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A Ecologia de Grande Sertão: Veredas

Grande Sertão: Veredas faz 50 anos de publicação este ano. É o mais importante e poético registro literário da ecologia e da cultura do cerrado sertanejo.

14 de janeiro de 2006 · 18 anos atrás
  • Sérgio Abranches

    Mestre em Sociologia pela UnB e PhD em Ciência Política pela Universidade de Cornell

Grande Sertão: Veredas faz 50 anos em 2006. É a opera mestra do romance brasileiro. Uma espécie de São Francisco da literatura, que corta toda a cultura do Gerais, até os sertões caatingueiros, passando pelos campos cerrados pantaneiros. Não por acaso, sua ecologia é a do vale do São Francisco. É mineiro e é transcendente, é Gerais e é geral.

Eu sei que o sertão de Grande Sertão não é só o sertão do Joãozito Rosa, de Cordisburgo, nem só o meu e de meu avô Juca, amigo e personagem, esse nosso pequeno pedaço curvelano do grande vasto.

“O senhor vê aonde é o sertão? Beira dele, meio dele?”, pergunta Riobaldo. “O sertão aceita todos os nomes: aqui é o Gerais, lá é o Chapadão, lá acolá é a caatinga.”

Essa indagação de rumos, que se repete por toda a travessia, define a visão do seu ambiente: o sertão é sem fim e, se acaba na terra, “sertão é dentro da gente”, mas não se encerra na alma sertaneja. É um sertão real, que tem idade, feito de veredas, chapadas, bichos, plantas e flores, calorão e muito frio.

“Só aquele sol, a assaz claridade – o mundo limpava que nem um tremer d’água.”

“A gente estava encostada no sol.”

“Na Serra do Tatu, o frio ali é tal, que, em madrugadas, a gente necessita de uns três cobertores. Na Serra dos Confins, meados de julho, lá já está sovertendo o laçaço dos ventos, desencontrados, de agosto; como que venta: árvores caídas”.

Sertão e serra e um mar ilusório, um mar abstrato, este sim, metafórico, feito de mistério e desejo. Como acerta M. Cavalcanti Proença, “romance de rios, romance de afluentes espraiados no sertão, sem saída para o oceano, o mar nele aparece como o grande desconhecido, mistério que se associa à morte, à eternidade, ao fim de tudo, quando a vida deságua no infinito. Este o sentido que encontrei nesse impreciso mar de Grande Sertão: Veredas.”

Daí, as metáforas que são a visão sertaneja do mar: “íamos investir o sertão, os mares de calor”; “cavalos vagarosos, viajavam como dentro dum mar”; “o senhor sabe o mais que é, de se navegar sertão num rumo sem termo, amanhecendo cada manhã num pouco diferente, sem juízo de raiz?”.

Diadorim morreu, como chora Riobaldo?

“Chapadão. Morreu o mar, que foi”. O sonho acabou, é o fim da estória. “Sobreveio em mim a estúrdia aragem de chorar também… Eu, nas margens do mar.”

Sertão Sertões: Essas veredas

“Sertões de Mato Grosso, Goiás, Bahia e Minas Gerais, avançando até o norte, limitados pelas matas da Amazônia, cercados pela serrania de leste, formam a região semi-bárbara do Brasil, onde os bandeirantes prearam índios ou batearam ouro. (…) Neste mundo de fogo e água, Deus e o Demo, Guimarães Rosa acendeu gambiarras para Riobaldo passar”, delimita M. Cavalcanti Proença.

“Dá-se o nome de sertão a uma vasta e indefinida área do interior do Brasil, que abrange boa parte dos Estados de Minas Gerais, Bahia, Sergipe, Alagoas, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Ceará, Piauí, Maranhão, Goiás e Mato Grosso É o núcleo central do país”, localiza Walnice Nogueira Galvão.

