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As Reservas Extrativistas são Unidades de Conservação?

O extrativismo devia ser solução temporária para a pobreza da população rural. Nunca opção preferencial para combater desmatamento e conservar a natureza.

12 de julho de 2006 · 18 anos atrás
  • Fabio Olmos

    Biólogo, doutor em zoologia, observador de aves e viajante com gosto pela relação entre ecologia, história, economia e antropologia.

Acho extremamente interessante o embrião de debate surgido em O Eco sobre reservas extrativistas (resex). Idéia tupiniquim que combinaria conservação com justiça social, as resex se tornaram o carro-chefe da política ambiental para a Amazônia e agora se espalham por outras regiões, como a faixa costeira e, última idéia, o Cerrado.

Em 1998, eu trabalhava como consultor do Planafloro em Rondônia. Uma das tarefas que coube a mim foi coordenar uma Avaliação Ecológica Rápida (AER) da Reserva Biológica do Rio Ouro Preto, uma das várias unidades de conservação criadas pelo estado para ter acesso ao dinheiro do Banco Mundial (um toma lá dá cá que não funcionou para as áreas protegidas.

A tal reserva biológica é vizinha da Reserva Extrativista (federal) do Rio Ouro Preto. Após selecionarmos através de imagens de satélite o ponto onde nossa equipe iria trabalhar e pensar como chegaríamos lá, fomos a campo para ver a situação real. Uma decepção. Uma família de seringueiros havia causado um incêndio ao limpar sua roça da maneira tradicional e este havia adentrado a reserva biológica, torrando a serra onde havíamos planejado trabalhar. Em busca de outro local onde pudéssemos estudar bichos e plantas vivos, e não calcinados, acabamos batendo cabeça por duas semanas procurando acessos através dos igapós da região. Mas isso é outra história. Depois eu soube que nada aconteceu aos autores da detonação.

Tive outros exemplos do “bom” manejo da biodiversidade nas reservas extrativistas rondonienses. Mais recentemente, trabalhando no plano de manejo do Parque Nacional Serra da Cutia, também em Rondônia, abri (mais) os olhos sobre a guerra de desinformação travada pelos “defensores do extrativismo”.

Pela proposta original, o parque deveria ter 451 mil hectares, parte de uma gleba cedida pelo Exército. Mas 181 mil hectares foram destinados a duas reservas extrativistas federais, mutilando o parque ao retirar áreas biologicamente importantes e que têm os atrativos que justificariam o status de parque nacional (e não reserva biológica, por exemplo). A justificativa dada para esta amputação é que na Resex Barreiro das Antas existiriam 400 habitantes, e uma outra, a Rio Cautário, 300. O fato é que a equipe do plano de manejo encontrou cinco na primeira (incluindo um fugitivo da Justiça) e 34 na segunda.

Ceticismo

Ou este é um exemplo de abdução em massa por alienígenas ou mais um daqueles momentos em que a verdade foi chacinada em prol dos objetivos dos “movimentos sociais”. Obviamente, a equipe do plano de manejo propôs que a Barreiro das Antas fosse incorporada ao parque, mas sou cético de que isso acontecerá. Como faz o MST, as associações de seringueiros já devem ter plantado mais neo-extrativistas vindos das cidades próximas à área.

Essa experiência me tornou extremamente cético quando o Ministério do Meio Ambiente e outros simpatizantes das reservas extrativistas informam que há centenas ou milhares de pessoas em determinado local, o que impediria a criação, ali, de um parque ou unidade de conservação de verdade. Quais outras informações “oficiais” não são confiáveis?

Vizinha ao parque nacional existe uma reserva extrativista estadual também chamada Rio Cautário. Ali, o WWF apoiou o projeto de “manejo sustentável” de madeira proposto por uma Ong local. Foi construída uma serraria, um talhão para manejo foi marcado, as árvores etiquetadas, etc. Após a primeira safra ficou claro que a madeira rende muito mais que o extrativismo de borracha e castanha, e com menor sacrifício.

O interessante, durante minha estada na reserva, foi testemunhar a briga entre um dos dirigentes da associação local de seringueiros e alguns de seus comandados porque a “liderança” havia derrubado parte do talhão (incluindo árvores etiquetadas como porta-sementes) para plantar uma roça. Difícil ser sustentável e ganhar um selo verde desse jeito.

Como o sistemático desrespeito à proibição de caça de espécies ameaçadas, sacramentado nos planos de utilização das resex, já relatado aqui, esse incidente me faz duvidar do real compromisso das comunidades extrativistas em refrear a detonação intensa presente e que rende lucro imediato em troca da sustentabilidade futura dos recursos explorados.

