Reportagens

Justiça ignora quilombolas e mantém certificação de extração de madeira

MPF pede a suspensão do selo FSC de duas madeireiras acusadas de desmatar área quilombola. Para os procuradores, as empresas fazem propaganda enganosa

Vandré Fonseca ·
23 de fevereiro de 2017 · 7 anos atrás
Depois de degradada com o manejo florestal, a mata se recompõe de maneira que impossibilita a incursão dos quilombolas e ribeirinhos para caça, coleta e extrativismo. Foto: Ítala Nepomuceno/MPF (out. 2015).
Depois de degradada com o manejo florestal, a mata se recompõe de maneira que impossibilita a incursão dos quilombolas e ribeirinhos para caça, coleta e extrativismo. Foto: Ítala Nepomuceno/MPF (out. 2015).

O Ministério Público Federal (MPF) no Pará está travando na Justiça uma disputa contra duas madeireiras por propaganda enganosa. O órgão considera que a Ebata e a Golf não poderiam usar o selo FSC (Forest Stewardship Council), que certifica produtos socioambientalmente sustentáveis, por retirarem madeira de uma floresta no oeste do estado ocupada há décadas por comunidades quilombolas e ribeirinhos. O certificado foi concedido pelo Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora), que se recusa a rever a decisão. As empresas não foram localizadas pela reportagem para comentar o processo.

A Procuradoria da República em Santarém (PA) já havia solicitado, em liminar, a suspensão do certificado ambiental. O pedido, porém, foi negado em primeira instância. Agora, a procuradora Fabiana Schneider entrou com um agravo de instrumento [.pdf, 1,4MB], no Tribunal Regional Federal contra a decisão. A ação principal tramita na 2ª Vara da Justiça Federal em Santarém, que ainda não julgou o mérito da ação. O recurso pede também a inclusão do Serviço Florestal Brasileiro na ação.

“O problema é que a gente está falando de um selo de qualidade que tem por obrigação – e ele é bem remunerado por isso – trazer uma informação correta e transparente para o consumidor”, afirma a procuradora. “Quem compra um produto certificado pelo FSC está pagando mais por um produto de origem socialmente correta”, completa. De acordo com ela, a certificação foi dada em uma área tradicionalmente ocupada por populações tradicionais, o que gerou conflitos que não têm sido tratados com a devida seriedade pelo Imaflora.

Conflitos

Ative as camadas no mapa abaixo para conferir o desmatamento na região da Floresta Nacional Saracá-Taquera

A madeira extraída é da Floresta Nacional Saracá-Taquera, que ocupa uma área de 441 mil hectares em três municípios do oeste do Pará (Faro, Terra Santa e Oriximiná). Em 2009, 48,8 mil hectares da área foram licitados para a concessão florestal. Três anos depois, em 2012, outros 93 mil hectares também foram leiloados à exploração madeireira. A concessão foi questionada na Justiça pelo Ministério Público Federal, que perdeu a ação.

O principal argumento apresentado era a presença de populações tradicionais no interior da área – entre elas, quilombolas que ainda buscam o reconhecimento e ribeirinhos. Nivaldo Oliveira de Jesus, de 49 anos, é descendente de negros que ocuparam a região. Além da extração de madeira, existe também uma mineradora na região: “Lá, onde tem a mineradora, era a roça dos meus avós”, lembra.

“O problema é que a reserva foi criada com nós dentro”, afirma o Nivaldo, que mora às margens do Rio Trombetas, na comunidade Acari, onde vivem mais de 40 famílias. “Eles fizeram o leilão para madeireira em cima das áreas que a gente ocupa. Está muito perto, uns 200 ou 300 metros. A briga é para que eles não destruam o território que a gente usa”, completa.

“A briga é para que eles não destruam o território que a gente usa”, afirma o ribeirinho Nivaldo Oliveira de Jesus. Foto: Maurício Torres/MPF (set. 2015).
“A briga é para que eles não destruam o território que a gente usa”, afirma o ribeirinho Nivaldo Oliveira de Jesus. Foto: Maurício Torres/MPF (set. 2015).

Para o Ministério Público Federal, essa proximidade afeta o modo de vida dos ribeirinhos. Entre os impactos estão obras que prejudicaram a navegabilidade de um rio usado para caça e pesca e poluiu a água que abastecia uma comunidade, além de degradar locais com valores simbólicos para as comunidades.

“A derrubada de árvores diretamente talvez não cause um impacto direto tão grande. O problema é que destrói biomas dos quais as comunidades dependem diretamente”, afirma a procuradora do MPF Fabiana Schneider.

Imaflora

A secretária-executiva do Imaflora, Laura Prada, afirma que as certificações das  madeireiras Ebata e Golf estão mantidas porque “não conformidades” encontradas em avaliações do instituto têm sido resolvidas. Em duas ocasiões, no entanto, as soluções vieram depois de a certificação ter de ser suspensa temporariamente pelo próprio instituto.

No ano passado, as empresas perderam o direito ao selo devido a falhas na gestão de conflitos com a comunidade. A certificação acabou sendo retomada após a criação de um comitê composto pelas madeireiras, representantes do Serviço Florestal Brasileiro, de trabalhadores rurais e comunidades.

“Atualmente, todos os problemas apontados inicialmente pelo Ministério Público já foram ou completamente solucionados ou encaminhados conjuntamente entre os representantes das comunidades e as empresas”, diz Laura Prada. “Por isso, o Imaflora manteve a certificação. O juiz responsável pelo caso também teve esse entendimento e negou a liminar do Ministério Público para a suspensão imediata do selo”, completa.