Às vezes ele transborda, para além de seus limites geográficos e ecológicos, como conta André Figueiredo Rodrigues: “Em Minas Gerais não havia somente um único sertão, mas vários. As principais descrições indicam ser a região povoada por inúmeras nações indígenas e com fraca população branca. Na comarca do rio das Mortes, os sertões eram para os moradores das vilas de São José e São João del Rei os cerrados do alto São Francisco e as picadas de Goiás, como então se nomeavam as terras localizadas no caminho que levava para Vila Boa de Goiás. Para os que residiam na Borda do Campo, podiam ser as escarpas da Mantiqueira. A região da atual Zona da Mata era toda conhecida pelo nome de “sertões de leste…”

Sertões imprecisos, esquivos, que se prestam a esse sonho, esse vôo largo, que faz tanta gente imaginar tantos outros sertões, nos entremeios daquelas veredas do Dr. Rosa. “Sertão é isto, o senhor sabe: tudo incerto, tudo certo.”

“O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas demais do Urucuia. Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo, então, o aqui não é dito sertão? Ah que tem maior! Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos… o Urucuia vem dos montões oestes. Mas, hoje, que na beira dele, tudo dá – fazendões de fazendas, almargem de vargens de bom render, as vazantes; culturas que vão de mata a mata, madeiras de grossura, até a ainda dessas virgens ainda há lá. O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho”.

“Só no azul do anoitecer é que o Chapadão tem fim.”

Mas não se enganem, o sertão é a sério e é real. Nonada. “O sertão é de suma autenticidade”, ele alertou, em carta a seu tradutor para o italiano. “Quando escrevi o livro, eu vinha de lá, dominado pela vida e pela paisagem sertanejas.” Como diz Riobaldo, “o sertão não é malino nem caridoso, mano oh mano!: – … ele tira ou dá, ou agrada ou amarga, ao senhor, conforme o senhor mesmo”. Vilma Guimarães Rosa, em seus relembramentos, certifica: “o que agora volteava dentro dele e diante dele era o Geral, o Grande Sertão, como cenário épico. Cedera o curioso ao emotivo, ao enamorado de sua própria terra.”

Veredazinhas do ser tão real

Eu sei que Guimarães fez do seu sertão a existência. E tanto se escreveu sobre esse ser metafísico, ambiente e persona da novela enovelada. Mas como lembrou Luiz Costa Lima, ler Grande Sertão é tratar de “vislumbrar nas criaturas a gama de mistério, estranheza e perplexidade que G. Rosa encontra no mundo”. Mas, acrescenta, com sabedoria, “as dimensões que G. Rosa descobrirá nas criaturas estão em relação com a sua visão anterior da realidade”.

Coberta de razão está, também, Walnice Nogueira Galvão, quando diz que “não é só Grande Sertão: Veredas, mas toda a obra de Guimarães Rosa, de fato, que começa e acaba no sertão. Para sempre identificado ao sertão, esse é o seu universo, seu horizonte, seu ponto de partida e de chegada”.

Foi Guimarães Rosa mesmo quem definiu sua escrita como ancorada no sertão real: “Quando escrevo, repito o que já vivi antes. E para estas duas vidas, um léxico só não é suficiente. Em outras palavras, gostaria de ser um crocodilo vivendo no rio São Francisco. Gostaria de ser um crocodilo porque amo os grandes rios, pois são profundos como a alma de um homem. Na superfície são muito vivazes e claros, mas nas profundezas são tranqüilos e escuros como o sofrimento dos homens.”

Para nós, de seu mesmo sertão, é fácil saber que sua literatura está mergulhada naquelas terras e naquelas águas, sobretudo naquelas águas de rios e córregos. Ou não? Quem jura é Afonso Arinos de Mello Franco, das paradas de Paracatu, em seu derramado discurso de recepção a Guimarães Rosa, na Academia Brasileira de Letras: “pelas nossas origens, daquelas terras largas do sertão mineiro; mundão de léguas de campos, chapadas, catingas e rios; domínio do sol e dos astros sobre a planura, cortado sempre por escassos, silenciosos cavaleiros e suas boiadas. Nossa zona sertaneja de Cordisburgo a Paracatu é presa a si mesma mais pelos rumos dos rios e os desdobramentos dos tabuleiros do que pelos traços dos caminhos, ou os marcos das povoações. Forma um quadrilátero irregular, que começa à margem esquerda do Rio das Velhas, cruza o São Francisco, atinge a banda direita do Parnaíba e se derrama para o norte, até esbarrar nas douradas areias do Paracatu. Pouco acima de Paraopeba, deixando à mão direita o Rio das Velhas, o antigo Guaicuí dos índios, são os campos gerais desenrolados por Curvelo, Corinto, até Pirapora, já no São Francisco, quase no vértice do ângulo do seu encontro com o grande afluente.”

