Reportagens

No rastro do desastre da Samarco, da lama ao caos

As imagens apocalípticas da descida da lama da barragem do Fundão e a perplexidade dos moradores das cidades que margeiam o Rio Doce.

Victor Moriyama ·
24 de novembro de 2015 · 8 anos atrás
Vista do Distrito de Bento Rodrigues, Mariana, MG, que ficou interditado para os trabalhos de busca da defesa civil após ameaça de rompimento da barragem Germano.
Vista do Distrito de Bento Rodrigues, Mariana, MG, que ficou interditado para os trabalhos de busca da defesa civil após ameaça de rompimento da barragem Germano. Fotos: Victor Moriyama/Greenpeace

Cheguei a região do rompimento da barragem do Fundão, junto com uma equipe do Greenpeace, para fazer a cobertura fotográfica. Chegamos a Bento Rodrigues, epicentro do desastre no dia 13 de novembro, 8 dias depois que ele ocorreu. Em 05 de novembro, o rompimento da barragem provocou a enxurrada de lama que matou um número ainda desconhecido de moradores. Os milhões de metros cúbicos de lama com rejeitos minerais devastaram o Rio Doce e seguiam pelo seu leito em direção ao oceano. Nosso plano era documentar o estrago ao longo deste percurso.

Bento Rodrigues estava com acesso bloqueado devido ao risco do rompimento de mais uma represa, a de Germano, ameaçada por uma rachadura de 3 metros.  No início, pensou-se que outra barragem próxima, Santarém, também se rompera. O que ocorreu foi a sua inundação quando Fundão cedeu.

Reinava a falta de informação. Os repórteres dos diferentes veículos de imprensa obtinham números díspares sobre o número de mortos e os locais atingidos, assim como ninguém conhecia o potencial de contaminação dos rejeitos liberados no ambiente.

Com o acesso bloqueado, tentamos nos aproximar da área mais afetada usando uma estrada secundária. Mesmo de longe era possível ver a magnitude da tragédia que transformou a pacata comunidade rural em um cenário apocalíptico. Carros empilhados em cima das casas, árvores cortadas pela metade e ruínas da antiga igreja. Um pequeno grupo de cachorros uivava por socorro. O cheiro da lama era forte e urubus rodeavam pontos específicos. A lama já seca pelo sol forte dava uma falsa sensação de segurança para caminhar pela margem de um pequeno rio que faz fronteira com Bento Rodrigues. Mas a aproximação era inviável, pois logo abaixo da camada seca, afundava-se até o joelho em uma camada movediça.

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Moradores observam a destruição provocada pelo rompimento da barragem do Fundão no dia 5 de novembro. As linhas de transmissão permaneceram intactas em alguns pontos próximos ao distrito de Bento Rodrigues. Detalhe do rio de lama que se formou na região de Bento Rodrigues com pequenas manchas oleosas, onde podem estar presentes metais como chumbo e manganês.
Gado resgatado das propriedades rurais atingidas pela tragédia. Cachorro perdido gane em meio a lama. O trabalho de remoção dos animais e busca por desaparecidos estava interrompido no dia 14 de Novembro. Moradores ribeirinhos tentam atravessar trecho do rio Doce em um barco na cidade de Governador Valadares, MG.

 

Deixamos Bento Rodrigues seguindo o caminho da lama. O acesso a maioria das comunidades rurais próximas à Bento Rodrigues e Mariana era impraticável porque pontes e estradas haviam sido engolidas. As marcas da lama nas árvores eram o termômetro visual da tragédia.

“Apesar do rompimento da represa da Samarco ter causado o desastre, seus funcionários eram arrogantes. Vimos gente da Samarco ditando aos moradores locais como falar com a imprensa.”

Passamos por Paracatu e Paracatuzinho, onde a enxurrada de rejeitos invadiu casas e pessoas desapareceram. Lá, funcionários da Samarco entregavam aos moradores cestas básicas e rodos para facilitar a limpeza.

