Análises

Vamos engolir sapos?

Ocorreu mais uma audiência sobre a polêmica construção de hidrelétricas na Chapada dos Veadeiros. A região tem grande número de anfíbios endêmicos.

Reuber Brandão ·
4 de março de 2010 · 14 anos atrás
Bokermannohyla pseudopseudis, possivelmente endemismo restrito da Chapada dos Veadeiros. As populações que ocorrem fora da Chapada são uma espécie nova, em processo de descrição. (foto: Reuber Brandão)
Bokermannohyla pseudopseudis, possivelmente endemismo restrito da Chapada dos Veadeiros. As populações que ocorrem fora da Chapada são uma espécie nova, em processo de descrição. (foto: Reuber Brandão)

Nesta quinta-feira (04), no auditório do CREA-GO em Goiânia, está sendo realizada mais uma consulta pública para discutir os projetos de hidroelétricas na bacia do rio Tocantinzinho, localizado ao sul do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros. Entre os aspectos a serem discutidos, figuram os impactos que tais empreendimentos causam à fauna. Tais impactos não são pequenos e podem ser extremamente danosos em uma região de elevado valor biológico como a Chapada dos Veadeiros. Eu venho realizando estudos com anfíbios da Chapada dos Veadeiros e da região da Serra da Mesa desde 1993 e gostaria de apresentar alguns comentários sobre os prováveis efeitos de tal empreendimento sobre este grupo da fauna.

Os anfíbios são considerados o grupo de vertebrados mais ameaçado em todo o planeta. Animais de pequeno porte, de pele delicada e ciclos de vida relativamente curtos, com girinos aquáticos e adultos terrestres, o desaparecimento destes animais é um alerta para a perda de qualidade dos ambientes naturais em todo mundo. As causas para seu desaparecimento são diversas. São vitimados por doenças emergentes, mudanças climáticas, competição e predação por espécies invasoras e, de forma mais contundente, pela fragmentação da paisagem natural e remoção dos seus hábitats. O que os anfíbios estão nos dizendo é que algo não vai bem com a saúde dos ambientes naturais do planeta e o Brasil não é exceção.

Embora a formação de reservatórios para hidroelétricas figurem como uma das mais profundas e irrevogáveis intervenções danosas na natureza, ainda são escassos os estudos que foquem como os anfíbios, excelentes bioindicadores da qualidade ambiental, respondem à perda e fragmentação de ambientes naturais associados a este tipo de empreendimento.

No entanto, temos algumas informações do que ocorre com anfíbios do Cerrado diante da inundação causada por hidroelétricas. Durante a formação do reservatório da hidroelétrica de Serra da Mesa, localizada no rio Tocantins, foram monitoradas populações de anuros nos vales, nos morros que se tornariam ilhas e nas futuras margens do imenso reservatório, com mais de 170 mil hectares de espelho de água. Este monitoramento utilizou contagens de indivíduos nos vales (cinco sítios) e nas partes altas (1 sítio) e armadilhas de queda em oito morros (futuras ilhas). Abrangendo um grande período de tempo e grande esforço amostral, este estudo avaliou dados de riqueza e abundância de diversas espécies desde seis meses antes do enchimento até um ano após o a completa formação do reservatório (de maio de 1996 a janeiro de 1998), com coletas mensais de dados. Entre abril a novembro de 2001, três anos após a completa formação do lago, foram avaliadas a riqueza e abundância de espécies nas ilhas previamente amostradas e no ponto localizado na margem do reservatório. O resultado deste estudo é bastante didático sobre o que deve ocorrer com as espécies de anfíbios da bacia do rio Tocantinzinho caso sejam aprovadas as barragens previstas na região.

Odontophrynus salvatori, endêmica do Cerrado associada a riachos (foto: Reuber Brandão)
Odontophrynus salvatori, endêmica do Cerrado associada a riachos (foto: Reuber Brandão)

Na área de estudo em Serra da Mesa foram registradas 31 espécies de anfíbios. Destas, todas eram encontradas nas porções que foram inundadas, 19 ocorriam no sítio localizado na margem do lago e sete estavam nos morros (futuras ilhas). Nenhuma das espécies localizadas nos vales colonizaram áreas localizadas acima da cota de enchimento. Apenas uma espécie estava presente nas ilhas e era uma espécie que não depende de corpos de água para reprodução. Oito espécies haviam desaparecido do sítio amostral localizado na margem do lago. Das 31 espécies registradas em 1996, apenas 12 foram registradas em 2001. Após cinco anos, 19 espécies foram localmente extintas das áreas amostradas em Serra da Mesa. Estes resultados indicam que nas áreas atingidas por hidroelétricas ocorre:

1.Acentuada extinção local das espécies dependentes de ambientes localizados nas áreas que serão inundadas. Anfíbios não se deslocam das áreas inundadas. Eles se afogam com seus hábitats.

2.Forte declínio das espécies hábitat-especialistas e das raras nos ambientes vizinhos do reservatório.

3.Desaparecimento de todas ou quase todas as espécies em fragmentos de vegetação nativa isoladas pelo reservatório ou pela mudança na dinâmica do uso do solo decorrente da sua instalação, como ocorreu em ilhas de Serra da Mesa.

