Análises

Estrada do colono: a reabertura de uma ferida

A abertura da estrada que voltou a ser floresta rasga uma luta de 30 anos em defesa da parte protegida do Parque Nacional do Iguaçu.

Teresa Urban ·
25 de fevereiro de 2013 · 11 anos atrás
Tomada pela mata: a estrada do colono vista pelo alto. Foto: Adilson Borges, tirada em setembro de 2011.
Tomada pela mata: a estrada do colono vista pelo alto. Foto: Adilson Borges, tirada em setembro de 2011.

A abertura de uma estrada no Parque Nacional do Iguaçu, proposta por deputados federais, me obrigou a mergulhar num mar de documentos em papel dos idos dos anos 80 e de centenas (ou milhares, nem contei) de arquivos digitais que fazem lembrar o tamanho do esforço feito ao longo de quase 30 anos para evitar a destruição da floresta protegida pelo parque. No meio de tudo, encontrei um texto de meu neto:

Senhor presidente
Meu nome é João, tenho 6 anos, minha vó se chama Teresa. Nós estamos enviando esta mensagem para o senhor presidente. A floresta do Parque Nacional do Iguaçu está sendo cortada pelos homens que querem a Estrada do Colono. Nós já tentamos impedir isto de acontecer e já mandamos muitas mensagens para o senhor impedir isso. E nada aconteceu.
Além de cortar a floresta, a estrada está causando a matança de animais. Neste ano, nove onças foram mortas pelos caçadores.
Você está recebendo essas mensagens?
Para melhorar este assunto nós precisamos de você.
Esperamos sua resposta.
Feliz dia das crianças.
João
Curitiba/Paraná

Estávamos em 1998 e Fernando Henrique Cardoso não respondeu a mensagem – provavelmente nem leu o texto, mas com certeza João se sentiu contemplado quando o a estrada foi fechada, alguns anos mais tarde.

Estamos em 2013, João tem 20 anos e, para compartilhar o achado, enviei um e-mail com a mensagem. Logo em seguida, recebi a seguinte resposta:

Caramba, eu lembro disso!
Que pena que resolveram remexer em ferida fechada!

Ele tem razão, a ferida está fechada: a natureza cuidou direitinho de recompor a floresta, a Justiça proibiu a reabertura, a ciência provou e a realidade comprova diariamente que a perda de biodiversidade acarreta pesado ônus às sociedades humanas. Essa constatação, porém, parece funcionar ao contrário para os legisladores brasileiros.

Pena, mesmo, João, porque o Parque Nacional do Iguaçu integralmente protegido é um dos poucos legados que minha geração conseguiu deixar para a sua. Para mim, é motivo de orgulho termos – nós dois e mais um milhão de brasileiros – conseguido evitar sua destruição. Protegemos uma floresta maravilhosa e, mais ainda, recuperamos a dignidade do país, pois o parque já estava na lista da UNESCO de Patrimônios da Humanidade em Perigo.

Devemos ter orgulho de abrigar um patrimônio natural de tal grandeza que passa a ser considerado como bem comum de toda a sociedade humana. Pensando bem, é quase um milagre que, em meio a tantas diferenças que separam classes sociais, raças, religiões, países e continentes, tenhamos algo em comum: monumentos naturais ou construídos que representam a história da Terra e do engenho humano.

Essa proposta, de políticos (com p bem minúsculo) compromete a reputação internacional do Brasil e contribui muito para que os meninos de vinte anos desacreditem na Política, nas instituições e na importância da participação de toda a sociedade nas decisões de interesse público.

Acontece, porém, que hoje tenho uma neta de 6 anos – a mesma idade que João tinha quando escreveu ao presidente. Uma noite dessas, enquanto víamos programas infantis na TV, entre monstros, versão moderna de Chaplin, o velho Popeye e tantos outros, havia entrevistas com crianças, respondendo a uma só pergunta: o que você faria para tornar o mundo um lugar melhor? Aproveitei a deixa e perguntei a Cecília o que ela faria. Mal tirou os olhos da TV e respondeu, sem hesitar: mandava prender todos, todinhos os que destroem floresta e matam bichos e, se fosse num reino, mandava cortar a cabeça dos destruidores. Simples assim.

Claro, a imagem é uma fantasia infantil. A lei não corta cabeças, mas poderia punir com mais rigidez quem destrói o patrimônio natural.

O biólogo Edward Wilson costuma filosofar sobre a possibilidade de já existir uma subdivisão na espécie humana, com uma parte constituída por biófilos, que se entendem como integrantes e não donos da natureza. Bem possível. Com certeza, no que depender de Cecília, serão mais intolerantes e severos com aqueles que querem lhes deixar, como herança, uma Terra devastada.

 

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