Análises

O sino da morte está batendo para o licenciamento — e ninguém dá a mínima

O licenciamento dos sonhos dos ruralistas e da CNI é também o licenciamento dos sonhos do conluio entre empreiteiras e agentes políticos — aquele com o qual a sociedade está supostamente enojada

Claudio Angelo ·
26 de abril de 2017 · 7 anos atrás
O deputado Mauro Pereira (PMDB-RS), em reunião em outubro de 2016. Foto: Cleia Viana/Câmara dos Deputados.
O deputado Mauro Pereira (PMDB-RS), em reunião em outubro de 2016. Foto: Cleia Viana/Câmara dos Deputados.

EU SEI, está difícil competir pelo noticiário com a delação da Odebrecht e as ameaças de guerra nuclear entre Estados Unidos e Coreia do Norte. Mas peço um segundinho da atenção do leitor para dar um aviso singelo: o licenciamento ambiental está sendo implodido no país neste exato momento. E, aparentemente, ninguém está dando a mínima.

Na semana passada, o deputado Mauro Pereira (PMDB-RS), membro da bancada ruralista e célebre relator do “licenciamento flex”, apresentou à Comissão de Finanças e Tributação da Câmara uma proposta de texto que quebra um acordo feito anteriormente com o ministro do Meio Ambiente, Sarney Filho. A proposta de Pereira é cópia-carbono (e põe carbono nisso) de um outro texto, apresentado pela Frente Parlamentar da Agropecuária dia 6 de abril e feito em conjunto com a Confederação Nacional da Indústria, mas cuja paternidade ninguém quis assumir — em entrevista ao OC na ocasião, Pereira negou na maior cara-dura que apoiasse o documento.

O novo substitutivo libera geral. De mineração em unidades de conservação até asfaltamento de estradas na Amazônia, passando pelo agronegócio extensivo, a lista de atividades que terão dispensa de licenciamento ambiental não cabe num ônibus. E obras do porte da hidrelétrica de Belo Monte, que eventualmente ainda tiverem exigência de licença, não precisarão mais cumprir uma série de condicionantes ambientais para funcionar.

O golpe no licenciamento está sendo dado à vista de toda a sociedade. É que há muita coisa grave acontecendo no país: 90 políticos denunciados por corrupção no Supremo, o Presidente da República e todos os ex-presidentes vivos envolvidos no escândalo da Lava Jato, uma greve geral marcada e um levante prestes a acontecer contra a reforma na Previdência. As pessoas simplesmente não têm tempo de prestar atenção a mais essa traquinagem do Parlamento. Comparada a um país inteiro em convulsão, ela parece de fato uma preocupação menor.

Só que não é. Porque, se o licenciamento for aprovado da maneira como desejam os deputados da bancada ruralista e seus aliados da indústria, o caminho estará aberto para a multiplicação das obras como as investigadas pela Lava Jato — e para a corrupção que vem no pacote. Sob pretexto de reduzir os “entraves” ao “crescimento” do país, os parlamentares estão mandando para o saco a principal ferramenta de controle social de grandes obras de infraestrutura.

“Entre os principais problemas, além das amplas isenções, está o fato de que a proposta retoma o princípio basilar do “licenciamento flex” de Mauro Pereira: deixa para os Estados e municípios a definição das atividades que precisarão de licenciamento rigoroso”

Na última segunda-feira, a presidente do Ibama, Suely Araújo, elaborou um parecer devastador sobre o novo substitutivo de Mauro Pereira. Segundo ela, o texto é inaceitável e levará à judicialização, “inviabilizando a segurança jurídica que se intenta alcançar com a Lei Geral [de licenciamento]”.

Entre os principais problemas, além das amplas isenções, está o fato de que a proposta retoma o princípio basilar do “licenciamento flex” de Mauro Pereira: deixa para os Estados e municípios a definição das atividades que precisarão de licenciamento rigoroso. Isso criaria o equivalente ambiental à guerra fiscal, com Estados abaixando sucessivamente o sarrafo dos critérios de licenciamento para atrair mais empreendimentos (afinal, tudo se trata de “desenvolvimento” e “geração de empregos”, né?).

