Análises

Baratas igualitárias, cupins eussociais e filósofos marxistas

Sartre errou ao dizer que se o comunismo não funcionar a humanidade se provará parecida com formigas e cupins. É exatamente o contrário.

Fabio Olmos ·
22 de outubro de 2013 · 10 anos atrás

Operários de cupins do gênero Syntermes recolhem folhas e gravetos para consumi-los em seu ninho enquanto soldados fazem a segurança. Jean-Paul Sartre não tinha uma opinião muito positiva sobre eles, mas deveria.
Operários de cupins do gênero Syntermes recolhem folhas e gravetos para consumi-los em seu ninho enquanto soldados fazem a segurança. Jean-Paul Sartre não tinha uma opinião muito positiva sobre eles, mas deveria.

Baratas são bichos sociais que prezam a companhia de família e amigos e sofrem fisicamente quando isolados. Diversas gerações das baratas que detestamos ter em casa vivem em abrigos compartilhados por indivíduos que são socialmente dependentes uns dos outros e trocam informações sobre alimento, etc. Essas baratas têm interações sociais complexas e tomam decisões coletivas por consenso, mas são anarquistas sem estruturas hierárquicas ou divisão de trabalho.


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Muitas baratas mostram cuidado parental sofisticado que incluem desde “amamentar” os filhotes a carregá-los por aí sob as asas. Cuidado parental é o primeiro passo para a evolução de estruturas sociais complexas, que pode dar um salto quando inovações são introduzidas.

Em algum momento, talvez no Permiano (pelo menos 250 milhões de anos atrás), os intestinos de um grupo de baratas sociais foram colonizados por microrganismos capazes de digerir madeira morta, permitindo que as famílias de baratas passassem a viver, literalmente, dentro da comida. Essa é origem dos cupins.

Cupins são baratas que se tornaram insetos eusociais, ou seja, cada colônia funciona como se fosse um único organismo, cada indivíduo trabalhando para o bem comum de forma totalmente altruísta e ao mesmo tempo sendo apoiado pela coletividade de que faz parte. Características da eusocialidade incluem cuidado parental cooperativo, comunidades onde múltiplas gerações convivem e divisão reprodutiva de trabalho.

Animais eusociais, como cupins, formigas, abelhas, ratos-toupeira e os Borg são um dos tópicos de estudo mais interessantes da teoria evolutiva, fornecendo casos utilizados para investigar questões como altruísmo, seleção de grupo, cooperação, etc. Minha sugestão de leitura sobre esse assuntos incluem o clássico Sociobiology e The Social Conquest of Earth ambos do entomólogo Edward O. Wilson, fundador da sociobiologia, hoje chamada de psicologia evolutiva.

Bichos como os cupins também são a exemplos de estruturas sociais onde impera a norma do “a cada um conforme sua necessidade e de cada um conforme sua capacidade”. São as sociedades comunistas perfeitas.

Há 169 anos Karl Marx propôs que a humanidade desenvolverá uma nova organização coletiva. Segundo o filósofo marxista Alain Bodiou, a hipótese comunista prevê que “a nova ordem eliminará a desigualdade das riquezas e até mesmo a divisão do trabalho: cada indivíduo será um trabalhador polivalente, e as pessoas transitarão entre o trabalho manual e o trabalho intelectual, entre a cidade e o campo. A apropriação privada de riquezas monstruosas e sua transmissão familiar desaparecerão. A existência de um aparelho de Estado coercitivo, militar e policial, separado da sociedade civil, já não aparecerá como uma necessidade evidente. Após uma breve sequência de “ditadura do proletariado”, encarregada de destruir os restos do velho mundo haverá uma longa sequência de reorganização, com base na “livre associação” de produtores e criadores”.

A hipótese de Marx foi vendida como uma teoria científica que continua muito influente, embora se baseie numa leitura seletiva da História e tenha tanta base como cenário de futuro quanto o Apocalipse de João de Patmos (com o qual guarda óbvias semelhanças, embora dispense um Querido Líder celestial) ou o Ragnarok.

