Análises

Técnicas de captura de onça e o jovem Mr. Wonderful

Nesta continuação, os pesquisadores seguem a trajetória de um macho jovem, que precisou se afastar da mãe e da irmã para estabelecer seu próprio território.

Peter G. Crawshaw Jr. ·
2 de julho de 2014 · 10 anos atrás

A onça Dolly na forquilha da árvore. Foto: acervo Peter Crawshaw
A onça Dolly na forquilha da árvore. Foto: acervo Peter Crawshaw

O texto a seguir é a continuação da primeira parte do artigoTop cat in a vast Brazilian marsh” (Predador de topo em um vasto pântano brasileiro), publicado no Animal Kingdom Magazine, Setembro/Outubro 1986, e re-publicado em 1988 (Ultralight Flying!, February (144): 16-19) e em 1989 (Current Science, 74 (11): 4-6). O artigo narra a história sobre o estudo das onças na Miranda Estância, no sul do Pantanal, com um período entre agosto de 1978 e abril de 1980.

As onças são tão discretas em seus hábitos que a única hora em que tínhamos contato direto com elas era durante as capturas para colocação dos colares – obviamente o aspecto mais excitante do nosso trabalho. Nós adotamos um dos métodos tradicionais de caçar esses felinos no Pantanal, usando cachorros especialmente treinados, que perseguiam o animal até que ele subia em uma árvore ou o acuavam em um trecho de vegetação cerrada. Cada captura era um novo evento e nenhum participante – nem a onça, nem cachorros, cavalos, ou pessoas – reagiam da mesma forma.

O dia em que capturamos Dolly, uma fêmea adulta, nós estávamos na trilha de outra fêmea, a Mãe, para troca de seu colar, cuja bateria necessitava substituição (o tempo de duração é de pouco mais de um ano). Nosso grupo – Sr. Jaime, capataz do retiro Piúva, Darlindo, prático dos cachorros, Howard, e eu – estava atravessando um trecho de campo alagado, quando o Sr. Jaime viu uma onça sair de um pequeno capão de mata e correr para a floresta próxima. Depois de testar as frequências dos nossos animais aparelhados, eu tive certeza que esse era um animal novo, sem colar.

Nós soltamos os cachorros e um pandemônio se formou. Latindo em frenesi, eles imediatamente pegaram o rastro de cheiro (a “batida”, como dito no Pantanal) deixado pela onça e entraram na mata. Amarrando os cavalos na sombra, nós abrimos uma trilha pela vegetação fechada, nos apressando para ficar perto o suficiente dos cachorros para escutar seus latidos. De repente, os latidos mudaram de tom, do uivo contínuo característico da corrida, se transformaram em latidos curtos e excitados: a onça havia empoleirado, havia subido em uma árvore! Os olhos experientes do Darlindo logo a localizaram agachada em uma forquilha, mimetizando a folhagem densa. Ele e o Jaime prenderam os cachorros nas coleiras e os amarraram a uma distância dali. Howard e eu simultaneamente atiramos dois dardos, um em cada quarto musculoso do animal, e nos afastamos silenciosamente, para que ela pudesse descer antes que o anestésico fizesse efeito.

Quando saltou no solo, já tonta, ela começou a correr em círculos. Por duas vezes ela chegou a pouco mais de um metro de mim, mas trocou de direção, sem qualquer sinal de agressividade, quando eu gritei com ela e bati palmas. Antes que pudéssemos atirar mais um dardo, ela desapareceu na vegetação rasteira. Logo em seguida, Darlindo novamente a encontrou deitada, quieta, mas ainda alerta, embaixo de um arbusto. Mais um dardo, desta vez na paleta, e em poucos minutos ela estava dormindo inofensiva a nossos pés. Quando a examinamos, descobrimos que essa fêmea de 75 quilos estava no cio: ela tinha ainda sêmen na sua vulva inchada. Pequenos cortes abertos na sua cabeça, pescoço, e ombros atestavam o seu recente encontro amoroso. Ajustamos o rádio-colar no seu pescoço de forma segura e esperamos a uma distância prudente até que ela se recuperou da anestesia e se afastou do local.

O capão de onde ela havia saído revelou mais surpresas. Não apenas encontramos ali pegadas frescas de um macho adulto, misturadas às dela, mas também as carcaças de uma fêmea subadulta de onça parda e de um macho subadulto de anta. Ambos os animais tinham sido destramente mordidos na nuca. Os felinos estavam provavelmente comendo a anta quando interrompemos a sua refeição com a nossa chegada. Marcas no capim indicaram que eles haviam matado a anta em outro capão, distante uns 60 m, e a arrastaram até onde elas haviam matado a parda, mas não como alimento. Isso me lembrou uma ocasião em Acurizal, quando um casal de onças pintadas havia matado um tamanduá-mirim aparentemente por brincadeira, pois eles meramente o morderam na nuca e o abandonaram. George Schaller havia especulado que essa pode ser uma forma de reduzir a tensão e a agressividade entre um casal enquanto a fêmea ainda não está muito receptiva.

