Reportagens

Justiça trava extinção de órgão gaúcho responsável pela lista de espécies ameaçadas

Juiz proíbe demissões e realocações de servidores da Fundação Zoobotânica sob pena de dano irreparável ao patrimônio ambiental gaúcho

Fernanda Wenzel ·
11 de abril de 2018 · 6 anos atrás
Servidores protestam contra extinção da Fundação Zoobotânica. Foto: Patrimônio Ameaçado/Facebook.

A uma semana da data prevista para concluir a extinção da Fundação Zoobotânica, o governo do Rio Grande do Sul tomava as últimas medidas de realocação de bens e de pessoal. Mas um despacho do juiz Eugênio Couto Terra, da 10ª Vara da Fazenda Pública de Porto Alegre, criou um entrave de última hora aos planos do governador José Ivo Sartori. Nele, o magistrado proíbe “qualquer remoção, transferência de local de exercício de atividades ou de atribuição técnica de servidor ou trabalhador, pesquisador e especialista vinculado ao JBPA [Jardim Botânico de Porto Alegre] e MCN [Museu de Ciências Naturais]”, até que seja aprovado um plano de ações que garanta que o processo de extinção da Fundação não vai acarretar danos ao patrimônio do Estado nem às pesquisas em desenvolvimento. O juiz considera nulos todos os atos administrativos em sentido contrário já realizados, e proíbe a transferência de qualquer patrimônio material ou imaterial do Jardim e do Museu.

“Em dezembro de 2016, a Assembleia Legislativa aprovou um projeto de governador José Ivo Sartori (PMDB-RS) para extinguir a FZB e outras oito fundações”.

A Fundação Zoobotânica foi criada em 1972 para abrigar três instituições: o Museu Riograndense de Ciências Naturais (1955), o Jardim Botânico (1958) e o Parque Zoológico (1962). Ao longo de 46 anos de história, a entidade se consolidou como o principal órgão de pesquisa e assessoramento técnico na área ambiental do Rio Grande do Sul, responsável por serviços como levantamento de espécies em extinção, mapeamento de ecossistemas, recuperação de flora em áreas degradadas e preservação do patrimônio fóssil.

Em dezembro de 2016, a Assembleia Legislativa aprovou um projeto de governador José Ivo Sartori (PMDB-RS) para extinguir a FZB e outras oito fundações. Dos 199 servidores iniciais, 40 já foram desligados: 4 demitidos (entre eles 3 cargos de confiança) e 36 através do Programa de Demissão Voluntária. Os servidores restantes, que estão protegidos por uma liminar da Justiça do Trabalho, foram realocados para exercer exercícios temporários em outros órgãos. A maioria foi transferida para os quadros da Secretaria do Meio Ambiente, onde vai aguardar até que Supremo Tribunal Federal decida se o governo pode ou não demiti-los.

Para esta quarta-feira (11/04), estava prevista a transferência do patrimônio físico da FZB para as mãos do Executivo: terrenos, prédios, automóveis, cadeiras, mesas, computadores, etc.

MP não descarta denúncia por crime ambiental

Resistência. Foto: Cleber Dioni Tentardini/Patrimônio Ameaçado/Facebook.

Quando chegou no gabinete vindo de uma reunião, na tarde desta terça-feira (10/04), o presidente da FZB encontrou o despacho sobre a mesa.  Ao ser questionado sobre a “desmobilização” das atividades do órgão que preside, Luiz Fernando Branco negou que houvesse qualquer prejuízo às atividades da Fundação: “Não tem prejuízo nenhum. Muito pelo contrário. Nessa transferência nós estamos inclusive fazendo coisas que nunca tinham sido feitas. Por exemplo, estamos fazendo a informatização da biblioteca, toda a parte de digitação das coleções. Se tu for lá no Jardim Botânico estamos em obra, construindo uma casa de vegetação nova para o novo orquidário”.

Não é este o entendimento do juiz, para quem a transferência e demissão de servidores indica que o governo do Estado “está desmobilizando as atividades do MCN e JBPA, sem apresentar qualquer justificativa para assim agir”. Também é este o entendimento do Ministério Público, responsável pela ação que deu origem ao despacho do juiz Eugênio Couto Terra. Para a Promotora de Justiça de Defesa do Meio Ambiente de Porto Alegre, Ana Maria Marchesan: “os atos administrativos vão desidratando as funções desempenhadas pelo Museu e pelo Jardim. Com demissão e a transferência [de servidores] para outros setores da Sema, como licenciamento ambiental, abrem-se lacunas irrecuperáveis no quadro funcional do Jardim Botânico e do Museu de Ciências, e essas lacunas fatalmente vão deteriorando o patrimônio desses dois equipamentos culturais”. Caso continue este processo de desmonte, a Promotora não descarta uma denúncia por crime ambiental contra o governo do estado, ressaltando que para isso seria necessário o recolhimento de provas muito contundentes.