Mas essas foram experiências pessoais em uma área geográfica limitada. Há estudos mais amplos sobre a eficácia das reservas extrativistas amazônicas na conservação da biodiversidade? De fato há. É ampla a literatura sobre o uso insustentável de recursos como a castanha do Brasil e a fauna, o que resulta em extinções locais, florestas vazias e alterações em processos ecológicos. Raros são os exemplos em que comunidades extrativistas não estão detonando as populações de uma das espécies exploradas. E quando isso acontece se deve mais a densidades populacionais humanas baixas e/ou em queda do que de atitudes conscientes.

Simples comparação

Há aqueles que acham que isso não é importante porque a floresta, mesmo sem bichos, no fim das contas continua em pé e executando seus “serviços ambientais”, seqüestrando carbono, jogando água para atmosfera e maneirando o aquecimento global. É um argumento pobre. Primeiro por razões subjetivas. Uma floresta esvaziada de sua fauna e de suas grandes árvores é uma sombra do que poderia ter sido, uma decepção, uma promessa não cumprida. Ela está para uma floresta madura, sem intervenção significativa, da mesma forma que o desempenho da seleção francesa esteve para o da nossa naquele famoso jogo alguns dias atrás.

Há razões mais objetivas. Ao eliminar os bichos das florestas, as populações humanas acabam afetando a sua própria composição, pois alteram todo o sistema de predação e dispersão de sementes, entre outras engrenagens que fazem a coisa andar. Estudos recentes mostram que pode haver uma simplificação na composição das florestas (por exemplo, aumentando o número de algumas palmeiras), refletindo nos tais dos “serviços ambientais”.

A coisa se torna mais interessante quando são analisadas taxas de conversão de floresta e a ocorrência de incêndios. No início do ano foi publicado um artigo sobre a efetividade de Terras Indígenas (TIs) e Unidades de Conservação (UCs) contra o desmatamento. Este comparou se as taxas de desmatamento no interior das “áreas protegidas” era maior ou menor do que no seu entorno não protegido.

Embora jornalistas que não devem ter lido o artigo tenham feito fanfarra ao dizer que o mesmo concluía que “terras indígenas são imbatíveis” para a conservação, o artigo mostra que 85% das TIs tinham taxas de desmatamento menores em seu interior em comparação ao seu entorno. Para parques e similares a porcentagem foi de 92%. Um estudo feito pelo Imazon mostra que enquanto 0,8% das UCs de proteção integral está desmatado, o total chega a 1% das TIs. O Imazon também mostra que, enquanto 21% das áreas de proteção integral estão sob pressão humana (2% com presença humana consolidada), o total chega a 28% das TIs (3% de presença consolidada). A estatística mostra que, quanto ao desmatamento e ocorrência de incêndios, ambas as categorias funcionam de maneira similar, as UCs sendo algo menos detonadas em termos absolutos.

E o que estes estudos falam das reservas extrativistas? O primeiro descobriu que, para o pequeno número de resex estudadas, não havia diferenças estatisticamente significativas entre as taxas de desmatamento dentro e fora das mesmas. E o segundo, que agrupou as UCs de “uso sustentável” (exceto florestas nacionais), descobriu que 31% de seu território está sob pressão humana, com 8% já sob ocupação humana consolidada.

Desempenho decepcionante

Ou seja, as reservas extrativistas nem de longe têm o desempenho das UCs de proteção integral ou das TIs em reduzir o desmatamento ou evitar incêndios. Isso não é surpresa quando olhamos estudos do próprio Imazon, que mostram que reservas extrativistas no Maranhão e Tocantins têm cobertura florestal perto de zero. E ainda, que as reservas extrativistas do Acre são hotspots para incêndios devastadores de origem humana ou que a icônica reserva extrativista Chico Mendes já tem quase 30 mil hectares (quase um Parque Nacional do Itatiaia, em tamanho) de pastos porque os seringueiros passaram a ser fazendeiros quando diminuiu o subsídio que os sustentava, e eles tiveram que optar por algo que desse dinheiro.

Afinal, todos sabemos que, na dinâmica econômica atual, a floresta vale mais morta do que viva. Pelo menos para os brasileiros.

