Reportagens

Governo contra governo: sem guia de trânsito, gado ilegal no Pará fica impune

Há seis anos não se apreende boi em unidades de conservação do estado porque sua agência de vigilância sanitária se omite na emissão de guias de transporte

Bernardo Camara ·
5 de setembro de 2017 · 7 anos atrás
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Os pontos brancos são cabeças de gado dentro de área desmatada na Floresta Nacional de Jamanxim. Foto: Bernardo Camara

Cinco autuações, embargos e mais de R$ 20 milhões em multas. A lista de penalidades aplicadas ano a ano pelos fiscais do ICMBio não tem sido suficientes para convencer um fazendeiro a retirar as milhares de cabeças de gado que mantém ilegalmente dentro da Reserva Biológica Nascentes da Serra do Cachimbo, no sul do Pará. Neste caso, a saída seria apreender o rebanho. Mas esta não tem sido uma opção para o órgão ambiental. “Há anos a gente não consegue apreender e retirar gado das unidades de conservação no Pará”, diz Diego Rodrigues, que coordena a equipe de fiscalização do ICMBio na região da BR-163.

Segundo Rodrigues, o entrave para a remoção dos bois tem nome: Agência de Defesa Agropecuária do Pará (Adepará). O órgão é responsável por emitir as Guias de Trânsito Animal (GTA), documento necessário para qualquer movimentação de rebanhos em território nacional. A Adepará, no entanto, tem ignorado as solicitações do ICMBio, que só em 2017 já formalizou dois  ofícios pedindo informações sobre como proceder após a apreensão dos animais. “Eles ignoram nossa comunicação. E a gente fica de mãos atadas. Por mais que eu apreenda o gado, não tenho como retirá-lo, pois não tenho as GTAs, as guias de transporte”.

“A gente sabe que existe um receio do setor agropecuário em abrir esses dados [da Guia de Trânsito Animal] para os órgãos ambientais porque tem muita criação de boi em áreas não autorizadas”Renê Oliveira, Ibama

Margeando a BR-163 no sul do Pará, a Rebio Nascentes da Serra do Cachimbo é uma das unidades de conservação mais impactadas pela pecuária na região: segundo o ICMBio, em torno de 80% das áreas abertas ali são destinadas à pecuária. De acordo com Rodrigues, cerca de 9 em cada 10 das multas e embargos aplicados são absolutamente ignorados pelos infratores.

“Mesmo com as sanções, o dano ambiental não cessa. Eles não ligam para as ações de fiscalização. Não pagam as multas e mantêm suas atividades nas áreas embargadas, impedindo a regeneração da floresta. Muitas vezes até ampliam o pasto”, diz o servidor do ICMBio. Um dos principais motivos da impunidade é o frequente uso de “laranjas” na região: as propriedades são registradas em nomes de terceiros, com o claro objetivo de burlar as investidas dos órgãos ambientais.

Uma maneira de driblar este problema seria justamente a apreensão e retirada dos rebanhos ilegais, uma das sanções administrativas que, por lei, o ICMBio tem autoridade para executar nas unidades de conservação. Na avaliação de Rodrigues, esta seria a estratégia mais eficaz em casos de reincidência, pois mexe diretamente com o bolso do produtor ilegal. “É o que dá mais impacto, pois vai na questão econômica: aquele rebanho está gerando lucro, então com a apreensão nós descapitalizamos o infrator”, diz. “Mas com este entrave na Adepará, hoje o máximo que a gente consegue é aplicar multas e embargos”.

Informação limitada

Nos ofícios enviados à Adepará, o ICMBio também vem pedindo acesso aos dados de proprietários que têm fazendas dentro de unidades de conservação. As informações seriam uma valiosa ferramenta de inteligência nas investigações do órgão ambiental. Com elas, além de facilitar a identificação dos infratores, o ICMBio teria um retrato refinado sobre a quantidade de gado ilegal dentro das UCs, o local onde os animais são criados e para quem eles estão sendo vendidos. A Adepará, porém, também não responde às solicitações.

“O que sabemos é que existem centenas de fazendas dentro das unidades de conservação, e que não deveriam estar ali. Mas não temos informações sobre a produção pecuária: de onde está vindo o gado, para onde está indo. Isso é um gargalo para nós”, afirma Rodrigues.

O impasse com o órgão estadual de defesa agropecuária, no entanto, não é novidade na região. Ainda em 2009, apenas dois anos após o nascimento do ICMBio, o Ibama já se estranhava com a Adepará. Naquele ano, durante a Operação Boi Pirata, o órgão do Ministério do Meio Ambiente entrou em contato com a Adepará solicitando dados de pecuaristas que estavam derrubando floresta ilegalmente para expandir áreas de pasto. O pedido foi negado, com a justificativa de que as informações são sigilosas.