Um dos pesquisadores que foram removidos de suas funções originais na FZB é Glayson Bencke, ornitólogo mais respeitado do estado e o único especialista em aves no quadro do funcionalismo gaúcho. Encontro o pesquisador em uma tarde quente de domingo. Ele acompanha um grupo de pouco mais de cem pessoas que se mobilizou para ir até o Jardim Botânico de Porto Alegre para protestar contra o fim da Fundação, bem no dia da Final do Campeonato Gaúcho.

A instituição é a única do estado que fornece veneno de serpentes para produção de soro antiofídico no Sul do país. Foto: Associação dos Funcionários da FZB.

Durante quinze anos, Glayson foi o curador da coleção de aves do Museu de Ciências Naturais, atualmente composto por 3115 exemplares taxidermizados (são as chamadas múmias científicas). Duas semanas antes de ser destituído do cargo, a coleção foi escolhida a 6ª melhor do país em um ranking feito por ornitólogos da Sociedade Brasileira de Ornitologia. Entre os ítens avaliados, está justamente a presença de um curador especializado. Agora, quem cuida da coleção de aves é uma bióloga especializada em mamíferos. Segundo o próprio Glayson, a profissional é de “competência inquestionável˜, mas dentro da própria área de pesquisa.

Glayson está preocupado não apenas com a conservação da coleção atual, que precisa de cuidados constantes, mas também com o futuro da coleção e a busca por novos exemplares: “A coleção sempre é viva e dinâmica, é um testemunho da nossa biodiversidade. Assim como nós sabemos que uma espécie ‘x’ existiu no Rio Grande do Sul no passado, há cinquenta ou cem anos, porque tem um exemplar na coleção preservado, assim nós também vamos saber, daqui a dez anos, que uma espécie que invadiu o estado por causa das mudanças climáticas apareceu pela primeira vez na região em 2017 ou 2018, porque têm exemplares coletados e depositados na coleção”. Só no ano passado, a coleção gaúcha recebeu mais de 1,5 milhão de consultas pelo Species Link, um sistema online que integra diversas coleções científicas do país.

Junto com outros cinco colegas, Glayson foi orientado a se apresentar no último dia 26 de março na Fepam, órgão responsável pelo licenciamento ambiental. Chegando lá, afirma que não havia ninguém do setor administrativo para recebê-los e explicar qual seria sua nova função. A mesma situação se repetiu outras duas vezes, até que em reunião com o própria Secretaria do Meio Ambiente, Ana Pellini, ficou decidido que eles deveriam voltar a trabalhar no espaço físico da FZB. Mesmo assim, Glayson não foi reconduzido à curadoria.

A entidade é o principal órgão de pesquisa e assessoramento técnico na área ambiental do Rio Grande do Sul. Foto: Associação dos Funcionários da FZB.

O mesmo aconteceu com o biólogo Jan Karel Felix Mahler Júnior, que atua na seção de Conservação e Manejo do Museu de Ciências Naturais. Ele trabalhava há três anos no Plano de Manejo da APA do Banhado Grande, uma área de 136.935 mil hectares que abrange cinco cidades da região metropolitana de Porto Alegre. O trabalho já está atrasado em função de problemas burocráticos. Com a extinção da Fundação, Jan não sabe quem vai continuar o Plano de Manejo, estudo que determina o que pode e o que não pode ser feito na Unidade de Conservação. A demora pode ter impacto inclusive na água consumida pelos moradores de Porto Alegre e da região metropolitana: “É uma região com uma população muito grande, empreendimentos grandes já estabelecidos, atividades de mineração, lavouras, então tem uma demanda por irrigação. Sem esse regramento têm várias atividades que podem comprometer a qualidade da água, principalmente as nascentes do Rio Gravataí que estão dentro dessa Unidade de Conservação. Então sem planejamento uma série de impactos podem ser originados”.

Para o presidente da Agapan, a mais antiga entidade de defesa ambiental do Brasil, (fundada em 1971), o maior mérito da FZB é justamente a capacidade de aliar a pesquisa de base com ações práticas. Ele lembra que os pesquisadores da Fundação são frequentemente procurados por técnicos dos demais órgãos quando surgem dúvidas ou problemas relacionados a questões ambientais. O raciocínio é corroborado pelo depoimento de Luís Fernando Carvalho Perello, analista ambiental da Fepam. Ele afirma que os pedidos de licenciamento ambiental são negados ou concedidos com base exclusivamente nas pesquisas produzidas pela FZB, e questiona de onde partirão estas informações a partir da extinção: “Essa é uma indagação que a gente faz dentro da Fepam hoje. Isso o governo do Estado ainda não conseguiu responder”.

Foto: Associação dos Funcionários da FZB.

O presidente da FZB, Luiz Fernando Branco, afirma que os cinco servidores citados na matéria foram “convidados” a se apresentar na Fepam. Sobre as curadorias, explica: “eu conversei com todos eles e pedi: vocês saindo quem poderia ficar de curador? Todos os outros indicaram um substituto na curadoria. O único que não indicou foi o Glayson”. Ao ser informado de que Glayson é o único ornitólogo nos quadros do Estado, respondeu: “tudo bem, não vou entrar nesta discussão” e disse que vai sugerir que a nova administração reconduza o pesquisador à função original.