A secretária-executiva do Imaflora destaca que, embora sejam ferramentas de controle das questões sociais e ambientais, qualquer processo de certificação mantém margens de “não conformidades” que devem ser corrigidas ao longo do tempo. Segundo ela, é um “processo de melhoria contínua”.

Em construção pela comunidade, esta embarcação é feita de itaúba a partir de ensinamentos passados de pai para filho. A madeira é usada pelos locais e, também, explorada pelas madeireiras. Foto: Ítala Nepomuceno/MPF (jul. 2015).
Em construção pela comunidade, esta embarcação é feita de itaúba a partir de ensinamentos passados de pai para filho. A madeira é usada pelos locais e, também, explorada pelas madeireiras. Foto: Ítala Nepomuceno/MPF (jul. 2015).

Laura chama a atenção também para a complexidade da situação da Flona Saracá-Taquera, uma concessão de floresta natural que exige um conhecimento técnico refinado, onde vivem comunidades tradicionais que usam concomitantemente a área. Para ela, conflitos eram esperados, mas precisam ser antecipados e resolvidos pelas empresas. “A gente não tem a expectativa de que, numa situação complexa como essa […] não existam conflitos, mas o que se julga é como eles são prevenidos ou são discutidos e resolvidos com as comunidades”, explica.

Entre as situações já resolvidas, ela cita a elaboração de um novo mapa do território usado pelas comunidades, que devem ser consideradas no plano de manejo das empresas.

Para o MPF, que entrou com a ação em 2014, as medidas adotadas pelo Imaflora e pelas empresas ainda não são suficientes. A procuradora do MPF critica as auditorias realizadas na área, que, para ela, não se aprofundam o suficiente nos problemas enfrentados pelas comunidades.

“As equipes de auditoria vão até o local e ficam três ou quatro dias. São prazos muito pequenos para uma análise profunda e necessária para entender o contexto. A gente está falando de comunidades tradicionais, que têm uma cosmologia muito diferente da nossa, na nossa forma hegemônica de ser”, defenda a procuradora Fabiana Schneider. “Então, a compreensão dessa problemática, dessa cosmologia exige um aprofundamento muito maior do que essa maquiagem que o selo tenta passar”.

Cestos de ambé, uma planta local, são usados pelos ribeirinhos para transporte de mandioca da roça para casas de farinha. Foto: Ítala Nepomuceno/MPF (jul. 2015).
Cestos de ambé, uma planta local, são usados pelos ribeirinhos para transporte de mandioca da roça para casas de farinha. Foto: Ítala Nepomuceno/MPF (jul. 2015).

**As fotos desta reportagem foram obtidas do relatório circunstanciado [.pdf, 5,4MB] elaborado a pedido do MPF.

Leia Também 

InfoAmazonia: Como construímos um projeto open source para monitorar a qualidade d´água

Leia também

Reportagens
26 de dezembro de 2016

InfoAmazonia: Como construímos um projeto open source para monitorar a qualidade d´água

Um relato sobre a execução do Rede InfoAmazonia, uma rede de sensores para monitorar a qualidade da água de comunidades na Amazônia

Por VJ pixel
Notícias
19 de abril de 2024

Em reabertura de conselho indigenista, Lula assina homologação de duas terras indígenas

Foram oficializadas as TIs Aldeia Velha (BA) e Cacique Fontoura (MT); representantes indígenas criticam falta de outras 4 terras prontas para homologação, e Lula prega cautela

Notícias
19 de abril de 2024

Levantamento revela que anta não está extinta na Caatinga

Espécie não era avistada no bioma havia pelo menos 30 anos. Descoberta vai subsidiar mudanças na avaliação do status de conservação do animal

Mais de ((o))eco

Deixe uma resposta

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

Comentários 4

  1. Marcelo diz:

    Isto é o Brasil. Campeão em insegurança jurídica. Do nada sempre aparece os tais " povos tradicionais".Gostaria que as "ONGs" fossem nos assentamentos da reforma agraria para verificar o que os assentados fazem com a mata e a fauna. Estão desmatando tudo e caçando tudo o que existe, mas tudo com o aval do MPF, ONGs, Incra.
    Este é o nosso Brasil…………..


  2. Chato de Galocha diz:

    Empreender no Brasil é isso: o governo concede a área mas não consegue resolver a situação fundiária. O MPF, com sua militância e ativismo, trata o empresário como bandido. O Governo ainda arranca o couro com impostos. Um monte de ONG só faz barulho e não ajuda em nada. Depois o errado é a empresa.


  3. Erick Road Estrada diz:

    Ah sim, os que se autodenominam "carambolas"??? sim, vivem suuuuuuuuuper em harmonia com a natureza. Isso, vamos deixar eles tomar conta da floresta nacional e também da reserva biológica, afinal de contas, qual o problema de botar um foguinho na mata, rebentar o que tem de fauna, pescar sem limites…é suuuuuper legal ter essa "cosmologia", não é, MPF de Santarém??? E, O Eco, pelamordedeus, vai averiguar a situação antes de publicar matéria colocando os autodenominados quilombolas como coitadinhos da história, vai !!!! Ou então vira logo subsidiária do ISA.


  4. José Pereira diz:

    “As equipes de auditoria vão até o local e ficam três ou quatro dias. São prazos muito pequenos para uma análise profunda e necessária para entender o contexto. A gente está falando de comunidades tradicionais, que têm uma cosmologia muito diferente da nossa, na nossa forma hegemônica de ser”
    Isto deveria valer para os laudos antropológicos também não é MPF? Ou para referendar dois dias bastam?