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Sarney acusa golpe ruralista em licenciamento

Projeto apresentado pela Frente Parlamentar da Agropecuária na quarta-feira permite até pavimentação de estrada na Amazônia sem licença; ministro fala em “quebra de confiança”

Claudio Angelo ·
10 de abril de 2017 · 7 anos atrás
O ministro do Meio Ambiente, Sarney Filho. Foto: Luís Macedo/Câmara dos Deputados.
O ministro do Meio Ambiente, Sarney Filho. Foto: Luís Macedo/Câmara dos Deputados.

O caldo entornou no processo já bem complicado de construção de uma proposta de lei geral do licenciamento ambiental. Na última quinta-feira (6), um texto apresentado pela bancada ruralista fez o ministro Sarney Filho (Meio Ambiente) interromper uma reunião de discussão do projeto, acusando os parlamentares de “quebra de confiança”. O debate, que já estava adiantado entre a área ambiental do governo e a Câmara dos Deputados, voltou à estaca zero.

O texto que causou cizânia circulou ainda pela manhã, distribuído por e-mail para os participantes da reunião pelo coordenador técnico da FPA (Frente Parlamentar da Agropecuária), Gustavo Carneiro. Ele traz uma série de retrocessos em relação à versão que vinha sendo negociada entre Sarney e representantes da FPA e da indústria.

É uma espécie de lista de desejos de fazendeiros, empreiteiros e outros atores do setor produtivo: caso seja aprovado, até mesmo pavimentação de estradas na Amazônia poderá ser feita sem necessidade de licença ambiental.

À tarde, após ler o documento, Sarney abriu a reunião com representantes da FPA, da CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil), CNI (Confederação Nacional da Indústria) e Ibama no ministério furioso.

Afirmou que havia sido quebrado o acordo construído entre essas entidades e o governo, segundo o qual uma única proposta de lei de licenciamento seria redigida pelo Ministério do Meio Ambiente, contemplando pontos de interesse do agronegócio, da indústria e dos ambientalistas. Encerrou a conversa em cerca de 15 minutos.

Além de irritar o ministro, a proposta causou estranhamento até mesmo entre membros da bancada ruralista, que trabalhavam nos ajustes finais da proposta juntamente com Sarney e a presidente do Ibama, Suely Araújo.

O deputado Mauro Pereira (PMDB-RS), relator do projeto conhecido como “licenciamento flex”, disse não saber de onde veio a nova proposta.

“Estamos há dois meses fazendo uma reunião por semana e acertando ponto a ponto do relatório. Não tem outra proposta [além da que está sendo negociada com Sarney]. ” No dia da reunião, Pereira estava em São Paulo com o ministro da Casa Civil, Eliseu Padilha (PMDB-RS). “Se eu estivesse lá não teria acontecido nada disso”, afirmou. No entanto, o deputado atribuiu a irritação do ministro do Meio Ambiente ao “estresse da semana”.

O projeto relatado por Mauro Pereira na Câmara, ao qual o Ministério do Meio Ambiente busca fazer frente, deixa na mão de Estados e municípios a definição do rigor do licenciamento. Para a área ambiental, isso é inaceitável, porque causaria uma espécie de guerra fiscal entre os Estados – na qual cada um tentaria afrouxar mais do que o outro as exigências ambientais a fim de atrair empreendimentos.

No lugar disso, Sarney propôs uma lei baseada num projeto do deputado Ricardo Trípoli (SP), atual líder do PSDB. A lógica deste projeto é simplificar as licenças para empreendimentos pequenos e em regiões do Brasil onde há pouco o que proteger – um posto de gasolina na cidade de São Paulo, por exemplo, não pode ter regras de licenciamento tão rigorosas quanto uma hidrelétrica na Amazônia.

A proposta apresentada pela bancada ruralista na semana passada – que tem também digitais da CNI – não apenas deleta essa lógica “locacional” como traz de volta o pior do texto de Mauro Pereira no que diz respeito ao poder dos Estados e municípios para definir critérios de rigor. Só que ela vai muito além.

“O texto apresentado pela Frente Parlamentar da Agropecuária tem sérias inconsistências técnicas e jurídicas”, disse Suely Araújo.

O texto traz uma extensa lista de atividades que passariam a ser isentas de licenciamento. Além de toda a atividade agropecuária, também estariam dispensadas obras de captação de água, dragagem de hidrovias e “obras rodoviárias e ferroviárias de manutenção, contemplando conservação, recuperação, restauração e melhoramentos, pavimentação e adequação da capacidade”.

Essa redação permitiria, por exemplo, que a polêmica rodovia BR-319 (Manaus-Porto Velho), que corta uma das áreas mais preservadas da Amazônia e tem o potencial de fazer o desmatamento explodir, pudesse simplesmente ser asfaltada, sem licenciamento.

O projeto também considera toda a pesquisa mineral – até mesmo operações de sísmica de petróleo e construção de estradas para prospecção – como atividade isenta de licenciamento, e libera sua realização dentro de florestas nacionais e reservas extrativistas sem necessidade de consulta ao ICMBio (Instituto Chico Mendes).

Falando em Chico Mendes, o texto retira dos órgãos responsáveis pelas unidades de conservação a prerrogativa de arbitrar sobre o licenciamento de forma vinculante. Hoje, qualquer obra próxima a uma UC pode ser vetada pelo ICMBio. A proposta ruralista derruba esse poder.

Outro detalhe mortal: pendengas com obras paradas, como é o caso da hidrelétrica de Belo Monte, objeto de uma série de contestações do Ministério Público, não seriam mais resolvidas na Justiça e sim por uma “câmara de arbitragem”. Trata-se de um instrumento criado no direito comercial para resolver questões entre entes privados, mas que não se aplica a direitos coletivos – como é o caso do meio ambiente.

“Do jeito que está, a proposta não garante nem a proteção ambiental, nem a agilidade do licenciamento, porque certamente será objeto de contestações judiciais”, afirmou a presidente do Ibama.

“A insegurança jurídica vai continuar e o nó do Brasil vai prosseguir”, declarou Ricardo Trípoli ao OC. “Quem está atrapalhando o desenvolvimento do Brasil são eles [ruralistas], não nós”.

Procurada pelo OC, a FPA disse que não comentaria o episódio.

 

Republicado do Observatório do Clima através de parceria de conteúdo. logo-observatorio-clima

 

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Comentários 6

  1. Luiza diz:

    E enquanto não se asfaltam estradas escoadouras da produção, os caminhoneiros pernoitam com suas cargas perecíveis mais de uma semana no meio do mato, presos nos atoleiros desse Brasil…..


  2. paulo diz:

    Inimigos da pátria e da constituição brasileira. O raça ruim.


  3. paulo diz:

    Era de se esperar esta proposta. Estes biopiratas do CNA querem aniquilar, devorar tudo.


  4. Demorou diz:

    Depois do Código Florestal, tava na cara que o SNUC seria o próximo alvo, e o art. 36 é obviamente o mais xarope, que mais dá problemas!


  5. Tchau COIMP diz:

    "Falando em Chico Mendes, o texto retira dos órgãos responsáveis pelas unidades de conservação a prerrogativa de arbitrar sobre o licenciamento de forma vinculante. Hoje, qualquer obra próxima a uma UC pode ser vetada pelo ICMBio. A proposta ruralista derruba esse poder."