A justificativa da economia

A FZB, assim como as outras oito fundações gaúchas, tiveram a extinção aprovada sob o argumento da necessidade de enxugar a máquina pública e cortar gastos. Segundo a Secretaria de Planejamento, Governança e Gestão, a FZB custa R$ 19,8 milhões por ano ao governo do Estado, o que corresponde a 0,28% do déficit previsto no orçamento deste ano, de R$ 6,9 bilhões.

Por outro lado, a FZB realiza uma série de estudos técnicos que do contrário teriam de ser feitos a um custo mais alto pela iniciativa privada. Por exemplo: o Estado pagou R$ 176 mil reais à Fundação por um Plano de Manejo para uma área de 14 mil hectares do Parque Estadual do Delta do Jacuí. Segundo levantamento da Associação de Funcionários da FZB, uma empresa privada cobraria R$ 948 mil por 8 mil hectares. Ou seja, um preço cinco vezes maior para uma área de quase metade do tamanho.

Para Francisco Milanez, o problema não está só no custo, mas também nos interesses econômicos que envolvem este tipo de estudo. Por exemplo, um Plano de Manejo ou um Estudo de Impacto Ambiental podem determinar se uma indústria pode ou não se estabelecer em uma determinada região, ou se um empreendimento imobiliário pode ou não ser construído. “É o abandono da população nas mãos dos interesses econômicos”, afirma o presidente da Agapan.

Foto: Associação dos Funcionários da FZB.

Na campanha de 2014, quando ainda eram autorizadas doações de empresas privadas, o então candidato ao governo do estado, José Ivo Sartori, recebeu doações de pelo menos três empresas que prestam serviços atualmente realizados pela FZB, como assessoria técnica para o licenciamento ambiental, estudos de impacto ambiental e relatórios para atendimento das condicionantes ambientais. São elas: Beck de Souza Engenharia:R$ 2 mil; STE Serviços Técnicos de Engenharia: R$ 10 mil; Cetrel Tecnologia e Engenharia: com duas doações que totalizaram R$ 35 mil. Entre os doadores de campanha de Sartori, estão ainda empresas ligadas aos setores do agronegócio e de celulose. Juntas, as empresas Évora (holding que atua na produção de pinus e eucalipto), Celulose Riograndense e Fibria Celulose doaram R$ 179.552 à campanha do peemedebista.

Espécies ameaçadas

Entre as medidas que mais preocupam os ambientalistas está a decisão do governo do estado de retirar da FZB a coordenação da atualização da lista de espécies da fauna gaúcha ameaçadas de extinção. Segundo o decreto de 30 de janeiro de 2018, o trabalho ficará a cargo do Consema, conselho formado por diversos representantes da sociedade civil. Entre eles estão as Federações das Indústrias do Rio Grande do Sul (Fiergs) da Agricultura (Farsul) e do Comércio (Fecomércio).

Glayson Bencke foi quem coordenou a equipe de 130 pesquisadores que realizou a última revisão da lista de espécies ameaçadas, publicada em 2014. Ele avalia a medida do governo como extremamente preocupante: “O Consema ficou responsável tanto pela definição dos critérios como pela publicação final da lista. Pessoas que não estão ligadas a esta área, que não são pesquisadores, que não pesquisaram durante anos a fauna, que não têm acesso às informações sobre a nossa fauna. Eles que vão dizer como a gente vai classificar as espécies em relação à sua ameaça e eles vão dizer quais estão ou não estão ameaçadas. Um produto que certamente vai agradar o governo e seus apoiadores”.

Respostas do governo

“Entre as medidas que mais preocupam os ambientalistas está a decisão do governo do estado de retirar da FZB a coordenação da atualização da lista de espécies da fauna gaúcha ameaçadas de extinção”.

No início da produção da matéria, a reportagem enviou uma série de questionamentos à assessoria de imprensa da Secretaria Estadual de Meio Ambiente (Sema), e foi orientada a conversar com o Presidente da Fundação Zoobotânica, Luiz Fernando Branco. Como a FZB está em um período de transição administrativa, Branco disse que não poderia responder a vários dos questionamentos em relação ao futuro dos serviços prestados pela Fundação. ((o))eco voltou a fazer contato com a Secretaria de Imprensa da Sema, que informou então que a fonte para estes assuntos é a Secretária, Ana Pellini, que estava em viagem. A assessoria não conseguiu entrar em contato com a Secretária até o fechamento desta matéria.

Em relação ao despacho do juiz Eugênio Couto Terra, a Procuradoria Geral do Estado (PGE) informou no final da tarde desta terça-feira (10/04) que ainda não havia sido notificada. Quando isso acontecer, a PGE vai analisar a possibilidade de interpor um recurso judicial.

 

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  • Fernanda Wenzel

    Fernanda Wenzel é jornalista freelancer especializada em Amazônia e meio ambiente.

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Comentários 1

  1. Ecologia é Ciência diz:

    FZB tem excelente nível técnico, até por isso, subsidiava a gestão da caça amadorista no Estado, nos mesmos moldes do que ocorre no chamado "1º Mundo"