Óbvio que as resex são melhores que pastagens e plantações de soja. Mas o que acontece é que elas competem por áreas e recursos com as categorias de proteção integral, apesar de ser bastante claro que as reservas extrativistas têm uma eficiência reduzida como instrumentos para a conservação das florestas em comparação com aquelas. O interessante é que essa ineficiência também está associada a maiores gastos, porque enquanto uma unidade de proteção integral demanda regularização fundiária, proteção e manejo, uma resex demanda tudo isso e mais programas de saúde, educação, alternativas econômicas, capacitação de lideranças, transporte, habitação, aposentadorias, subsídios sobre preços da borracha, bolsa-família, vale-gás, etc., etc., etc., além das associações não serem um primor de lisura no Brasil da corrupção endêmica. Boa parte desse pacote social acaba drenando recursos que deveriam ir para a conservação, em vez de virem de programas sociais.

Uma questão de fundo é que o extrativismo simplesmente é uma barca furada que te leva até o meio do rio, mas não até a outra margem. Em que pesem estimativas de que um hectare de floresta conservada pode gerar mais renda que um hectare de pasto, o fato é que isso tropeça em problemas como a real existência de mercados, o custo do processamento e do transporte e, talvez o mais importante, em questões culturais que tornam difícil uma mudança na forma de uso dos recursos naturais. E há a cruel realidade de que o extrativismo só é viável se os que o exercem fizerem uma opção pela pobreza franciscana, ou forem pesadamente subsidiados pelo contribuinte ou pela filantropia.

Não é surpresa que as resex convivem com a evasão crônica de seus moradores, que acabam migrando para as cidades da região e inflando as periferias, coisa que era regra em Rondônia. Para mim, muito do esforço em prol das resex visa antes evitar esse êxodo rural, livrando os gestores urbanos do pepino representado por populações carentes crescentes em cidades onde a infra-estrutura e o emprego são escassos, transferindo para a natureza a carga de sua subsistência.

Utopia

O antigo extrativismo da borracha gerou riqueza porque não havia concorrência e os seringueiros trabalhavam em semi-escravidão. Quando surgiram plantações comerciais, o sistema colapsou. Como aconteceu com a borracha, o extrativismo nunca poderá competir com sistemas intensivos de produção, sendo viável, e de forma temporária, apenas nos poucos casos em que ninguém estabeleceu plantios ou criações intensivas. O manejo de pirarucu em algumas reservas do Amazonas hoje gera boa renda. Mas o que acontecerá quando surgirem criadouros que produzam o bicho como se fosse frango de granja, como já se tenta em São Paulo?

Não é à toa que surgem tentativas de transformar as florestas em coisas parecidas com plantações através de “ilhas de produtividade”, seguindo o exemplo das quase monoculturas de babaçu e açaí geradas pela ação humana. Humanos sempre procuram simplificar os ecossistemas aumentando as espécies que exploramos, culminando com monoculturas. Diversidade não nos interessa.

Este é o óbvio e ululante que tem sido sistematicamente ignorado, apesar do grande número de trabalhos sobre o assunto. Destes, destacam-se os de Alfredo Homma, pesquisador da Embrapa que sabe o que fala. A inviabilidade intrínseca do extrativismo é a má notícia que ninguém quer ouvir, pois setores do governo fizeram suas carreiras apregoando uma doutrina que está mais para messianismo utópico do que para política sólida.

Sua ineficiência é a razão de fundo pela qual o extrativismo deveria ser visto como solução temporária para a pobreza da população rural de algumas partes do país, e nunca como a opção preferencial para combater o desmatamento, conservar a biodiversidade e trazer inclusão social. A ineficiência também é a razão pela qual o foco do extrativismo mudou para a extração madeireira. A madeira, esta sim, é um produto que pode render dinheiro em pouco tempo, e, ao contrário de coisas como óleos e essências vegetais, tem seu sistema de produção e comercialização bem estabelecidos. Se a exploração é realmente sustentável é outra questão. Seringueiros estão virando madeireiros e pecuaristas. Imagino o que Chico Mendes diria disso.

Soluções

Seria mais racional se, ao invés de criar reservas extrativistas que não são boas nem em gerar riqueza e muito menos em conservar a biodiversidade, os recursos governamentais fossem destinados para unidades de conservação de verdade e no uso adequado dos 67 milhões de hectares já desmatados na Amazônia Legal. Esse vasto espaço, superior à área agriculturada do resto do país, é em boa parte ocupado por pastagens abandonadas ou semi-abandonadas que sustentam mão-de-obra ínfima. A tecnologia gerada pela pesquisa de entidades como a Embrapa já permite que essas áreas possam ser aproveitadas para a produção intensiva de culturas perenes (borracha, cacau, frutíferas, madeira, etc.), algumas das quais são base para o extrativismo, sugestão já feita por Alfredo Homma.

