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Bahia: Pistoleiros presos em flagrante com envolvimento em grilagem verde são soltos em 24 horas

Ministério Público acompanha o caso e alerta sobre aumento dos crimes violentos contra as comunidades tradicionais, em cujos territórios os fazendeiros averbam reservas legais irregularmente

Fernanda Couzemenco ·
14 de julho de 2023

Em menos de 24 horas, pistoleiros presos em flagrante “por crime de porte e posse ilegal de armas de fogo, munições e por associação criminosa”, conforme informou a Polícia Civil de Correntina, foram soltos por determinação da Justiça. O Ministério Público acompanha o caso e discorda das solturas, por entender que a impunidade pode acirrar a violência praticada contra as comunidades de fundo e fecho de pasto do município, localizado no extremo-oeste da Bahia.

Conforme processos ajuizados pela Procuradoria Geral do Estado (PGE), fazendeiros do agronegócio de algodão, milho e soja têm averbado suas reservas legais nos territórios tradicionais dessas comunidades, numa prática chamada de “grilagem verde”. A judicialização se deu a partir de ações discriminatórias abertas pela Coordenação de Desenvolvimento Agrário (CDA) do governo do estado, em abril de 2021, a pedido das próprias comunidades.

As prisões foram executadas pela Delegacia Territorial do município nesta terça-feira (11) contra sete homens, que estavam em alojamentos das Fazendas Santa Teresa e Bandeirantes, na zona rural de Correntina, em cumprimento de diligência (Mandado de Busca e Apreensão no processo n° 8000339 – 86.2023.8.05.0069).

As solturas de três deles foram confirmadas por moradores das comunidades tradicionais de Fecho e Fundo de Pasto. O processo dos outros quatro está em segredo de justiça, mas acredita-se que eles também tenham sido soltos.

Arsenal apreendido pela polícia civil da Bahia. Foto: Divulgação.

Segundo a PC/BA, os homens foram acusados de integrar um grupo responsável por ataques à sede da Associação Comunitária de Preservação Ambiental dos Pequenos Criadores do Fecho de Pasto de Cupim, Sumidor e Cabresto (ACPAC). Com eles, foram encontradas “13 armas longas, dois revólveres, uma pistola, uma réplica de pistola, munições de diversos calibres, armas brancas, coletes balísticos, rádios comunicadores e alguns assessórios”. As investigações, afirma a Polícia Civil, “continuam com o objetivo de identificar outros envolvidos nos crimes”.

A advogada Eliene Santos da Guarda, que defende a ACPAC, afirma que não é somente a Associação do Cupim, Sumidor e Cabresto que vêm sendo atacadas pelos pistoleiros. “Todas as comunidades são amedrontadas: Capão; Vereda da Felicidade; Porcos, Guará e Pombas. O arsenal de armas encontrado com eles é prova do que todas as comunidades vêm passando, sofrendo ameaças constantes. O grupo de pistolagem é um só”, afirma. 

“Gigantesco arsenal de armamento”

Em seu parecer sobre as prisões em flagrante, o promotor de Justiça Victor César Meira Matias afirma que os autuados se encontravam em situação que indicavam serem “meros funcionários e não os responsáveis” pelas armas apreendidas. E que “existem fortes indícios” da participação dos autuados “na associação criminosa que vem praticando diversos crimes violentos na região”, com “circulação de funcionários armados da referida fazenda com o intuito de intimidar a comunidade local ribeirinha”.

O promotor afirma tratar-se de “um verdadeiro arsenal de armas, apta a demonstração do alto grau de periculosidade da associação criminosa a qual se investiga, e no qual há fortes indicativos de participação dos autuados” e que “recaem sobre os autuados fortes indícios de que estariam envolvidos em tentativas de homicídios qualificados”, por meio de “disparos de armas de fogo, efetuados desordenadamente contra aproximadamente trinta vítimas”.

Acrescenta também que “são os inúmeros Boletins de Ocorrência lavrados na Delegacia de Polícia de Correntina, e que deram causa à medida cautelar n. 8000339-86.2023.8.05.0069”, sendo necessário que “a prisão preventiva deve ser decretada, em razão da garantia da ordem pública”.

Victor César Meira Matias ressalta que “a população da região, em um panorama geral, demonstra forte temor em relação aos autuados” e que “possíveis testemunhas mostram-se receosas de prestar depoimento, ou até mesmo se aproximarem dos agentes responsáveis pela investigação, por medo de represálias”.

O parecer cita ainda que “somente no último ano, foram registrados diversos episódios de crimes de dano ao patrimônio da ACPAC – como derrubada e destruição da sede – e ameaças aos integrantes da associação, bem como do atentado à vida dos posseiros ocorrida no dia 11/04/2023, amplamente noticiada nos meios de comunicação”.

Atentado ocorrido em Correntina, em abril deste ano. Três comunitários foram atingidos por bala de fogo. Os três sobreviveram. Foto: Divulgação.

Por isso, prossegue, “a simples circulação em liberdade dos autuados já é suficiente para a intimidação dos populares, incluindo vítimas de outros processos correlatos e testemunhas, dada a ampla divulgação de atos de terror praticada pelo grupo armado que trabalha na fazenda em questão”.

A associação criminosa que os sete homens integram, afirma o promotor, possui “recursos suficientes para aquisição de um gigantesco arsenal de armamento, de alto dispêndio econômico” e que “a contratação de funcionários de outros estados – no caso, os presos residem em Luziânia/GO e Ribeirão Preto/SP – serve justamente para facilitar o ‘descarte’ do grupo em caso da prática de qualquer conduta que atinja os interesses dos mandantes”.

