Análises

Como barreiras artificiais impactam a vida marinha

Os ambientes marinhos estão sendo ocupados por estruturas artificiais que dificultam a circulação de nutrientes e organismos, afetando a conectividade entre os diferentes ambientes marinhos

Eloisa Alves de Sousa · Andrei Langeloh Roos ·
24 de junho de 2020 · 4 anos atrás
Baleia mãe e filhote. Foto: David Rich/Pixabay.

Imagine-se você uma baleia, mergulhando e nadando livremente no oceano, perfazendo sua rota ancestral, aprendida com sua mãe e avó. Em determinado ano, ao voltar pelo mesmo caminho, eis que surge uma série de obstáculos, que te obrigam a mergulhar mais fundo, desviar quilômetros para a longe da costa ou passar por áreas perigosamente rasas próximas à costa. Esta é uma triste realidade para os organismos marinhos que realizam migrações no oceano. Ano após ano, esses obstáculos têm se multiplicado e proliferado em todos os oceanos e mares costeiros do mundo, o que pesquisadores têm chamado de ‘ocupação dos oceanos’, do termo em inglês “ocean sprawl”.

Os cientistas designaram de ocupação dos oceanos a construção de estruturas artificiais nos ambientes estuarinos, costeiros e marinhos, ou seja, todo tipo de estrutura artificial que ocupa o espaço sobre e sob a água. Estruturas artificiais são todas aquelas estruturas criadas pelo ser humano, tais como píeres, quebra-mares, portos e recifes artificiais, fazendas aquáticas, redes de pesca, boias e sinalizadores, plataformas petrolíferas e eólicas em alto mar (offshores), e até embarcações de lazer, pesca e transporte. Tais estruturas artificiais causam uma série de impactos à biodiversidade e ao funcionamento dos ecossistemas aquáticos.

No mar são encontrados ambientes que variam em luminosidade, temperatura, declividade e disponibilidade de alimentos para organismos marinhos. Essa variação permite que uma grande diversidade de vida ocupe esses diferentes ambientes marinhos. Além das condições de dentro d’água, fatores como a incidência de ventos e correntes marítimas e o relevo do fundo do mar, também têm forte influência sobre esta variedade de ambientes e de organismos marinhos.

Faz parte do ciclo de vida de algumas espécies marinhas transitarem entre estes diferentes locais, seja por influência da sazonalidade, para a busca por alimentos, ou para completarem diferentes etapas do seu ciclo biológico. Assim, é uma característica dos ecossistemas aquáticos essa dinâmica de movimentação dos organismos que transportam nutrientes e sedimentos entre diferentes ambientes ou zonas marinhas.

A conectividade ecológica no mar pode ser entendida como o grau no qual uma paisagem marinha facilita ou restringe o movimento de organismos e nutrientes entre ambientes descontinuados. Assim, um ambiente marinho natural vai apresentar obstáculos e travessias marítimas com as quais os organismos marinhos já estão adaptados a atravessar – ou seja, uma paisagem marinha com maior facilidade de movimentação entre os ambientes diferentes. À medida que o mar vai sendo ocupado por estruturas artificiais fixas – plataformas, portos e outros – ou também estruturas móveis – embarcações, boias, redes de pesca – a dificuldade de se transitar entre um ambiente e outro aumenta. Isso faz com que os organismos precisem lidar com obstáculos recém aparecidos e imprevistos em seu caminho. O impacto ecológico provocado pela ocupação artificial do mar se dá justamente sobre a dinâmica de movimentação de nutrientes e dos organismos, afetando a conectividade entre os diferentes ambientes marinhos.

Alguns cientistas têm publicado trabalhos afirmando que a existência de novas estruturas artificiais no mar pode criar novos microhábitats e promover a diversidade de espécies, além de servir como refúgio para espécies marinhas sob estresse. Por outro lado, existem também trabalhos, como o liderado pelo cientista Carlos Duarte, da Universidade da Austrália Ocidental, publicado em 2013, no qual analisaram as estruturas artificiais em diversos pontos nos oceanos e seus efeitos sobre as comunidades de alguns organismos. O estudo mostrou a relação entre a presença das estruturas artificiais nos ambientes marinhos e a proliferação anormal de águas-vivas, em regiões costeiras nos Estados Unidos e ao longo do Mar Mediterrâneo. Isso ocorre uma vez que estas estruturas artificiais são locais ideais e preferidos para a colonização das águas-vivas na sua fase juvenil, que é fixa.

