Análises

O Brasil se esconde como o Tatu

Ao contrário da África do Sul, a Copa no Brasil não trará nenhum benefício à visitação dos parques, que não receberam qualquer melhoramento.

Ana Luisa Da Riva ·
3 de junho de 2014 · 10 anos atrás

No Parque Kruger, antes do início da copa, em alguns núcleos, 100% das acomodações para turistas estava reservada. Foto:
No Parque Kruger, antes do início da copa, em alguns núcleos, 100% das acomodações para turistas estava reservada. Foto:

Ao andar por parques Africanos e se deparar com um grupo de crianças e professores tendo uma aula sobre a importância ambiental, cultural e social da conservação dos parques nacionais, provavelmente você não fará a menor ligação entre a “aula” e a barulhenta “kuduzela”, a exótica corneta que enlouqueceu os ouvidos dos torcedores de futebol na Copa do Mundo de 2010.

A kuduzela é um instrumento em forma de chifre que representa um ícone na África do Sul por se assemelhar aos cornos do Kudu e emitir um som que é característico da presença deste animal nas savanas do país. A escolha do instrumento para o evento esportivo foi fruto de uma parceria entre a agência responsável pela gestão dos parques naturais, a SANParks (South African National Parks), e o “First National Bank” do país, com o intuito de inspirar o turista a “viver a África”, oferecendo uma “real experiência”. Para cada kuduzela vendida na Copa, uma parte dos recursos foi revertida para o projeto “Kids in Parks”, que levou milhares de alunos e professores para estes espaços na tentativa de valorizar a importância de sua conservação.

Esta não foi a única iniciativa que mostrou que o sistema de parques sul-africano soube aproveitar o momento para dinamizar as oportunidades em favor de suas áreas. Outros benefícios foram colhidos pelo contrato celebrado entre a SANParks e a empresa Match, responsável pelas acomodações e venda ingressos para o evento, como a reserva antecipada de 30% dos leitos disponíveis em 11 parques nacionais e até 100% em alguns núcleos do Parque Kruger, para serem oferecidos aos turistas na ocasião. Junto com a agência, foi criado o conceito de “MatchVilles”, acomodações diferenciadas, que ofereciam o gosto de uma experiência selvagem nos parques aos turistas, atrelado a uma organizada logística para que desfrutassem dos jogos.

O senso de oportunidade se reverteu em benefícios reais para esses espaços, especialmente porque a SANParks reconheceu a importância de um planejamento precoce para que os resultados, traçados ainda em 2007, fossem atingidos. Três anos antes do evento a agência já apresentava à empresa Match a proposta de incorporar as áreas conservadas na oferta de produtos turísticos da Copa. A visão, naquele momento, era de que a SANParks poderia contribuir para fomentar novos oportunidades nos parques, ampliar o numero de pessoas envolvidas ou tocadas pela agenda da conservação e criar uma rede de clientes fiéis que compartilhariam mundo afora a experiência vivida. Até mesmo o uso da marca dos parques do país foi estrategicamente pensado, para que pudesse se reverter em receitas e ajudar a financiar o sistema de áreas protegidas.

África do Sul se preparou

“As ações para a Copa de 2010 foram concebidas […] de forma a reverter recursos para o sistema nacional de conservação, que vinha sofrendo com a queda no aporte vindo do governo.”

As ações para a Copa de 2010 foram concebidas no âmbito do “Plano de Comercialização Estratégica” para os parques, criado em 2006 com o objetivo de ampliar a oferta de bens e serviços comercializáveis nessas áreas de forma a reverter recursos para o sistema nacional de conservação, que vinha sofrendo com a queda no aporte vindo do governo.

Os objetivos desse Plano da SANParks incluem geração de receita, uso otimizado de recursos governamentais subutilizados, criação de empregos, alívio da pobreza, inclusão de minorias, aprimoramento de infraestrutura, desenvolvimento das regiões onde os parques se inserem, promoção do turismo e proteção e conservação da biodiversidade.

Da sua concepção até março de 2010, o Plano trouxe uma receita líquida para a SANParks da ordem de R$ 100 milhões, provenientes não apenas das mais de 40 parcerias com o setor privado que foram estruturadas, mas também da locação de infraestrutura pública nos parques. Isto sem contar na valorização de ativos públicos localizados nesses espaços, como obras de infraestrutura que, por terem recebido investimentos privados, alcançaram um valor estimado que ultrapassa os R$ 70 milhões.

A SANParks participou ativamente da implantação das ações de comercialização, por exemplo, gerenciando um sistema de reservas para acomodações dentro dos parques. No ano de 2012, 23% das reservas foram feitas no sistema online da agência, gerando uma receita de R$ 20 milhões e impulsionando a mesma a dar os primeiros passos rumo à adoção dos “standards mínimos de turismo responsável”, o que, por sua vez, trouxe a demanda pela adoção de instrumentos de gestão tradicionais do mundo privado, como o famoso “balanced scorecard”, que foi implantado para orientar o processo de valorização dos mercados atrelados à conservação. A satisfação do usuário com a hospitalidade nos parques ultrapassou a média de 80%, em todo sistema.

O empreendedorismo da SANParks vai além de produtos e serviços turísticos e, atualmente, uma das prioridades estratégicas é ampliar os espaços para conferências e congressos dentro dessas áreas. Apenas em 2012, os congressos geraram receitas líquidas da ordem de R$ 2,5 milhões, e ampliar estes espaços faz parte das metas de expansão do Plano de Comercialização.

No Brasil, nada

“O caso africano contrasta fortemente com o cenário brasileiro, em plena véspera de Copa do Mundo.”

Todas estas iniciativas que dinamizam a economia nos parques, direta ou indiretamente, contribuem para a geração de receita em diversos setores da economia, como o financeiro, saúde, turismo, seguros, lazer, entre outros, transformando tais espaços em um verdadeiro ativo para o país e fonte de oportunidades para as pessoas. O caso africano contrasta fortemente com o cenário brasileiro, em plena véspera de Copa do Mundo. O plano inicial do governo era investir cerca de R$ 668 milhões na preparação de 23 unidades nacionais, estaduais e municipais para a maior demanda de turistas durante os jogos, garantindo qualidade mínima de visitação. Quatro anos depois, o governo federal admitiu um legado bem mais tímido, com valor que efetivamente deverá girar em torno de um quinto do previsto. As prometidas infraestruturas não foram construídas; os contratos de concessão com o setor privado não saíram da fase de concepção. E a oportunidade de geração de emprego e renda mais uma vez é perdida.

Diferentemente da África do Sul, nossos parques aparentemente se beneficiarão muito pouco da realização da Copa no Brasil. Nada mais apropriado do que termos um Tatu-bola como símbolo do evento esportivo. Trata-se de uma referência à nossa capacidade de se enrolar, se esconder, de ocultar nosso potencial. E a ironia é que provavelmente milhares de turistas irão aproveitar o momento para visitar uma das nossas maiores maravilhas, o Cristo Redentor – sem ter a mínima ideia de que estão entrando nos limites do Parque Nacional da Tijuca. Uma pena.

 

*Ana Luisa é Diretora Executiva do Instituto Semeia

 

 

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