Erro na saída

É irônico que os instintos dos insetos eusociais tenham produzido algo muito mais próximo da visão de Marx do que nós mesmos. Isso não escapou a E. O. Wilson, que comentou que “Karl Marx estava certo. O socialismo funciona, o problema é que ele tinha a espécie errada”.

Isso não impediu muitos de tentar tornar a profecia em realidade, especialmente a parte sobre ditaduras. China, Vietnam, Laos, Cuba e Coréia do Norte são os remanescentes dos experimentos marxistas-leninistas, que também foram conduzidos em outros 20 países. Se eles funcionaram ou não em criar paraísos terrenos pode ser julgado pelo leitor.

Outro filósofo marxista, Jean-Paul Sartre disse que “se a hipótese comunista não estiver correta, se não for praticável, significa então que a humanidade não é muito diferente das formigas ou dos cupins”. É irônico que os instintos dos insetos eusociais tenham produzido algo muito mais próximo da visão de Marx do que nós mesmos. Isso não escapou a E. O. Wilson, que comentou que “Karl Marx estava certo. O socialismo funciona, o problema é que ele tinha a espécie errada”.

A importância da cooperação na evolução dos organismos e das próprias sociedades humanas foi discutida por Darwin em A Descendência do Homem, uma continuação antropológica do famoso A Origem das Espécies, que, infelizmente, teve menor repercussão do que seu predecessor.

Cooperação humana tem estilo próprio

Nossa espécie mostra um incomum grau de cooperação entre indivíduos, e isso tem uma base inata. É provável que tenhamos evoluído em famílias estendidas que dividiam os cuidados com as crianças, que já compartilham e cooperam antes de conseguir falar direito. Um crescente corpo de evidências reforça a visão de que somos uma espécie que evoluiu em um contexto onde a cooperação foi um componente tão ou mais importante que a competição e há trabalhos que sugerem a coevolução entre comportamentos e normas sociais altruístas. Mas há um abismo entre isto e supor que estamos no caminho da transição de baratas para cupins.

A evolução da cooperação e do altruísmo presentes em uma vasta gama de animais é o foco de programas de pesquisa que integram neurociência, modelagem matemática, experimentação e aportes de primatólogos, entomólogos, cetólogos, antropólogos e outros pesquisadores que estudam o quê, como e porquê do comportamento dos. Esse é um dos campos de pesquisa mais interessantes da atualidade, e toca em pontos como a evolução da empatia, da moralidade e da tomada de decisões econômicas, para aborrecimento explícito de muitos cientistas sociais (sic).

No entanto, apesar de termos a cooperação em nosso DNA também temos um feroz senso de “nós x eles” embutido no nosso sistema operacional. As perspectivas de sociedades com milhões de pessoas que interagem impessoalmente — onde organizações sociais ancestrais encontram cada vez menos espaço — evoluírem como Marx pensou não parecem das mais promissoras.

É claro que como muitos traços comportamentais tem uma base genética e são parte de nosso sistema operacional (o que há muito é explorado por políticos e marqueteiros) isso os torna suscetíveis à seleção artificial. Como o que fizemos ao transformar lobos indóceis em labradores subservientes.

Talvez seja por isso que, nas tentativas de produzir o Novo Homem socialista, as ditaduras do proletariado tenham imitado regimes religiosos de séculos anteriores e dado atenção especial a eliminar os “inimigos da revolução”, os novos infiéis, do pool gênico da população, causando os maiores holocaustos do século XX.

Os cupins, pelo menos, tem a desculpa de serem cegos e escravos de seus instintos.

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  • Fabio Olmos

    Biólogo, doutor em zoologia, observador de aves e viajante com gosto pela relação entre ecologia, história, economia e antropologia.

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Comentários 1

  1. Carlos diz:

    Excelente texto, instigante e bem humorado. Achei que eu era dos poucos que não resistia a uma "fricção" intelectual com cientistas sociais e sua dialética.