Distribuição da Vida nos Oceanos. Arte: Eloisa Alves de Sousa e Andrei Langeloh Roos.

Pesquisas mais recentes têm indicado que essas estruturas subaquáticas ainda trazem outros impactos negativos. Elas alteram a disponibilidade de luz sob a água, o fluxo e a movimentação de nutrientes, ondas e sedimentos, e ainda alteram as relações de predadores e presas e o equilíbrio dos ecossistemas. Também afetam a livre movimentação de diferentes espécies, criando barreiras e obstáculos à movimentação dos organismos que realizam grandes rotas de migração, tais como tartarugas, mamíferos aquáticos (baleias e golfinhos), peixes, crustáceos, dentre outros. Em síntese, comprometem a conectividade dos ambientes e organismos, alterando processos ecológicos e evolutivos que ocorrem nesses ambientes, fazendo com que a influência dessas barreiras vá muito além do local e tempo onde estão colocadas. Mesmo organismos pequenos ou em fases larvais, que dependem das correntes oceânicas para se dispersarem e alcançarem novas áreas propícias para completarem seu desenvolvimento, têm sua movimentação alterada, dificultada ou até impedida por essas estruturas subaquáticas.

Muitas rotas de migração de baleias ocorrem próximas à costa. Segundo a cientista Eliza Heery, da Universidade de Washington, e colaboradores, a alimentação de predadores como as baleias-cinzentas pode ser reduzida em hábitats sedimentares – locais ricos em nutrientes e presas – onde estruturas artificiais bloqueiam sua movimentação e a sua busca por alimentos. Além disso, o livro Exploring Connections Between Cities & Oceans de Timothy Beatley, aponta o exemplo da população de baleia-franca do Atlântico Norte, estimada em 350 indivíduos, que fora dizimada em parte por colisões com navios causados por canais de transporte que interferem em suas rotas de migração. O caso levantado por Beatley é importante, uma vez que o mesmo relata que, em 2009, esses canais que levavam ao Porto de Boston, nos EUA, foram alterados e estreitados para reduzir as colisões fatais com as baleias.

As tartarugas, por sua vez, podem ter o acesso modificado a áreas adequadas para a reprodução por conta da ocupação dos oceanos. A ocupação artificial da zona costeira de mar impede a migração das tartarugas que saem mar e desovam nas praias. Existem trabalhos científicos que confirmam uma menor quantidade de tartarugas-cabeçudas subindo em praias que apresentam a linha costeira bloqueada do que em praias ainda não ocupadas artificialmente. O número de filhotes eclodidos de tartarugas-cabeçudas também é menor em zonas costeiras artificialmente ocupadas.

Ambientes Marinhos Naturais. Figura: Eloisa Alves de Sousa e Andrei Langeloh Roos.
Ambientes Marinhos Modificados. Figura: Eloisa Alves de Sousa e Andrei Langeloh Roos.

Ao transitar entre diferentes ambientes do mar, como a costa e o estuário, baleias, tartarugas e outros animais marinhos migratórios se encontram ameaçados por colisões com embarcações e plataformas, exposição a restos de apetrechos de pesca e outras instalações artificiais marinhas e até mesmo a captura acidental por redes de pesca.

Por se tratar de um ramo de pesquisa recente, em 2017, cientistas de várias nacionalidades, coordenados por Melanie Bishop, da Austrália, fizeram uma revisão de todo o conhecimento sobre os impactos da ocupação artificial e as possíveis soluções já propostas para permitir a conectividade ecológica. Além dos resultados apontados, o artigo apresenta várias lacunas de pesquisas ainda a serem preenchidas. Concluem que ainda precisam de uma compreensão mais completa de como a ocupação do mar impacta a conectividade em diferentes escalas, os diferentes hábitats e as cadeias alimentares.