“CPoder monitorar essa família nos proporcionou novos conhecimentos sobre a organização social e sistema de posse de área do maior felino das Américas.”

Durante os nossos três anos e meio em Miranda, nós aparelhamos sete onças-pintadas, de uma população que nós estimamos em cerca de 52 animais. Tivemos sorte em capturar todo um grupo familiar, composto de uma fêmea adulta, a Mãe, e seus dois filhotes subadultos, Felícia e Dr. Wonderful. Dois anos depois, ainda capturamos mais um filhote macho dessa mesma fêmea. Poder monitorar essa família nos proporcionou novos conhecimentos sobre a organização social e sistema de posse de área do maior felino das Américas.

Em março, dois meses depois da sua captura, Felícia e seu irmão, então com 18 meses de idade, se separaram da sua mãe, que imediatamente começou a cobrir uma área maior, aparentemente à procura de um macho. Nossa suposição se confirmou quando algum dia entre julho e agosto ela deu à luz uma nova ninhada. (O período de gestação de uma onça-pintada é de aproximadamente 110 dias). Mais tarde, capturamos e aparelhamos um desses filhotes, um macho que demos o nome de Felix. Com base em pegadas encontradas, estávamos razoavelmente certos que a Mãe tinha novamente parido dois filhotes, o que parece ser o normal para onças-pintadas.

A Felícia logo estabeleceu um novo território vizinho ao de sua mãe. Dr. Wonderful se dirigiu para o leste, procurando por territórios ainda não reclamados. O período de dispersão para um macho é em geral difícil. Ele é obrigado a deixar sua área natal, expulso pela sua mãe, até, adulto, estabelecer seu território. Durante esse tempo, ele tem que atravessar terreno desconhecido, arriscando-se a encontrar outros animais residentes, que o hostilizam. No início dessa jornada, eu encontrei o Dr. Wonderful em um capão de mata completamente ilhado pela enchente. Era o final de março de 1982. Eu armei minha rede a uns 100 m de onde ele se alimentava de um tamanduá-mirim, na outra ponta do capão, e me preparei para passar uma longa noite monitorando a sua atividade.

Acampamento volante, no monitoramento das onças na Miranda Estância, Pantanal de Miranda, 1982. Foto: acervo Peter Crawshaw
Acampamento volante, no monitoramento das onças na Miranda Estância, Pantanal de Miranda, 1982. Foto: acervo Peter Crawshaw

Ao entardecer, outra onça esturrou próximo, no mesmo capão em que estávamos. Eu sabia que era uma fêmea, pela rápida sucessão de roncos curtos. A vocalização de um macho se diferencia por ser bem mais lenta e mais grave. Na manhã seguinte, eu confirmei se tratar de uma fêmea, medindo as suas pegadas – as pegadas de um macho são maiores e mais arredondadas, com os dedos mais separados entre si. Após alguma hesitação, Dr. Wonderful respondeu com roncos aparentemente tímidos, e pela próxima hora eles se comunicaram entre si, os roncos da fêmea se tornando mais impacientes, e os do macho jovem, mais reticentes.

Duas horas depois, o Dr. Wonderful passou por mim fazendo ruído na água quando ele passou a cerca de 30 m da minha rede. Seu sinal de rádio lentamente desapareceu na noite, levando com ele o meu senso de segurança. Assim que ele se foi, a fêmea foi até onde ele havia estado e até as duas horas da manhã andou inquieta por ali, perturbando o silêncio da madrugada com os seus roncos ásperos. Então o som de um macho adulto ecoou de longe, ao que ela respondeu e depois, aparentemente, foi ao seu encontro.

Esse incidente nos deu um vislumbre sobre a importância de vocalizações na comunicação intraespecífica da onça-pintada. Por um lado, a fêmea adulta e o macho jovem evitaram um contato agressivo direto, que poderia ter resultado em lesões incapacitantes para um ou ambos os animais. Por outro, os chamados da fêmea haviam servido para atrair um macho adulto de uma grande distância. Esse último caso parece ser a função principal das vocalizações da espécie no Pantanal, uma vez que nós comumente ouvíamos esses chamados durante a estação reprodutiva, de dezembro a maio.

“Com uma idade de pouco mais de três anos, eu tive certeza que ele havia garantido o seu lugar na população residente de onças da fazenda.”

