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De olho na última chance

Entomólogo e fotógrafo, Piotr Naskrecki juntou num belo livro as pequenas formas de vida que o mundo está perdendo antes de aprender o que elas vieram fazer aqui.

10 de fevereiro de 2006 · 18 anos atrás
  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

Piotr Naskrecki tem um olho infalível para os espetáculos da natureza onde atuem personagens que, ao senso-comum, passam por insignificantes – como insetos, pererecas, lagartixas e aranhas. De preferência, se tiverem no máximo o tamanho de seu polegar. Ele é pesquisador do Museu de Zoologia Comparada da Universidade de Harvard e diretor de um programa da ONG Conservation International para garantir enquanto é tempo no planeta a vaga dos invertebrados. Mas não é bem isso o que aqui vem ao caso. Tomemos, com Nascreki, o caminho que ele encontrou para fundir, no currículo de biólogo, a carreira de fotógrafo especializado em alargar os horizontes de assuntos miúdos, tornando-se capaz de preencher duas páginas espelhadas numa edição de arte com o gesto de uma formiga ou o abraço de escorpiões, em close. Seus grilos só faltam falar. Suas moscas reluzem. Suas libélulas parecem fundidas por joalheiros em metais cintilantes.

A máquina fotográfica entrou na bagagem de suas expedições científicas por acaso. Mais ou menos como aconteceu com o economista Sebastião Salgado, ele ganhou a primeira câmera da mulher, como presente de Natal. Mas o empurrão que levou Salgado a largar o emprego no Banco Mundial, para ser mundialmente conhecido como fotógrafo, fez Naskrecki ir mais fundo como entomólogo, armando-o com um instrumento de persuasão que a linguagem acadêmica não tem. Ele passou os últimos dez anos apurando a técnica, enquanto batia como naturalista os continentes e neles, de preferência, as florestas tropicais, numa corrida contra o tempo para conhecê-las antes que acabem.

Elas entraram de uma vez por todas em seu programa de viagens quando ainda era estudante, na Polônia. Naskrecki gramou em 1988 um ano “lavando pratos, colhendo morangos e pintando paredes”, para juntar o dinheiro que o levaria pela primeira vez à Tailândia. E ali, ao desembarcar no aeroporto de Bangkok, farejando o ar carregado de umidade, calor e perfumes desconhecidos, ele estreou a sensação de “criança em loja de doce” que nunca mais o deixaria ficar muito tempo longe da selva. Na mata, ele conta, “sem me mexer, eu posso sentir o rio da vida correndo a minha volta, cada polegada quadrada dos arredores vibrando de movimento”.

Dito e feito. Ele desenvolveu um estilo inconfundível na macro-fotografia, que consegue juntar com precisão na mesma imagem os intrincados detalhes anatômicos do primeiro plano, a poucos centímetros da objetiva, com o cenário desmesurado da mata que eles têm ao fundo. Combina, para isso, grande-angular com anel de aproximação. E o retratado, por menor que seja, em vez de flutuar numa névoa de folhas desfocadas, ocupa nitidamente um lugar no mundo, como se ele fosse seu. Quem mexe com lentes de aproximação sabe como é difícil juntar na mesma imagem os olhos de um louva-deus e o pôr-do-sol, ou os palpos de gafanhoto e as nuvens que passam no céu sobre sua cabeça.

Menor Maioria

No ano passado, ele reuniu seus “instantâneos de viagem” num livro espantoso, chamado The Smaller Majority, que ele dedicou a essa “menor maioria”, formada por tudo o que é “minúsculo e incompreendido”. Menino, e por sinal o menor aluno de sua turma na escola, ele não entendia por que tantos adultos fugiam de sua bela coleção de rãs e sapos. Como biólogo, ele acabaria se convencendo de que o problema está em nosso ponto de vista. “Ao contrário da maioria dos mamíferos, que vive num mundo sensório dominado por cheiros, a nossa é uma espécie que se guia pela visão”.

Tendemos a preferir “animais que podem devolver nosso olhar”. E evitamos o contato com criaturas que às vezes têm “olhos demais” ou “olhos de menos”.

Naskrecki cresceu com a suspeita de que, “quanto menor o bicho, mais fascinante ele deve ser”. E provou no livro que estava certo. Não há pássaros coloridos nem feras carismáticas em “The Smaller Majority” , exceto pelo elefante que entra como figurante em fotografias cujos protagonistas são formigas e cupins. Mas não fica nisso a originalidade do livro. Coisa rara no gênero, em suas 277 páginas as fotografias e o texto brigam o tempo todo pela atenção do leitor. Freqüentemente em igualdade de condições, disputando lado a lado quem tem mais o que dizer sobre um assunto.

De quebra, e as legendas são aulas concisas de História Natural, quando não basta olhar duas formigas atracadas uma à outra para ver, por exemplo, uma operária velha e experiente carregando nas costas uma jovem bisonha, que atravancava a marcha da colônia de Oecophylla longinoda na mudança do formigueiro. Mas, com tudo isso, seu melhor flagrante não é uma fotografia, mas um relato publicado sem ilustração. Coube num parágrafo, como um instantâneo inspirado. E conta uma grande história sobre um “pequeno animal misterioso” que ele, por sinal, não conseguiu fotografar.

Primeiro e último

Encontrou-o nas Ilhas Salomão, um arquipélago da Melanésia, no sul do Pacífico. Era um gafanhoto. E estava diante de um especialista em gafanhotos. Mas lhe pareceu diferente de tudo o que conhecia. “Depois de alguns segundos de intensas buscas em meus arquivos mentais sobre a taxonomia dos gafanhotos, eu me dei conta de que estava olhando para uma espécie inteiramente nova, muito provavelmente do gênero Ocica”, ele escreve. Naskrecki acredita que os insetos, os artrópodes e os répteis, mais do que as aves, os mamíferos e até mesmo os predadores firmemente entronizados no topo da cadeia alimentar, são os indicadores mais precisos do estado de saúde do meio onde vivem. Entre outros motivos, porque suas relações com as plantas são mais íntimas.

Com a respiração suspensa, tentou capturar o gafanhoto desconhecido para estudo e classificação. Mas o inseto pressentiu o movimento de suas mãos, saltou da folha onde estava, enfiou-se entre as samambaias do chão e sumiu. Desapareceu, diga-se de passagem, para sempre. Porque, ao sair da trilha, Naskrecki cruzou na aldeia mais próxima com pilhas de toras. Os dias daquela floresta estavam contados. E ele entendeu na mesma hora que provavelmente seria o primeiro e único ser humano a olhar com interesse aquela forma de vida que a madeireira estava prestes a extinguir sem que o mundo tivesse chegado sequer a lhe dar um nome.

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