Novos termos, ainda não traduzidos do inglês, são usados para se referir a este recente tema de pesquisa científica, como o Blue Urbanism, que trata da ocupação de ambientes marinhos e das conexões entre a extensão da vida humana nas cidades e o adensamento de estruturas nos oceanos. Com a ideia de minimização dos impactos provocados, os especialistas afirmam a necessidade de uma atenção maior ao planejamento espacial marinho e um investimento maior de pesquisa na área de ecoengenharia.

*Textos produzidos pelos(as) alunos(as) da disciplina “Conservação da Biodiversidade no Antropoceno”, ministrada no Programa de pós-graduação em Ecologia da UFSC, pela Profa. Dra. Michele de Sá Dechoum (UFSC) e pela Dra. Paula Drummond de Castro (Labjor – UNICAMP). 

**Este texto foi escrito por Eloisa Alves de SousaAndrei Langeloh Roos.

As opiniões e informações publicadas na área de colunas de ((o))eco são de responsabilidade de seus autores, e não do site. O espaço dos colunistas de ((o))eco busca garantir um debate diverso sobre conservação ambiental.

 

Referências

Bishop, Melanie & Mayer-Pinto, Mariana & Airoldi, Laura & Firth, Louise & Morris, Rebecca & Loke, Lynette & Hawkins, Stephen & Naylor, Larissa & Coleman, Ross & Chee, Su Yin & Dafforn, Katherine. (2017). Effects of ocean sprawl on ecological connectivity: Impacts and solutions. Journal of Experimental Marine Biology and Ecology. 492. 10.1016/j.jembe.2017.01.021. 

Beatley, Tim. (2014). Blue urbanism: Exploring connections between cities and oceans. Blue Urbanism: Exploring Connections between Cities and Oceans. 1-188. 10.5822/978-1-61091-564-9. 

Heery, Eliza & Bishop, Melanie & Critchley, Lincoln & Bugnot, Ana & Airoldi, Laura & Mayer-Pinto, Mariana & Sheehan, Emma & Coleman, Ross & Loke, Lynette & Johnston, Emma & Komyakova, Valeriya & Morris, Rebecca & Strain, Elisabeth & Naylor, Larissa & Dafforn, Katherine. (2017). Identifying the consequences of ocean sprawl for sedimentary habitats. Journal of Experimental Marine Biology and Ecology. 10.1016/j.jembe.2017.01.020. 

Duarte, Carlos & Pitt, Kylie & Lucas, Cathy & Purcell, Jennifer & Uye, Shin-ichi & Robinson, Kelly & Brotz, Lucas & Decker, Mary & Sutherland, Kelly & Malej, Alenka & Madin, Laurence & Mianzan, Hermes & Gili, Josep-Maria & Fuentes, Veronica & Atienza, Dacha & Pagés, Francesc & Breitburg, Denise & Malek, Jennafer & Graham, William & Condon, Robert. (2013). Is global ocean sprawl a cause of jellyfish blooms?. Frontiers in Ecology and the Environment. 11. 91-97. 10.2307/23470528. 

 

Leia Também 

Biopoluição irreversível

A história de um mar vazio

Estupidez no fundo do mar

 

  • Eloisa Alves de Sousa

    Eloisa Alves de Sousa é bióloga e mestranda no Programa de Pós-graduação em Ecologia da UFSC e Andrei Langeloh Roos é biólogo...

  • Andrei Langeloh Roos

    Eloisa Alves de Sousa é bióloga e mestranda no Programa de Pós-graduação em Ecologia da UFSC e Andrei Langeloh Roos é biólogo...

Leia também

Colunas
29 de setembro de 2004

Estupidez no fundo do mar

A modernização da indústria pesqueira tem efeitos desastrosos para a biodiversidade marinha. Em 50 anos a população de peixes nos oceanos diminuiu 90%

Colunas
17 de março de 2011

A história de um mar vazio

Os peixes e grande parte da megafauna marinha estão ameaçadas de extinção, uma consequência da exploração desde a Idade Média

Colunas
10 de novembro de 2004

Biopoluição irreversível

A invasão de ecossistemas marinhos por espécies exóticas é um fenômeno irreversível, que começou com as caravelas e alastrou-se com as andanças humanas

Mais de ((o))eco

Deixe uma resposta

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.