Pelos próximos dois meses, eu segui os movimentos do Dr. Wonderful enquanto ele deixava sua área natal. Em julho, cinco meses depois da separação da família, ele finalmente se estabeleceu em um novo território, 30 km a leste dos territórios de sua mãe e irmã. Não tivemos mais nenhuma evidência de que ele tenha se associado com elas novamente. Em dezembro de 1983, pouco antes de o nosso projeto terminar, eu o encontrei deitado ao lado de uma fêmea adulta, sem colar. Com uma idade de pouco mais de três anos, eu tive certeza que ele havia garantido o seu lugar na população residente de onças da fazenda.

Em 1985, o pesquisador Alan Rabinowitz, da Wildlife Conservation Society, terminou um estudo de 20 meses da onça-pintada nas florestas de Belize, na América Central (veja “In the Realm of the Master Jaguar”, Animal Kingdom Março/April 1986). Comparações preliminares com os nossos resultados mostram a adaptabilidade de uma espécie que se distribui do México até a Argentina.

Foto: acervo Peter Crawshaw
Foto: acervo Peter Crawshaw

No habitat mais aberto do Pantanal, os territórios das onças tiveram, em média, 142 km², quase quatro vezes mais que os 40 km2 encontrados em Belize. Enquanto as nossas onças se alimentavam principalmente de presas grandes, como capivaras e queixadas, o alimento mais importante em Belize foram tatus. Essas diferenças são provavelmente relativas ao fato de que as onças no Pantanal são o dobro do tamanho daquelas em Belize. O peso médio de seis machos adultos em Belize foi 58 kg, enquanto que cinco fêmeas no Pantanal tiveram, em média, 76 kg. Dr. Wonderful, nosso único macho, mesmo como subadulto, pesou 95 kg com 22 meses de idade e, no Pantanal, há relatos de machos de mais de 128 kg.

As diferenças em habitat também influenciam o sistema de posse de área. Em Belize, as fêmeas tinham pequenos territórios exclusivos. As fêmeas no Pantanal tinham grandes áreas sobrepostas durante a estação seca, mas durante a enchente cada uma delas ocupava quase exclusivamente uma área de apenas um décimo da usada durante a estação seca. Quanto mais aprendemos sobre esses tipos de adaptação geográfica a ambientes locais, melhor poderemos planejar estratégias abrangentes de manejo.

As onças-pintadas são protegidas por leis em quase todos os países em que ainda ocorrem, mas, em geral, ainda são perseguidas por suas peles ou como troféus. Empregados em fazendas de pecuária ainda matam esses felinos, ostensivamente, para proteger o gado da predação. Mas embora as onças realmente matem gado, essa percentagem é apenas uma parte muito pequena do que é perdido por causa de doenças, parasitas, enchentes e outros fatores.

A destruição de habitat representa outra grande ameaça à espécie. A cada ano que passa, as florestas que abrigam e protegem esses magníficos animais diminuem mais ante o avanço inexorável do homem e o desenvolvimento. A maior parte do Pantanal se encontra em propriedades privadas. Apenas duas áreas são protegidas pelo governo federal: o Parque Nacional do Pantanal Matogrossense, com 138 mil hectares, perto da divisa com a Bolívia, e uma pequena ilha no rio Paraguai, próximo a Cáceres, a Estação Ecológica de Taiamã. Mesmo com esses santuários, no entanto, o futuro da onça-pintada no Pantanal ainda é incerto.

Grandes carnívoros são particularmente susceptíveis à extinção; vários deles – o urso-pardo, o tigre, e o leopardo-das-neves, por exemplo – já foram eliminados de vastas áreas de sua distribuição original. Esses animais ocupam o topo da cadeia alimentar e proteger porções grandes o suficiente de suas áreas de distribuição, que garantam populações sustentáveis dessas espécies, certamente ajudaria a sobrevivência de muitas das espécies abaixo deles na pirâmide. Mesmo que apenas por esse motivo, as onças e outras espécies como elas deveriam ser consideradas e tratadas como símbolos para a conservação. De acordo com John Weaver, coordenador nacional para o programa de habitat para o urso-pardo americano, a sua sobrevivência “será um teste do nosso compromisso para com a fauna e com os lugares selvagens, uma prestação de contas da nossa disposição em dividir um pouco dessa pequena, mas linda, Terra em que vivemos, com nossos vizinhos selvagens”.

 

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  • Peter G. Crawshaw Jr.

    Formado em Ciências Biológicas em 1977 pela Unisinos, RS, com mestrado e doutorado pela Universidade da Florida. Trabalhou no...

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