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O Brasil no mapa da Embrapa

Do Centro Nacional de Pesquisas de Solos, no Rio de Janeiro, avista-se um país onde o Vale do Paraíba tem florestas crescendo nas voçorocas e café nos pastos secos.

13 de agosto de 2004 · 20 anos atrás
  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

A não ser pelo grande mapa colorido onde o Brasil se estilhaça em centenas de retalhos, a velha sala de pé-direito alto tem paredes nuas. Lá fora faz sol, mas a janela fica fechada ao trânsito do Jardim Botânico. Atrás da mesa, o novo chefe-adjunto da seção, com o telefone na orelha e maços de papel nas duas mãos, presta contas numa ligação interna das despesas com a sua última viagem a serviço. Gastou 30 reais de combustível.

O lugar tinha tudo para ser o claustro de uma repartição pública. Mas, visto de dentro, parece escancarado para um cenário sem fim. Lá funciona o setor de Pesquisa e Desenvolvimento do Centro Nacional de Pesquisas de Solos da Embrapa. E isso muda tudo de figura. No tal mapa, cada cor é um tipo de chão que já foi analisado no território brasileiro. E o chefe Aluísio Granato de Andrade nem precisa levantar a persiana para olhar a vista. É da mesa, de costas para a janela, que ele olha para frente e enxerga o futuro, onde o Brasil não é só o que é, mas tudo o que ainda pode ser.

Vê, por exemplo, o café rebrotar nos morros carcomidos do Vale do Paraíba, à sombra de seringueiras plantadas para alimentar uma fábrica de borracha que a Michelin está pensando em construir no estado do Rio de Janeiro. E florestas cultivadas retomarem das voçorocas os pastos onde hoje o gado não encontra mais capim.

Solo é sua especialidade. E onde há solo ele acha, como Caminha, que tudo dá. Mas não assim, sem mais, nem menos. É preciso antes levar à terra estragada o enxerto da pesquisa e da tecnologia. Aí, sim, dá para ter árvores seqüestrando carbono nos municípios desertificados do Noroeste fluminense. Bosques se alimentando do lodo que as estações de tratamento de esgoto despejam na Baía de Guanabara. Café nobre, plantado sob florestas, em regiões que no século XIX o próprio café degradou.

Voçoroca, então, é com ele mesmo. Até três meses atrás, antes de assumir o novo cargo, morava na cidade de Resende e trabalhava no Rio de Janeiro. De tanto andar de lá para cá na paisagem desolada da estrada Rio-São Paulo, ele pegou à unha quatro anos atrás a ravina que desmanchava, em Pinheiral, o campus da Escola Agrícola Nilo Peçanha, da Universidade Federal Fluminense.

A voçoroca ficava bem no fundo da escola. E a escola, nos seus 380 hectares, praticamente resume o Vale do Paraíba. Ocupa parte das antigas fazendas de José de Souza Breves, que foi o maior latifundiário, o maior produtor de café e o maior proprietário de escravos do Brasil no fim do século XIX, quando isso queria dizer que ele era o maior do mundo. A escola é o que sobrou de terras públicas depois de muita grilagem, quando as fazendas do Comendador viraram posto de zootecnia do Ministério da Agricultura em meados do século XX. Anos atrás, roçou em suas cercas um dos primeiros ensaios de reforma agrária no interior do Rio de Janeiro. Em menos de uma década, a maioria dos assentados tinha vendido seus lotes para os veranistas de Volta Redonda erguerem casas de campo.

Coroando a história, lá estava, na virada do século XXI, a imensa voçoroca. Aluísio Granato atacou-a com uma fórmula experimental, usando recursos baratos, ao alcance de qualquer fazendeiro da vizinhança. Pneus usados, lascas de madeira e talos de bambu, para conter a erosão. Mudas de capim e de espécies leguminosas, para conter o barranco erodido. E de árvores frutíferas nas bordas, para mostrar aos céticos que ainda se podia tirar proveito daquela terra exaurida.

Nove meses depois, a voçoroca era verde. Em quatro anos, tornou-se um bosque. “Vendo, ninguém imagina o que encontrei por lá”, diz ele. A prefeitura de Barra do Piraí, que administra uma vasta coleção de morros escalavrados, adotou a fórmula. Outros municípios das redondezas andaram namorando o exemplo da Escola Agrícola Nilo Peçanha, mas preferiram largar o problema entregue a si mesmo. E os fazendeiros e agricultores do Vale, pelo visto, nem notaram a diferença.

Faltava à receita um ingrediente. A experiência mostrou que não há muita gente disposta a plantar árvores no Vale do Paraíba só porque, pelado como está, ele anda muito feio e literalmente escorre ladeira abaixo nas estações de chuva. E Granato acha que o incentivo pode estar num coquetel de agroflorestas com a esperança de ganhar um dinheiro extra, apostando no mercado nascente do seqüestro de carbono, novo produto comercial das florestas que ainda estão crescendo. De quebra, poderia cultivar cultivo de pupunha, feijão, café e até madeira, numa terra que agora não serve para nada. “Isso mudaria a história da região”, ele afirma.

No Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro, a técnica da Embrapa provou que é capaz de decolar e ir longe. Ao redor daquelas pistas de pouso, as últimas obras de terraplenagem para ampliação de terminais expuseram ss camadas estéreis do subsolo, deixando para trás uma paisagem lunar na ilha do Galeão. Rasgaram morros de alto a baixo. Cavaram taludes que o tempo ia corroendo. Abriram buracos que as chuvas alagavam, formando pântamos tão fundos que chegaram a afogar um menino das favelas vizinhas.

Tudo isso está consertado graças a uma transfusão do lixo que veio do próprio aeroporto, o lodo da Baía de Guanabara, restos de material de construção e até as sobras do gramado que, ao aparar, a Infraero despachava para o lixão de Gramacho. Com esses recursos os pesquisadores da Embrapa criaram em pouco tempo a base para um bosque que eles mesmos não podem mais atravessar sem abrir trilha. E a vantagem do Galeão sobre as fazendas e prefeituras do Vale do Paraíba é que lá não é preciso esperar pela adesão voluntária de quem acha voçorosa a coisa mais natural do mundo. A própria Infraero encarregou a Embrapa de repetir o processo em mais 19 aeroportos, espalhados pelo país de Manaus a Foz do Iguaçu. “E depois deles ainda temos 45 aeroportos para arrumar”, diz Granato. (Continua)

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