cariocas.

Os Torrence não estão sozinhos. Há inúmeras represas particulares a roubar as preciosas águas da bacia Ciganos-Pacas, a mais importante da vertente Jacarepaguá do Parque Nacional da Tijuca. Esse padrão se repete em todas as outras vertentes. Na Tijuca, por exemplo, as águas são roubadas para o abastecimento do Borel e Doutor Catrambi; já no Jardim Botânico, as águas do Rio Cabeça são captadas para abastecer gratuitamente diversas mansões de classe média e alta da rua Senador Simonsen e arredores. Quem subir a freqüentadíssima trilha da Cachoeira dos Macacos vai encontrar represa estabelecida à meia encosta da Serra da Carioca. Mas não é possível chegar à casa por ela abastecida. Se um dia a fiscalização se der ao trabalho de seguir o cano que sai da represa irregular, vai bater de frente com bem nutrida e feroz matilha de cahorros.

Captar água – essência da vida – pode parecer crime de pouca gravidade, fazê-lo em Parques Nacionais e Estaduais, entretanto – sobretudo nas proporções de hoje – acarreta conseqüências gravíssimas. Recente estudo realizado pela equipe da professora Ana Luíza Coelho, da UFRJ, aponta para a extinção da Floresta da Tijuca em 20 anos, se mantidos os atuais níveis de degradação. Essa degradação hoje se dá basicamente por incêndios provenientes dos pastos e áreas de macega contíguas ao Parque Nacional que, a cada ano, calcinam uma nova área no perímetro do Parque, diminuindo progressivamente sua área útil.

A relação desses eventos com a captação ilegal de água é direta. O roubo de água, feito a meia encosta por toscas represas e canos de borracha, que aliás ensejam grande desperdício, esvazia os leitos dos rios à sua jusante e reduz enormemente a umidade das bordas da Floresta, justamente a área que entra em contato direto com o fogo proveniente de seus limites externos. Ressecada, quando podia estar úmida, a floresta perde muito em resistência e vira comburente fácil para as queimadas de inverno.

Analogamente, a fauna é vítima contumaz desse processo. A água é fonte da vida não só para a espécie humana mas também para os diversos mamíferos, répteis e aves da floresta que, tendo estancado seu acesso ao líquido precioso nas cotas mais baixas, acabam por se concentrar densamente nas áreas de maior altitude da Tijuca e da Pedra Branca, onde os córregos ainda vertem livres, antes de serem captados.
O resultado é que, dos 70 pontos de caça desativados pela equipe de fiscalização do Parque Nacional da Tijuca entre 1999 e 2000, mais de 60 estavam localizados às margens das partes altas dos rios e córregos da Floresta. Muitas vezes, beneficiando-se os caçadores das próprias trilhas de manutenção das captações ilegais para escolher os melhores pontos onde colocar suas armadilhas e montar suas tocaias. Isso, somado aos malefícios advindos do maior número de encontros entre predador e presa e a redução da área útil utilizada pelas espécies mais dependentes do consumo freqüente de água, é causa para grande preocupação.

Infelizmente, o problema não é de fácil solução. Afinal, sem água as comunidades faveladas não viveriam. Simplesmente destruir as represas ora existentes apenas causaria um clima de guerra entre os seus moradores e as autoridades ambientais. Urge, contudo, começar a buscar formas de se equacionar esse flagelo. Já é passada a hora da CEDAE se coordenar com os responsáveis pela fiscalização ambiental, de forma a sincronizar a instalação de fornecimento regular de água com a interrupção do represamento ilegal dos córregos localizados à montante dessas comunidades.

Quanto às habitações abastadas, que são as responsáveis pelas captações feitas sobretudo nas vertentes Gávea e Jardim Botânico, é imperioso que se coloque um paradeiro a essa prática. A CEDAE poderia contribuir, cumprindo a lei que determina compensação financeira pela captação de água em Parques. Essa compensação poderia ser em forma de salário para guardas florestais especialmente designados para patrulhar os mananciais, o que, em última análise, interessa à própria CEDAE. Somente com uma política séria de fiscalização resolveremos o problema ambiental que se avizinha e todos os seus derivados, do qual as questões da pressão sobre a fauna e da maior vulnerabilidade ao fogo das bordas da Floresta da Tijuca são apenas dois exemplos.

Esperemos que a iniciativa da Secretaria Municipal de Meio Ambiente vá além do sertão e chegue à cidade, tanto a dos ricos e remediados quanto a dos que se aglomeram em favelas. Os Parques do Rio agradecerão.

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