Carta ao governador

Coincidentemente, exatamente nesse contexto de prisão e soltura dos pistoleiros, o governador Jerônimo (PT) tem uma intensa agenda na região, por conta da Festa da Agricultura Familiar de Correntina, com inauguração de vários equipamentos públicos importantes para as comunidades rurais e tradicionais.

Aproveitando a oportunidade, o Coletivo de Fundo e Fecho de Pasto do município vai entregar uma “Nota sobre os conflitos agrários em Correntina e região” ao governador. O documento ressalta a importância das comunidades, que há mais de 300 anos protegem o Cerrado com seus modos de vida tradicionais, mantendo a integridade do Aquífero Urucuia, “importante reservatório hídrico subterrâneo, que contribui com até 90% da vazão de base do rio São Francisco no período de secas”.

Correntina, afirma a nota, é epicentro dos conflitos agrários que se intensificaram no oeste da Bahia principalmente a partir de setembro de 2021. Dos 38 territórios de Fundo e Fecho de Pasto na bacia do rio Corrente, 14 sofrem mais intensamente a violência do agronegócio, destaca o Coletivo. Desses, 12 estão em Correntina.

Na região, existem oito Ações Discriminatórias concluídas e em andamento, seis delas em Correntina e cinco já em processo de judicialização, sendo necessário, portanto, “um intenso processo de diálogo com a SDA-Superintendência de Desenvolvimento Agrário, com a SEPROMI-Secretaria da Promoção da Igualdade Racial e com a PGE-Procuradoria Geral do Estado, para as devidas informações a respeito destes processos”.

O Coletivo faz ainda quatro pedidos de providências ao governador Jerônimo. A primeira é urgente ação de segurança pública, com a prisão dos pistoleiros que ameaçam as comunidades. A segunda é a resolução dos conflitos agrários, por meio de atenção às Ações Discriminatórias concluídas e em andamento, bem como da abertura de novas ações que se mostrarem necessárias para garantir o direito das comunidades aos seus territórios.

Pede-se também a revisão dos processos de Licenciamento Ambiental, desmatamentos e outorgas hídricas na região dos conflitos socioambientais do Oeste da Bahia, de forma a sanar as inúmeras irregularidades para as quais o Inema/Sema fecham os olhos apesar de muito bem documentos no estudo “Desmatamentos irregulares no Cerrado baiano: uma política de Estado”, lançado em agosto pelo Instituto Mãos da Terra (Imaterra), em parceria com a Universidade Federal da Bahia (UFBA), como parte do Projeto “Gestão Integrada de Paisagem Sustentável no Bioma Cerrado – Desvendando a Supressão de Vegetação Nativa nas Bacias dos Rios Grande e Corrente”.

E, finalmente, o Coletivo pede a realização de uma audiência no dia quatro de agosto, em Salvador, “para o estabelecimento de um canal de diálogo entre autoridades e as comunidades vítimas destes conflitos socioambientais”, com a presença do governador, das Secretarias de Estado de Segurança Pública (SSP/BA), de Desenvolvimento Rural (SDR), de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Sema) e de Promoção da Igualdade Racial (Sepromi), além do Instituto de Meio Ambiente (Inema), da Superintendência de Desenvolvimento Agrário (DAS), da PGE, e da Frente Parlamentar Mista Socioambientalista e em Defesa das Comunidades Tradicionais.

Área desmata à esquerda já é área do conflito entre a comunidade e os grileiros. Foto: Divulgação.

Agronegócio em festa

O governador também anunciou presença no evento que a Associação Baiana dos Produtores de Algodão (Abapa) chama de “o maior encontro da cotonicultura de todo o Nordeste e Matopiba”. O “Dia do Algodão Abapa 2023” debaterá temas “relacionados ao mercado, sustentabilidade, qualidade, rastreabilidade, agricultura do futuro, e muito mais”, informa a divulgação do evento.

Soltos 

O juiz que determinou a liberdade dos pistoleiros, Matheus Agenor Alves Santos, foi também quem decidiu pela prisão dos mesmos e quem expediu sentença, em maio, determinando o bloqueio de 19 matrículas de imóveis localizados em Correntina no âmbito da ação judicial aberta pela PGE para a regularização do território das comunidades tradicionais que sofrem com a grilagem verde dos grandes fazendeiros. Juntas, as 19 fazendas perfazem um total de 11,2 mil hectares.

O município integra a porção baiana do chamado Matopiba, região formada por áreas predominantemente de Cerrado localizadas também no Maranhão, Tocantins e Piauí. A denominação é um acrônimo formado pelas iniciais dos quatro estados. Os biomas Amazônico e da Caatinga também cobrem parte do Matopiba, mas cerca de 90% é de Cerrado.

Há outras duas ações discriminatórias abertas pelo governo da Bahia, todas, a partir de denúncias feitas pelas comunidades, com farta documentação e evidências levantadas também por entidades parceiras, como a Associação dos Advogados dos Trabalhadores Rurais (AATR). Uma delas também já foi judicializada pela PGE – referente a uma área de 28,11 mil hectares na comunidade de Fecho de Pasto Vereda da Felicidade (processo nº 8000165-77.2023.8.05.0069) – e outra ainda está na fase administrativa, na CDA.

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