Mas as chicanas jurídicas do texto vão muito além.

Uma das mais perigosas diz respeito a unidades de conservação. Pela lei de 2000 que criou o Sistema Nacional de Unidades de Conservação, os órgãos gestores de áreas protegidas, como o ICMBio, têm poder de veto nos processos de licenciamento. Isso cai com o substitutivo de Mauro Pereira, o que possibilitaria, por exemplo, construir uma hidrelétrica num rio que corta um parque nacional, mesmo que isso significasse a extinção de uma ou mais espécies.

Sua hidrelétrica vai triplicar a população de uma cidade e pressionar os sistemas de saúde, educação e saneamento? Problema da prefeitura: o empreendedor não tem nada a ver com isso. Pelo novo texto, empreiteiras não serão obrigadas a cumprir condicionantes que impliquem em “implantar infraestrutura de competência do poder público”.

Procurada, a FPA disse que não iria se manifestar sobre o assunto “por enquanto”. A CNI não respondeu ao pedido de comentário até o fechamento deste artigo.

PRA QUE ISSO AGORA?

A lista de ciladas no texto de Pereira é tão grande e tão caricata que fica difícil saber qual é o objetivo da FPA e da CNI com a proposta. Alguém menos familiarizado com Brasília poderia argumentar que se trata do proverbial “bode na sala”: estica-se a corda de uma negociação com uma proposta absurda para ganhar concessões adiante.

No caso do licenciamento, porém, isso era desnecessário, porque Sarney Filho já entrou na negociação com a FPA cedendo na principal demanda dos ruralistas — a dispensa de licença para agropecuária extensiva. Pode ser simplesmente que eles estejam apresentando essa proposta porque sabem que podem ganhar.

Quem acha que já viu esse filme antes está certo: em 2010, quando a bancada ruralista tinha bem menos poder do que tem hoje, formou-se uma comissão destinada a mudar o Código Florestal. Em 2011, o plenário da Câmara aprovou por imensa maioria a proposta mais absurda de mudança no código, forçando o governo Dilma a entrar numa negociação que já estava perdida desde o início. O resultado todos vimos na aprovação da lei, em 2012, e na explosão do desmatamento na Amazônia nos anos seguintes.

Há poucos motivos para pensar que o licenciamento ambiental terá destino diferente. As Odebrechts da vida agradecem, já que, sem exigências no processo de licenciamento, não terão mais o Ministério Público, os índios, os ambientalistas e “tudo o que não presta” no seu pé, atrasando calendários de obras e exigindo cumprimento de condicionantes. O licenciamento dos sonhos da bancada ruralista e da CNI é também o licenciamento dos sonhos do conluio entre empreiteiras e agentes políticos — aquele com o qual a sociedade brasileira está supostamente enojada.

 

Republicado do Observatório do Clima através de parceria de conteúdo. logo-observatorio-clima

 

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Comentários 16

  1. Victor Athayde diz:

    Achei a matéria bem alarmista. O projeto de lei não é nocivo como fala, o que é prejudicial para empreendedores e sociedade é a falta de investimentos, principalmente na estruturação dos órgãos do SISNAMA, daí não tem poder de polícia preventivo e nem repressivo que dê conta.


  2. Carmen diz:

    As pessoas acham que vão comer computador. A tecnologia resolverá todos os problemas da face da terra. Onde estão os seres pensantes, conscientes? CadÊ a Educação? Os Educadores? Como entregamos o "ouro p bandidos?" As pessoas de bem estão encurraladas. Não está na hora da virada?


  3. paulo diz:

    Os biopiratas atacando os ecossistemas brasileiros.