Um outro Riobaldo, Rio baldo Somos de lá, já ouvimos a filosofia noturna dos riobaldos e dos manuelzões, quando miramos, vemos os mesmos sertões e as mesmas veredas. Sem invenção. Quando escutamos, ouvimos a mesma linguagem, que ora ele transliterou, ora só transcreveu, ora criou, recriou.

Em reportagem, posteriormente republicada em Estas Estórias, “Entremeio com o vaqueiro Mariano”, Guimarães conta: “Em julho, na Nhecolândia, Pantanal de Mato Grosso, encontrei um vaqueiro que reunia em si, em qualidade e cor, quase tudo que a literatura empresta esparso aos vaqueiros principais. Típico, e não um herói, nenhum. Era tão de carne-e-osso, que nele não poderia empessoar-se o cediço e fácil da pequena lenda. Apenas um profissional esportista: um técnico, amoroso de sua oficina. Mas denso, presente, almado, bom-condutor de sentimentos, crepitante de calor humano, governador de si mesmo; e inteligente. Essa pessoa, este homem, é o vaqueiro José Mariano da Silva, meu amigo.”

O que faz Guimarães Rosa? “Começamos por uma conversa de três horas, à luz de um lampião, na copa da Fazenda Firme. Eu tinha precisão de aprender mais sobre a alma dos bois, e instigava-o a fornecer-me fatos, casos, cenas. Enrolado no poncho, as mãos plantadas definitivamente na toalha da mesa, como as de um bicho em vigia, ele procurava atender-me. (…) Contou-me muita coisa.”

Quem ler o relato, verá um diálogo, que parece monólogo, mas onde há um que conta e outro que instiga. E dará com pérolas do real, que depois reverá, de outra forma e em outro contexto, em Grande Sertão: Veredas, como esta:

“Como era um lugar visonho, assim meio sertão, sem gado, eu achei que por lá devia de ter passado uma rês e parado, por uma ou duas ou três horas. Senti pelo cheiro. A gente sabe. O touro tem uma catinga quase como a do ramo de guiné; vaca e boi-de-carro têm catinga igual, só a do touro é mais forte…”

Ou: “Foi um touro jaguanê que morreu de tristeza. Era um touro de idéia, muito manheiro (…) Morreu lá, de raiva, de vergonha. Faleceu mesmo…” Ou, ainda:

“Saí dele, ligeiro, e nadei minhas custas… Pois foi aí, num rasgado, que eu espiei um boi ficar louco, perto de mim, de jeito medonho. Piranha tinha dado nele! Medo? se tive. A gente tem dó do corpo. Dei ânsia por me levantar daquela traição d’água, morrendo p’ra me avoar, que como pássaro…” E, mais adiante, “Quand’isso, me esfriei de todo, e fiz contrição urgente, me resolvendo p’ra Deus: na frechada doida que elas davam…”

Diadorim, os rios verdes

Relendo esse entremeio, me dei conta da razão de minha paixão irremediável, à primeira vista, com o Pantanal. Somos sertanejos, de campos cerrados e enamorados dos rios. Todo sertanejo é apaixonado pelos rios, alguém disse. Verdade verdadeira.

“Ah, o meu Urucuia, as águas dele são claras e certas. E ainda que ele entramos, subindo légua e meia, por isso pagamos uma gratificação. Rios bonitos são os que correm para Norte, e os que vêm do poente – em caminho para se encontrar com o sol. E descemos num pojo, num ponto sem praia, onde essas altas árvores – a caraíba-de-flor-roxa, tão urucuiana. E o folha-larga, aderno-preto, o pau-de-sangue, o pau-paraíba, sombroso. O Urucuia, suas abas. E vi meus Gerais!”

“Chapada de duro. Daí passamos um rio vadoso – rio de beira baixinha, só buriti ali, os buritis calados.”

“Antes eu percebi a beleza daqueles pássaros, no rio das Velhas – percebi para sempre.”