Apesar do rompimento da represa da Samarco ter causado o desastre, seus funcionários eram arrogantes. Vimos gente da Samarco ditando aos moradores locais como falar com a imprensa. Um deles interrompeu minha conversa com Francisco Santos, um morador rural de seus 60 anos, que foi chamado para conversar em um canto. À distância, ouvi a instrução do rapaz com uniforme da Samarco: “muitas pessoas virão falar com vocês com câmeras querendo ouvir as coisas ruins, mas vocês devem falar das coisas boas que estão acontecendo aqui”. Constrangido,  Francisco, partiu carregando a cesta básica que acabara de ganhar. Ao lado, um caminhão-pipa da Samarco abastecia uma caixa d’água.

Adiante, a cidade de Governador Valadares havia perdido sua fonte de abastecimento de água: o Rio Doce. Tomado pela lama tóxica, não era mais possível tratar sua água. As residências e o comércio sofriam as consequências e as pessoas estavam com os nervos à flor da pele. O exército foi chamado para ordenar e auxiliar na distribuição de água mineral em bairros mais críticos, como Vila Mariana e Penha. Moradores formavam filas de um quilômetro ao longo dos muros das escolas municipais e aguardavam até duas horas para retirar a quota individual de 4 garrafas de água mineral.

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Barragem de Santarém que foi inundada após rompimento da barragem do Fundão. Casa engolida pela lama no distrito de Paracatu de Baixo, próximo a cidade de Mariana, MG. A lama invadiu e encobriu todos os cômodos da casa de Geraldo Nascimento, onde ele vive há 40 anos. Na parede, restou apenas um quadro.
A marca da lama a cerca de 5 metros de altura no poste de luz mostra a força com que a área rural de Paracatu foi atingida. Cercas de arame ficaram de pé e contiveram móveis arrastados. Uma cruz solitária, próximo a ponte que foi destruída pela lama no distrito de Paracatu.

 

A pesca à beira do rio era o lazer costumeiro de Governador Valadares. Ao longo da margem e em pontos de leito seco, moradores, desconsolados, observavam os incontáveis peixes mortos. A pequena embarcação que liga as duas margens do rio funcionava tristemente naquela manhã de segunda feira. O assunto era o futuro, e os barqueiros miravam o horizonte marrom enquanto murmuravam perguntas sem respostas. “Aqui dava de tudo: traíra, lambari e até aquele peixe lá da Amazônia”, me contou um velho pescador.

Continuamos. Na cidade de Resplendor, os Índios Krenak protestavam. Não só o Rio Doce passa por suas terras como também a ferrovia que transporta minérios produzidos pela companhia Vale, dona de 50% da Samarco. Os Krenak interditaram a ferrovia ocupando os trilhos. O transporte só voltou a ser liberado após longa negociação com a Vale, que se comprometeu a atender uma lista de exigências dos indígenas. Shirley Krenak, uma de suas lideranças, me contou que se preocupava com a falta de análises imparciais dos impactos da lama de rejeitos minerais no solo e na água do Rio Doce.

A previsão inicial era que a lama chegasse na cidade de Linhares e atingisse o mar no dia 16 ou 17 de novembro. Mas naquele início de semana, o caldo escuro e grosso que tomou o Rio Doce descia lentamente e não havia passado da cidade de Aimorés, próxima da divisa entre os estados de Minas Gerais e Espírito Santo. Não tínhamos previsão para ficar tanto tempo e  tivemos que voltar. A nossa expedição terminou, mas não a memória da devastação humana e ambiental que testemunhamos.

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Marcas no tronco das árvores, ao longo do Rio Doce, mostram a altura que a lama atingiu. Exército foi chamado para organizar e auxiliar na distribuição de água para a população de Governador Valadares. A cidade era abastecida com água do Rio Doce. Índios da etnia Krenak protestaram durante quatro dias seguidos interditando a linha do trem da companhia Vale, que corta suas terras. Lá, também passa o Rio Doce na altura da cidade de Resplendor.
Após negociação de dois dias, a Vale decidiu atender as exigências dos índios Krenak, que liberaram o trânsito dos trens. Ao passar de bicicleta, morador observa o estrago no Rio Doce, na cidade de Governador Valadares.

 

 

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  • Victor Moriyama

    Victor Moriyama é um fotojornalista brasileiro baseado em São Paulo.

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Comentários 1

  1. Maria Lucia Gouveia diz:

    Colocar na categoria de desastre natural para não ser responsabilizado por NADA é uma afronta ao povo desse local. O governo lava as mãos e os pés também…