  4. Cláudio Jorge diz:

    Pode ser que os ambientalistas exagerem, pois se não exageram não são ouvidos, mas também é certo que algum empresário munido de algum políticos vai fazer esta lei ser o que ele acha que é correto.
    Tudo é uma questão de ponto vista: para a minhoca é melhor cavar em terra dura do que sair para uma pescaria.


    1. Esopo diz:

      Negativo! Ao exagerarem, são iguais aquele pastor da fábula que gritava "Lobo, lobo!" toda hora…daí quando era de verdade, ninguém acreditou e o bichão papou o rebanho! Fora que exagerar é uma coisa, fake news é outra…


  5. João das Neves diz:

    Texto padrão do ambientalismo brasileiro. Reclama de tudo, exagera nos adjetivos pra variar… Por isso que não levam a sério. O autor cita que a proposta da Lei pode autorizar asfaltar estrada na amazônia. Então na ideia dele o povo lá que se lasque? O bom selvagem lá deve gostar é de ficar dias na estrada de terra mesmo. Fora que o empreendedor não tem que pagar por infraestrutura urbana. Isso tem que estar no planejamento do governo. Resolveu fazer uma obra, ele que arque com a parte dele.


    1. Claudio Angelo diz:

      Meu caro, acho que você está com problema de leitura e interpretação de textos. Uma coisa é debater a construção e o asfaltamento de estradas na Amazônia. Morei no Acre antes do asfaltamento da BR-364 e sei bem o que significa o povo se lascar. OUTRA COISA, bem diferente, é dizer que isso deve ser feito SEM NECESSIDADE DE LICENÇA AMBIENTAL, como o projeto propõe.


    2. Isabel diz:

      O nível mais alto de ignorância é quando rejeitas algo do qual você não sabe nada! Seu comentário demostra um profundo desentendimento das consequências negativas e magnitude do impacto que pode acarretar a eliminação ou super flexibilização da legislação ambiental. E estes impactos não vão repercutir só na fauna brasileira, lhe encorajo a que pesquise um pouquinho de serviços ecossistêmicos e como os seres humanos dependemos deles. Com razão são eleitos políticos tão despreparados socio-ambientalmente quanto você que não conseguem enxergar os problemas alem de seu nariz, focando-se no imediatismo e egoismo (bem do tipo cortar a arvore para pegar hoje o máximo numero de goiabas possíveis… sem pensar no amanha? e os outros?). Você conhece de onde vem a água de esse povo da amazônia como você falou? e qual é o ciclo e fatores que fazem ela circular e manter ela no tempo? você sabe de onde vem a lenha que eles usam para cozinhar?, os animais que eles consumem? quem protege eles de não serem impactados por enormes inundações que faça erodir a terra e leve suas casas? ou que impede sequias prolongadas que os deixem sem água. Acredito que todo isso vale mais que uma estrada asfaltada, uma mineração por perto ou uma barragem que seque seus rios sem avaliar as consequências socioambientais que essas obras podem trazer. A legislação ambiental não freia o desenvolvimento, ela procura que este seja da forma mais sustentável e com menos impacto possível para que futuras gerações ainda tenham recursos e matéria prima. Amigo se você é formado e acha que seu conhecimento na sua área merece respeito porque não é a toa que o conhecimento é gerado, então respeite e considere o esforço e conhecimento gerado por outros e mais se você não entende. E acredito que você não debe gostar de TV, Journal e em especial noticias porque mais sensacionalistas e exageradas que essas não tem.


      1. João das Neves diz:

        Reafirmo o que disse sobre o exagero dos ambientalistas. O seu próprio comentário reforça minha teoria. Repito também: infraestrutura urbana é responsabilidade pública, essa é a minha opinião, não tem nada a ver com conhecimento do procedimento.
        Fora que em momento nenhum não disse que não deveriam ser feitos estudos, medidas mitigadoras, avaliação de impactos, etc. Vc que precisa saber ler melhor. Além disso, vc não me conhece e nem sabe se eu entendo alguma coisa sobre o assunto pra arrotar sua soberba e arrogância típica de ambientalista mimada.