“Reprazia, para mim, um dia reverter para o rio das Velhas, cujos campais de gado, com coqueiral de macaúbas, meio do mato, sobre morro, e o grande revôo baixo do nhaúma, e o mimoso pássaro que ensina carinhos – o manuelzinho-da-croa…”

“Olhe: o rio Carinhanha é preto, o Paracatu moreno; meu, em belo, é o Urucuia – paz das águas … É vida!”

“O meu Urucuia vem, claro, entre escuros. Vem cair no São Francisco, rio capital. O São Francisco partiu minha vida em duas partes.”

“Meu rio de amor é o Urucuia.”

O Sertão é o Mundo

Guimarães Rosa não nasceu no mundo, nem cosmopolita. Conquistou-o e nele se lançou, globalizando-se, desde cedo, pelo intelecto, muito antes de se pôr a viajar nas asas do Itamaraty. Ele era de Cordisburgo, Minas Gerais: “pequenina terra sertaneja, trás montanhas, no meio de Minas Gerais. Só quase lugar, mas tão de repente bonito: lá se desencerra a Gruta do Maquiné, milmaravilha, a das Fadas; e o próprio campo, com vasqueiros cochos de sal ao gado bravo, entre gentis morros ou sob o demais de estrelas, falava-se antes: “os pastos da Vista Alegre”. Se fez do Brasil e do mundo, porque, de vista curta demais pela miopia, mirava e via muito além. Ele nos encantou, muito antes de se encantar.

“Escritor ligado à terra, às limitações temporais e espaciais de uma certa terra brasileira, não sois, no entanto, um escritor regional, ou antes, o vosso regionalismo é uma forma de expressão do espírito universal que anima a vossa obra e, daí, sua repercussão mundial”, elucidou Afonso Arinos, em seu discurso. É isso, o sertão é o mundo. “Mais eu murmure e diga, ante macios morros e fortes gerais estrelas, verde o mugibundo buriti, buriti, e a sempre-viva-dos-gerais que miúdo viça e enfeita: O mundo é mágico”, assim ele encerra seu discurso de posse, um emocionado elogio de seu amigo e chefe na diplomacia, João Neves da Fontoura.

Do muito que diz Bolle de Grande Sertão, o dito mais certo é defini-lo como romance da formação nacional. É mesmo, grande achado. Guimarães sempre foi gigante entre os maiores de todos os tempos: Cassiano Ricardo, Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freire, Euclides da Cunha, José de Alencar, Machado de Assis.

É um romance largo, dificultoso mais pelo inesperado. É difícil lê-lo linearmente, tantas vezes sua poesia, seu desconcerto, sua assombrosa criatividade nos remete ao devaneio. É uma obra dupla, sob vários sentidos e, por isso, múltipla. É uma travessia de muita profundidade e entremeia nela várias estórias e muitos mistérios. Um claro enigma, que se desvela na poética e na ética. Ah, como precisamos dessa ética sincera e verdadeira. É telúrico, metafísico, renovador. É a narrativa-diálogo de Riobaldo e dentro dela, a reflexão alargada de Guimarães. Dois sertanejos, um viajado no sertão, o outro, no mundo-sertão. Aquela ambivalência de Diadorim, homem-mulher, ser-não-ser-sendo, está presente em todo Grande Sertão: Veredas.

Mire e veja, ouça e diga: diálogos conversados

Tem a filosofia natural de Riobaldo, personificador dos vaqueiros contadores de casos que Guimarães encontrou nos vários gerais e anotou – “sou só um sertanejo, nessas altas idéias navego mal”; “O senhor saiba: eu toda a minha vida pensei por mim, forro sou nascido diferente. Eu sou é eu mesmo. Diverjo de todo mundo… Eu quase de nada não sei, mas desconfio de muita coisa. O senhor concedendo, eu digo: para pensar longe, sou cão mestre – o senhor solte em minha frente uma idéia ligeira, e eu rastreio esta por fundo de todos os matos, amém! – e tem a filosofia erudita de Guimarães Rosa. São diálogos entre os dois, um solta idéias o outro rastreia ligeiro, e vice-versa.

A linguagem onomatopaica, viva, mutante do peão, cheio de sabedoria e ignorante das letras, e a verve plurilingüística de Guimarães Rosa. Dificultoso, mas rico, denso e fluido como os grandes rios. Um São Francisco impoluído. É outra conversa, outro diálogo: “mas, o senhor sério tenciona devassar a raso este mar de territórios, para sortimento de conferir o que existe?”