Em tempos de biodiesel, incentivar a migração da população rural amazônica (incluindo extrativistas) para regiões já desmatadas onde possam se tornar produtores e empresários da produção de dendê poderia ser uma opção econômica muito mais interessante do que manter essas pessoas detonando aos poucos áreas ecologicamente importantes para sustentar um padrão de vida abaixo da linha da pobreza. O mesmo vale para o grande leque de produtos tropicais com mercados estabelecidos que poderiam ser alvo de projetos deste tipo. Uma iniciativa como essa teria muito mais chances de gerar emprego, renda e ascensão social e reverter o êxodo rural, do que a prática de dar esmolas que se entranhou em nosso governo.

É sempre bom lembrar que a vasta maioria dos atuais extrativistas é descendente de imigrantes que, três ou quatro gerações atrás, foram incentivados a buscar sua ascensão social em um novo modo de vida em uma nova região, em alguns casos se mesclando, mas em geral eliminando os povos indígenas que ali viviam. Incentivos honestos, desta vez, podem dar a seus descendentes o que o ciclo da borracha só deu de forma passageira e direcionar movimentos migratórios para uma ocupação racional do espaço.

Desvio de função

A política atual sobre reservas extrativistas é resultado da infeliz confusão entre o que seja militância social e conservação de serviços ambientais e biodiversidade. Na década de 1990, associada à Rio 92, ficou clara a estratégia de agremiações que lutavam por grupos sociais marginalizados pelo uso das questões ambientais como seu cavalo de Tróia para conseguir maior visibilidade, apoio político e, principalmente, recursos financeiros.

O bom selvagem ecologicamente correto foi reinventado, com mitologia e pseudo-ciência que o sustenta, e o resultado é que hoje peças como o Plano Nacional de Áreas Protegidas falam muito de índios e quilombolas e pouco de fauna e flora. E projetos como o PPG-7 se dedicam menos a proteger florestas e mais a bancar ações que seriam de entidades de apoio à educação, agricultura e reforma agrária. A substituição da conservação pelo social tem dominado políticas públicas e resulta em um desvio de função sistêmico de resultados duvidosos. O Ibama, para o qual já não faltam atribuições, agora tem uma diretoria de “desenvolvimento sócio-ambiental”.

O fato é que o Brasil se tornou uma festa do caqui. Todo mundo que é pobre e mora em área rural virou “população tradicional” para morder um pouco do escasso bolo dos recursos ambientais ou para validar suas reivindicações. Um evento recente sobre “populações tradicionais” incluiu índios, quilombolas, quebradeiras de coco de babaçu, seringueiros, caiçaras, ribeirinhos, sertanejos, açorianos, pantaneiros, geraizeiros, jangadeiros, fundos de pasto, faxinais, açorianos, pomeranos e até ciganos.

Seria ridículo se não fosse sério, porque cada grupo reivindica direitos especiais, especialmente terras que deveriam ser conservadas, o monopólio de recursos naturais que são de uso comum, ou pura e simplesmente, dinheiro. Por trás do discurso da inclusão social está a busca de direitos exclusivos ou de uma boquinha, o que alimenta a corrupção e formação de feudos particulares em entidades e órgãos que deveriam ser públicos.

No país da Lei de Gerson, populações “tradicionais” estão atreladas a Ongs empenhadas na expansão agressiva de seu mercado de trabalho. Com o governo tomado por seus representantes e repassando recursos aos amigos, quanto mais moda inventarem, mais espaços terão. Prova é o súbito interesse do MMA pelos quilombos, que passaram de 743 a 2.400 neste governo, e nesse ritmo talvez acabem incluindo a totalidade dos estados onde a maioria é afro-descendente. Outra vertente que vai além do oportunismo puro que se aproveita de questões sociais reais são as utopias messiânicas, ligadas à igreja católica, que têm na teocracia das missões jesuíticas da “República Guarani” o modelo de como o Brasil deveria ser.

Essa história toda me incomoda muito, primeiro como contribuinte que vê o dinheiro dos impostos gasto em não-soluções. E segundo porque que a coisa vai muito além da questão ambiental, onde ela germinou, e caminha para questões mais profundas e que afetarão nossa sociedade como um todo, como a oficialização do racismo e a crescente tribalização e fragmentação de uma sociedade que deveria ser multicultural, mas una. Quem viver, verá.

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