O caso foi parar na Justiça, e o Ibama chegou a multar em R$ 15 mil um dos servidores da entidade, por sonegar informações. O troco não demorou a chegar. Há 6 anos, Em 2011, numa continuação da Operação Boi Pirata, o órgão ambiental apreendeu e retirou milhares de cabeças de gado de áreas protegidas no Pará, sem que as GTAs fossem emitidas. A Adepará lavrou um auto de infração, devolvendo uma multa de mais de R$ 12 mil à equipe de fiscalização. “Na região, esta foi a última ação de retirada de gado em UC que eu tenho notícia”, diz Diego Rodrigues, do ICMBio.

O mal estar se arrasta até hoje. “O Ministério Público Federal entende que a GTA é um documento público, que deveria estar disponível não só para os órgãos de fiscalização, como para qualquer cidadão. Assim como ocorre com a guia de transação de madeira ou com o contracheque de qualquer servidor público do país”, diz o procurador da República Daniel Azeredo. “Negar o acesso a essas informações significa descumprir a lei federal de transparência“.

Foi baseado neste argumento que o Ministério Público interveio em favor do Ibama e exigiu que a Adepará abrisse seu sistema para o órgão ambiental. Após anos de negociações, no início de 2017 finalmente esta decisão foi concretizada. Mas parcialmente. Desde então, o Ibama tem acesso aos dados de movimentação de gado no estado, conseguindo checar a origem e o destino dos rebanhos ilegais. Informações sobre quantidade de animais ou coordenadas geográficas da propriedade, por exemplo, permanecem em sigilo.

“A gente sabe que existe um receio do setor agropecuário em abrir esses dados para os órgãos ambientais porque tem muita criação de boi em áreas não autorizadas”, diz o coordenador geral de Fiscalização do Ibama, Renê Luiz de Oliveira.

A Adepará não atendeu ao pedido de entrevista de ((o))eco. Em relação às solicitações do ICMBio, o órgão estadual apenas afirmou, em nota, que as demandas foram “protocoladas na gestão passada”, dando a entender que a entrada do novo diretor-geral da agência – que ocorreu em maio de 2017 – exigiria novos ofícios por parte do ICMBio.

Poder pela metade

“Eles não podem deixar de efetuar uma operação porque um órgão estadual se recusa a cooperar”, afirma Azeredo. “Se o diálogo não resolver, é preciso partir para a aplicação de penalidades”Daniel Azeredo, Procurador do MPF

Desde o momento em que foi criado por lei, em agosto de 2007, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) recebeu o “poder de polícia ambiental para a proteção das unidades de conservação” do país. Dois anos após seu nascimento, uma Instrução Normativa descrevia minuciosamente os procedimentos que o órgão deve adotar ao se deparar com infrações ambientais dentro de UCs. A apreensão de animais exóticos – caso do gado – está incluído na lista.

“Ao identificar a infração, nós aplicamos as sanções administrativas para garantir que o dano ambiental seja cessado. Além da multa e do embargo, também podemos apreender o objeto que está causando o dano ambiental”, explica Diego Rodrigues, que coordena a equipe de fiscalização do ICMBio no mosaico de UCs da BR-163, no Pará. “Fazendo um recorte para a pecuária: se o gado estiver numa área embargada em UC de proteção integral, podemos apreendê-lo e retirá-lo direto. Se for em uma unidade de uso sustentável, temos que notificar o produtor para que ele retire os animais dentro de um período. Caso não cumpra, fazemos a apreensão. Enquanto ICMBio, temos autoridade para isto”.

O problema é que no caso da movimentação de animais vivos e exóticos, como o gado, ela precisa estar acompanhada das Guias de Trânsito Animal (GTA). O documento é uma exigência do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Além de conter dados sobre o proprietário, a GTA traz informações sobre a vacinação do rebanho, atestando que os bois estão em dia com os requisitos sanitários. O objetivo é garantir o rastreamento de animais e vegetais para prevenir qualquer possibilidade de disseminação de doenças pelo país.

Rodrigues explica que a retirada dos rebanhos ilegais sem GTA seria uma medida atropelada. Além dos riscos sanitários e do mal estar que seria gerado com os órgãos de controle sanitário, o destino do gado apreendido seria incerto: “Nós já identificamos entidades que gostariam de receber a doação desses animais apreendidos. A Secretaria de Educação de Itaituba, por exemplo, já se propôs a realizar a logística de retirada dos rebanhos para serem usados na merenda escolar. Porém, para trazer o gado da fazenda para o abatedouro eles vão precisar da GTA, senão o frigorífico nem recebe o animal, pois não sabe sua origem”, explica.