Nunca entendi aqueles que dizem que não há diálogo real em Grande Sertão: Veredas, que não passa de um longo monólogo. Mas como? Um conta o outro instiga. Tal e qual no entremeio. Quantas vezes o outro, esse estudado senhor da cidade, interpela Riobaldo, que prontamente responde. Quantas vezes o sertanejo, perquirido, reexplica? Muitas vezes o silêncio é mais eloqüente e enfático que qualquer jogo de palavras: “quase que a gente não abria a boca; mas era um delém que me tirava para ele – o irremediável extenso da vida”. Acho que desentenderam.

Saga ecológica

É uma epopéia de homens do sertão, uma saga, sagarana. É uma epopéia da natureza, do sertão personagem, terra, ambiente, ecologia da desmesurada aventura-desventura de Riobaldo e Diadorim. São sempre poucas as páginas de Grande Sertão: Veredas em que não se encontra uma descrição detalhada, ora geológica, ora botânica, ora zoológica dos seus sertões.

Riobaldo repassa com tristeza, “uma tristeza que até alegra”, o prospecto de seu interlocutor sair sertão afora, trilhando suas trilhas, correndo seus chapadões, atravessando suas veredas. Suas dele, que dessa terra se apropriou nas travessias todas de seu relato. “Não fosse meu despoder… Eu guiava o senhor até tudo. Lhe mostrar os altos claros das Almas: rio despenha de lá, num afã, espuma próspero, gruge; cada cachoeira, só tombos. O cio da tigre preta na Serra do Tatu – já ouviu o senhor gargaragem de onça? A garoa rebrilhante dos-Confins, madrugada quando o céu embranquece – neblim que chamam de xererém. Quem me ensinou a apreciar essas belezas sem dono foi Diadorim… A da-Raizama, onde até os pássaros calculam o giro da lua – se diz – e canguçu monstra pisa em volta. Lua de com ela se cunhar dinheiro. Quando o senhor sonhar, sonhe com aquilo. Cheiro de campos com flores, forte, em abril: a ciganinha, roxa, e a nhiíca e a escova, amarelhinhas…”

“As garças é que praziam de gritar, o garcejo delas, e o socó-boi range cincerros, e o socó latindo sucinto. Aí pelo mato das pindaíbas avante tudo era um sapal.”

“Assim pois foi, como conforme, que avançamos rompidas marchas, duramente no varo das chapadas, calcando o sapê brabão ou areias de cor em cimento formadas, e cruzando somente com gado transeunte ou com algum boi sozinho caminhador. E como cada vereda, quando beirávamos, por seu resfriado, acenava para a gente um fino sossego sem notícia – todo buritizal e florestal: ramagem e amar em água. E que, com nosso cansaço, em seguir, se eu nem saber, o roteiro de Deus nas serras dos Gerais”.

“Ao pé das chapadas, no entremeio do se encher de rios tantos, ou aí subindo e descendo solaus, recebendo o empapo da chuva, a gente se fervia… O chapadão é sozinho – a largueza. O sol. O deu de não se querer ver. O verde carteado do gramal. As duras areias. As arvorezinhas ruim-inhas de minhas. A diversos que passavam abandoados de araras – araral – conversantes. Aviavam vir os periquitos, com o canto-clim. Ali chovia? Chove – e não encharca poça, não rola enxurrada, não produz lama: a chuva inteira se soverte em minuto terra a fundo, feito um azeitezinho entrador. O chão endurecia cedo, esse rareamento de águas. O fevereiro feito. Chapadão, chapadão, chapadão.”

“Para ouvir gavião guinchar ou as tantas seriemas que chungavam, e avistar as grandes emas e os veados correndo, entrando e saindo até dos velhos currais de ajuntar gado, em rancharias sem morador? Isso quando o ermo melhorava de ser só ermo. A chapada é para aqueles casais de antas, que toram trilhas largas no cerradão por aonde, e sem saber de ninguém assopram sua bruta força. Aqui e aqui, os tucanos senhoreantes, enchendo as árvores, de mim a um tiro de pistola – isto resumo mal. Ou o zabelê choco, chamando seus pintos, pra esgravatar terra e com eles os bichinhos comíveis catar. A fim, o birro e o garrixo sigritando. Ah, e o sabiá-preto canta bem. Veredas.”