4.Ausência de reprodução de anfíbios nos reservatórios, devido às profundas e claras diferenças que existem entre este tipo de corpo d’água e os locais de reprodução dos anfíbios nos ecossistemas naturais.

É importante ressaltar que Serra da Mesa está na mesma bacia hidrográfica (Tocantins) e a menos de 200 km em linha reta dos locais onde um novo estudo avaliou a possibilidade de implantação de 22 novas pequenas e médias hidroelétricas a serem instaladas no rio Tocantinzinho. Isso significa, que esta dinâmica irá se repetir nos reservatórios pleiteados.

Leptodactylus tapiti foi descrito em 1978 e novamente registrado apenas em 2006. Endemismo restrito da Chapada dos Veadeiros. foto: Rafael de Sá.
Leptodactylus tapiti foi descrito em 1978 e novamente registrado apenas em 2006. Endemismo restrito da Chapada dos Veadeiros. foto: Rafael de Sá.
Phyllomedusa oreades. foto Reuber Brandão
Phyllomedusa oreades. foto Reuber Brandão

Como as unidades de conservação da região da Chapada dos Veadeiros são menores que o ideal e dependem fortemente da qualidade dos remanescentes vizinhos para que não ocorram extinções significativas no seu interior, a fragmentação de hábitats remanescentes e o isolamento do Parque Nacional podem decretar seu decaimento ecológico em poucos anos. Este decaimento não será sentido apenas em anfíbios, mas em diversos grupos faunísticos que dependem da integridade da paisagem natural para manterem populações saudáveis.

Pode parecer que perder algumas populações animais em alguns lugares não representa muito para a conservação das espécies, visto que outras populações ocorrem em outros lugares, incluindo unidades de conservação. Este pensamento não considera que extinções globais nada mais são que o resultado do somatório de extinções locais. E extinções locais, aparentemente “indolores” para muitos gestores, estão se tornando cada vez mais abrangentes e cada vez mais freqüentes.

Um argumento, bastante cínico e comum entre os desenvolvimentistas a qualquer custo, é tentar comparar a importância de grandes empreendimentos com um sapinho, um bagre ou uma bromélia, buscando ridicularizar a importância de tais organismos. Antes de qualquer coisa, é importante lembrar que, assim como a espécie humana, todas as espécies estão constantemente buscando soluções para o desafio da sobrevivência. Sob este prisma, cada espécie representa soluções únicas e elaboradas. Muitas destas soluções são aproveitadas por nós, seja na produção de medicamentos, no controle biológico de pragas, seja na manutenção da nossa qualidade de vida. Nesse aspecto, anfíbios são extremamente diversificados em estratégias de vida. Animais pequenos, de pele permeável, de ovos frágeis e com ciclos de vida relativamente curtos, desenvolveram uma extraordinária gama de substâncias na pele que maravilham pesquisadores no desenvolvimento de novos antibióticos e outros medicamentos, alguns dos quais com potencial para doenças humanas, como AIDS, Chagas e males metabólicos. Tais informações não podem ser esquecidas. Este valor que não pode ser perdido.

Além disso, se uma espécie de anfíbio desaparece de um local, não representa apenas o lamento de pessoas românticas. Na verdade, sempre existe algo por trás de fenômenos como este e o desaparecimento de uma espécie é um alerta de que algo não vai bem com os ambientes naturais, com a água ou com as comunidades biológicas. Isso deve ser incorporado pelos gestores responsáveis.

Existem problemas com a metodologia amostral utilizada nos estudos dos empreendimentos no rio Tocantinzinho. O uso de amostragens com base na metodologia de Avaliação Ecológica Rápida (AER) não é adequado para estudos de impacto ambiental, pois o método é, em concepção, desenhado para tomada de decisões de manejo em áreas protegidas ou em amplas regiões ainda conservadas. De uma forma geral, este método amostra apenas espécies mais abundantes no momento das amostragens, não registrando espécies raras ou que demandam metodologias de amostragem específicas. Sem o registro de tais espécies, qualquer proposta de medidas mitigadoras é falha e incompleta.

Em minhas aulas costumo perguntar aos estudantes se eles sabem por quanto tempo uma usina hidroelétrica gera energia. A maioria deles não faz idéia, assim como também a maior parte da sociedade. Hidroelétricas são soluções efêmeras para a geração de energia. Muitas delas param de gerar energia em 50 anos. Depois disso, permanece um lago de grandes proporções, repleto de sedimentos em decomposição no fundo. Permanece também uma barragem que demanda custos de manutenção para evitar catástrofes. Soa-me irresponsável um país basear sua malha energética em hidroelétricas. Grandes muralhas contendo imensos lagos mortos. Monumentos gigantescos ao descaso com os rios, com a biodiversidade, com o futuro.

*Laboratório de Fauna e Unidades de Conservação, Departamento de Engenharia Florestal, Universidade de Brasília.

  • Reuber Brandão

    Professor de Manejo de Fauna e de Áreas Silvestres na Universidade de Brasília. Membro da Rede de Especialistas em Conservaçã...

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