Para o procurador Daniel Azeredo, do Ministério Público Federal, o ideal seria que a Adepará – responsável pela emissão das GTAs no Pará – assinasse um termo de cooperação técnica com os órgãos de fiscalização ambiental, para um trabalho permanente de colaboração mútua. A Adepará, no entanto, segue ignorando as solicitações do ICMBio. “Eles não podem deixar de efetuar uma operação porque um órgão estadual se recusa a cooperar”, afirma Azeredo. “Se o diálogo não resolver, é preciso partir para a aplicação de penalidades”.

 

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Comentários 7

  1. Volumao diz:

    As pessoas precisam se interessar por politica


  2. Esse tipo de coisa que precisa acabar aqui no Brasil 2018 esta ai é bom o povo acordar


  3. Gustavo Romeiro diz:

    A apreensão de bens envolvidos no desmatamento ou produzidos sobre áreas desmatadas ilegalmente vem se mostrando como a forma de sanção mais efetiva que o Estado brasileiro tem de punir e dissuadir a infração ambiental na Amazônia.
    Barreto et al. (2008) apresenta um estudo minucioso e ainda bastante pertinente envolvendo toda essa questão, e clama por reformas na legislação para que a apreensão e destinação de bens apreendidos possam ser utilizados de forma segura e efetiva no combate ao desmatamento ilegal.
    A destinação dos bens apreendidos na Amazônia, em sua imensa maioria formados por madeira, equipamentos madeireiros, bovinos e grãos; tem como destino previsto em lei a doação a instituições científicas, hospitalares, penais e outras com fins beneficentes (Artigo 25 da Lei nº 9.605/1998).
    Entretanto, esse procedimento tem se mostrado inviável, pois os volumes apreendidos geralmente são grandes e os custos de transporte e beneficiamento dos bens desencoraja as entidades legalmente aptas a aceitá-los.
    A impossibilidade legal de venda dos bens por parte dos beneficiários pelas doações impõe sua utilização direta por essas entidades, uma combinação de fatores bastante improvável; que resulta trabalhosa e onerosa ao Estado, responsável pela guarda dos bens por longos períodos.
    A falta de um canal de destinação ágil para os bens apreendidos limita a atuação da fiscalização a poucos alvos, pois o tempo e os recursos necessários para apreender, guardar, transportar e doar os materiais impedem a ampliação do raio de atuação do IBAMA.
    Embora poucos alvos bem trabalhados pudessem servir como exemplos para a dissuasão das infrações ambientais; quando da doação, tais bens se tornam um convite ao uso político, ao desperdício, à apropriação indébita e, o mais grave, possui alta probabilidade de retornar ao próprio infrator a um custo extremamente baixo, além de haver a possibilidade do infrator se beneficiar duas vezes, caso tenha sua apreensão julgada improcedente administrativamente no próprio IBAMA ou numa eventual ação judicial.
    Portanto, provavelmente a fragilidade desse sistema de doações esteja concorrendo para um efeito contrário: de estímulo ao cometimento das infrações ambientais.
    O controle do destino dos bens doados é praticamente inexistente e também seria uma carga extremamente onerosa ao Estado; desnecessária caso os bens fossem oficialmente leiloados, pois o controle do dinheiro público já conta com estrutura própria.
    Trecho extraído de:
    PINTO, Gustavo Romeiro Mainardes. Estratégias para a Gestão Florestal Integrada no Brasil. Monografia apresentada ao III Prêmio Serviço Florestal Brasileiro em Estudos de Economia e Mercado Florestal. Brasília. 2016. Disponível em: http://www.florestal.gov.br/documentos/informacoe


  4. AAI diz:

    Pois é! O que tá faltando? A Adepará não responde e fica assim??? Esperando….


  5. João José diz:

    A cada ofíco encaminhado, deve-se estabelecer um prazo para resposta. Vencido o prazo, aplica-se multa por obstrução à atividade fiscalizatória e entra com ação cívil pública. Se fizer isto mês a mês, reiteradamente, um dia a coisa se resolve, por bem ou por mal. O MPF pode promover junto aos órgãos ambientais o leilão do gado e depositar em juízo os valores arrecadados até que nossa combalida justiça se pronuncie definitivamente.


  6. sousa santos diz:

    Omissao ou cooptação ??


  7. paulo diz:

    Concordância com o crime.
    Procuradoria do Ibama e Icmbio, Procuradoria geral mexam-se. Façam seu trabalho, que esta previsto na Constituição Brasileira.

    Chega de mentiras, invazão de UNIDADE FEDERAL, é crime. Lesão ao patrimônio PUBLICO é crime.
    Só isto já basta. Mexam-se.