“Mesmo não era só capim áspero ou planta peluda como um gambá morto, o cabeça-de-frade pintarroxa, um mandacaru que assustava. Ou o xiquexique espinharol, cobrejando com suas lagartonas, aquilo que, em chuvas, de flor dói em branco. Ou cacto preto, cacto azul, bicho luís-cacheiro. Ah não, cavalos iam pisando no quipá, que até rebaixado, esgarço no chão, e começavam as folhagens – que eram urtigão e assa-peixe, e o neves, mas depois tinta-dos-gentios de flor belazul, que é o anil-trepador, e até essas sertaneja-assim e a maria-zipe, amarelas, pespingue de orvalhosas, e a sinhazinha, muito melindrosa flor, que também guarda muito orvalho, orvalho pesa tanto: parece que as folhas vão murchar. E erva-curraleira… E a quixabeira que dava quixabas.”

“Sertão velho de idade. Porque – serra pede serra – e dessas, altas, é que o senhor vê bem: como é que o sertão vem e volta. Não adianta se dar as costas. Ele beira aqui e vai beirar outros lugares, tão distantes. Rumor dele se escuta. Sertão sendo o sol e os pássaros: urubu, gavião – que sempre voam, às imensidões, por sobre… Travessia perigosa, mas é a da vida. Sertão que se alteia e se abaixa. Mas que as curvas dos campos estendem sempre para mais longe. Ali envelhece vento. E os brabos bichos, do fundo dele…”

“O senhor vê: existe cachoeira: e pois? Mas cachoeira é barranco de chão, e água se caindo por ele, retombando; o senhor consome essa água, o desfaz o barranco, sobra cachoeira alguma? Viver é negócio muito perigoso.

Ler e ler: reler

Celebrar Grande Sertão: Veredas, só lendo. É dificultoso, mas é pra lá de bom. Se começar à vera, não pára, nunca e se demora, porque é uma travessia rara, cheia de veredas e de veredazinhas, as melhores, e a gente vai se entretendo e se perdendo nesse redemunho poético. Nonada. É uma obra-prima extraordinária, como a definiu, desde logo, o mestre Antônio Cândido, nela, diz: “há de tudo para quem souber ler, e nela tudo é forte, belo, impecavelmente realizado. Cada um poderá abordá-la a seu gosto, conforme o seu ofício; mas em cada aspecto aparecerá o traço fundamental do autor: a absoluta confiança na liberdade de inventar.”

Vale abordar esse rio caudaloso, esse São Francisco impoluível e indestrutível, que se renova a cada leitura. “Mas o sentido do tempo o senhor entende, resenha duma viagem”.

Bibliografia citada

João Guimarães Rosa
Grande Sertão: Veredas, várias edições.
– “Entremeio com o Vaqueiro Mariano”, em Estas Estórias, várias edições.
– “Discurso de Posse na Academia Brasileira de Letras”, Rio de Janeiro, Academia Brasileira de Letras, 1967.

Afonso Arinos de Melo Franco
– “Discurso de Recepção a Guimarães Rosa”, Rio de Janeiro, Academia Brasileira de Letras, 1967.

André Figueiredo Rodrigues
– “Os sertões proibidos da Mantiqueira: desbravamento, ocupação e as observações do governador dom Rodrigo José de Meneses”, Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 23, n. 46, p. 253-270, 2003.

Antônio Cândido
– “O Homem dos Avessos”, em Tese e Antítese, São Paulo, 1964.

Luiz Costa Lima
– “O Mundo em Perspectiva: Guimarães Rosa”, em Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 2 (6), dezembro 1963.

M. Cavalcanti Proença
Trilhas do Grande Sertão, Rio de Janeiro, MEC, Os Cadernos de Cultura, 1958.

Vilma Guimarães Rosa
Relembramentos: João Guimarães Rosa, Meu Pai, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999, segunda edição revista e ampliada.

Walnice Nogueira Galvão
As Formas do Falso, São Paulo, Perspectiva, 1972.
Guimarães Rosa, São Paulo, Publifolha, 2000.

Willi Bolle
grandesertão.br, São Paulo, Editora Duas Cidades, 2004.

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