        1. Isabel diz:

          Peço desculpas pela soberba e arrogância da minha escrita, e se ofendi ao senhor. Depois de tanto esforço por algumas conquistas ambientais é frustrante ver involuções e que estas sejas apoiadas por parte da sociedade civil. As vezes parece esquecida o subestimada a importância dos recursos naturais para a humanidade, mas nada justifica comentários arrogantes e/ou ofensivos de nenhum tipo em nenhum assunto, me desculpe. Estamos no mesmo barco, a batalha ambiental não beneficia aos ambientalistas é uma luta pro-vida de todas as formas existentes no planeta incluindo o ser humano, seu meio e seu futuro, quase um altruísmo. Mas com certeza nada conseguimos se estamos carregados de agressividade, falta de empatia e não tentamos entender todos os pontos de vista, me desculpe por eu não ter-lo feito.


  6. Bismarck diz:

    Nessa proposta aí deve ter coisa boa e coisa ruim…Como eu disse: "Política é a arte do possível!"


  7. Simone diz:

    É verdade, se a Unidade de conservação tem um Plano de manejo bem feito e disponibiliza, já fornece as informações pro licenciador se manifestar tecnicamente em prol da Unidade de conservação


  8. Custo-Brasil diz:

    "Uma das mais perigosas diz respeito a unidades de conservação. Pela lei de 2000 que criou o Sistema Nacional de Unidades de Conservação, os órgãos gestores de áreas protegidas, como o ICMBio, têm poder de veto nos processos de licenciamento. Isso cai com o substitutivo de Mauro Pereira, o que possibilitaria, por exemplo, construir uma hidrelétrica num rio que corta um parque nacional, mesmo que isso significasse a extinção de uma ou mais espécies". NÃO É VERDADE, pois a observância das restrições que o SNUC traz para cada categoria de UCs não está restrita ao órgão gestor da unidade…o órgão licenciador também tem que obedecer. Ou seja, não é necessário todo um rito paralelo de autorização para que o órgão gestor da unidade apenas lembre ao órgão licenciador que tem de obedecer a lei. Ambos são órgãos AMBIENTAIS, afinal!


    1. Claudio Angelo diz:

      O artigo 36 da Lei do Snuc afirma que os órgãos gestores de UCs manifestam-se de forma vinculante no licenciamento. Assim, a licença para empreendimento que afete UC ou zona de amortecimento só pode ser dada mediante aquiescência do órgão gestor. O parecer da CFT revoga esse artigo, tornando tal autorização desnecessária. Os órgãos gestores de UCs viram "envolvidos" apenas.


      1. ombudsman diz:

        Novamente NEGATIVO, caro jornalista !!! O impedimento para construção de uma hidrelétrica dentro de um Parque Nacional advém dos artigos 7 e 11 da Lei do SNUC, não do 36. Portanto, QUALQUER órgão licenciador tem de observar a lei, independente de eventual manifestação própria de órgão gestor de UC. E quanto a construção de hidrelétricas fora de um Parque, mas num rio que o corta e apresente espécies ameaçadas…vide o exemplo de Baixo Iguaçú e seu surubim endêmico…obteve licença mesmo com a legislação atual e atuação do ICMBio


    2. Estas situações e tantas outras, interessam basicamente aos grandes latifundiários, que estão sempre jogando contra nós Brasil.
      Os interesses mesquinhos, sempre estiveram, estão e continuará sempre estando aos interesses de poucos.
      Os grandes órgãos ambientais, em alguns momentos já trabalham em prol dos interesses de poucos, no caso os mais abastados dos grande
      capitais, e que já participam das grandes pesquisas, por exemplo da lista Forbes.
      Quase sempre não existe consciência dos que so enxergam o próprio umbigo.
      É revoltante e preocupante ao mesmo tempo a falta de preocupação com o meio ambiente.