Reportagens

Bandeira branca

Os caiçaras e a alta elite paulista, inimigos históricos, começam a trabalhar juntos pela preservação de Paraty, onde impera a degradação ambiental sem limites.

Lorenzo Aldé ·
1 de outubro de 2004 · 20 anos atrás

Se as areias de Trindade falassem, contariam duas histórias.

Uma antiga, sobre o confronto entre empresas multinacionais e os pescadores artesanais que moravam ali, isolados de tudo, nos anos 70. A vila – que fica no município de Paraty (RJ) e tornou-se conhecida na última década como destino turístico por suas praias estupendas – foi palco de um memorável episódio de resistência popular, em plena ditadura militar, à especulação imobiliária. O improvável aconteceu: depois de 8 anos de luta, os moradores venceram e mantiveram suas terras.

Mais improvável ainda é o que está acontecendo atualmente. E esta é a segunda história. Deixando para trás décadas de antipatia e preconceito mútuos, o Condomínio Laranjeiras, único fruto bem-sucedido daquela investida empresarial, e os caiçaras (como são conhecidos os nativos da região litorânea) estão unindo forças para promover o turismo sustentável.

Em junho de 2004, chegou ao fim o primeiro Curso Básico de Monitores Ambientais em Ecoturismo, promovido pela Associação Cairuçu, ONG criada pelo Condomínio Laranjeiras. Foram diplomados 22 moradores de vários bairros de Paraty. O curso durou seis meses, num total de 100 horas/aula. Entre os recém-formados monitores ambientais, há barqueiros, indígenas, estudantes, ex-palmiteiros e surfistas, de todas as idades.

A iniciativa de fundar uma ONG para a preservação ambiental não nasceu apenas da sensibilidade social dos condôminos do luxuoso resort com marina privativa. Até porque o Condomínio Laranjeiras nunca antes se preocupou em olhar para os lados. O interesse surgiu a partir de uma constatação bem direta: a preservação de seu pequeno paraíso particular está estreitamente relacionada à situação sócio-ambiental do entorno, o que inclui saneamento básico, destinação do lixo, ordenamento territorial, controle do turismo, condição da água e da vegetação.

Quando começou a sentir-se ameaçado pela expansão urbana caótica dos subúrbios de Paraty, o Condomínio resolveu agir. Começou patrocinando o Plano de Gestão da Área de Proteção Ambiental (APA) do Cairuçu, elaborado pela Fundação SOS Mata Atlântica e finalizado em 2002. Como resultado do processo participativo, que envolveu Prefeitura, comunidades, Ibama e a iniciativa privada, veio a idéia de criar a Associação Cairuçu, para acompanhar e apoiar as ações sugeridas pelo Plano. É a primeira ONG de porte a atuar na defesa ambiental de Paraty e região.

O desafio agora é mostrar que a Associação Cairuçu visa ao interesse coletivo e tem autonomia em relação ao Condomínio Laranjeiras. Os condôminos participam do Conselho da ONG, mas deixaram o trabalho na mão de técnicos com experiência na área ambiental. Escolheram um caiçara paranaense, Marcelo Guimarães, como gerente da Associação. Ele conta com uma equipe pequena e diz que pretende expandir a atuação aos poucos, ganhando a confiança dos moradores e construindo os projetos a partir de suas demandas. “Queremos evitar uma postura paternalista, de apenas repassar recursos. Toda ação precisa contar com o compromisso e o trabalho comunitário, ou não se legitima”, explica.

Se os moradores mais antigos de Trindade ainda torcem o nariz para qualquer iniciativa vinda do Condomínio Laranjeiras, as novas gerações estão percebendo que a parceria pode ser benéfica para seu futuro e para a preservação da comunidade. Jonas Alves da Silva (foto) , 24 anos, é herdeiro direto da tradição associativista de Trindade. Seu pai participou da resistência contra a especulação imobiliária nos anos 70 e atualmente preside a Associação de Moradores. Jonas foi um dos fundadores da Associação de Surf de Trindade (AST), que abre espaço, entre suas atribuições, para a conscientização ambiental (espalhando latões de lixo e placas de orientação pela vila, por exemplo). Agora é candidato natural à presidência da Associação de Monitores Ambientais de Paraty (Amapa), criada pelos alunos formados no curso da Associação Cairuçu.

A Amapa acaba de ser criada e já está planejando ações que promovam o ecoturismo em Paraty. A primeira preocupação em Trindade é ordenar o acesso à trilha do Caxadaço, que liga a Praia de Fora a uma magnífica piscina natural. Apenas durante o Carnaval de 2004, cerca de 20 mil turistas passaram pela estreita trilha, e isto porque foram quatro dias chuvosos. Os estragos de tamanha visitação são visíveis: alguns trechos desmoronaram, outros oferecem perigo de queda, trilhas paralelas são abertas quando a principal fica inviável, a vegetação sofre.

Na semana passada, Jonas acompanhou Walter Behr, analista ambiental do Parque Nacional da Serra da Bocaina, em um passeio pela trilha, que fica dentro da área do Parque. Walter, há apenas quatro meses na função, fez da visita uma excursão de reconhecimento do terreno. Afinal o Parque Nacional corta a vila de Trindade ao meio, e não há nenhuma fronteira visível que indique que o turista adentrou numa área de proteção integral. Pelo contrário. A Praia do Meio tem bar, barracas e um enorme camping, cujos proventos são em parte explorados pela Associação de Moradores. Barcos passam o dia levando turistas que não têm disposição de encarar a trilha do Caxadaço para conhecer a piscina natural. Os animais marinhos que viviam ali foram procurar lugar mais sossegado. Nascido e criado em Trindade, Jonas conta que até polvos e cavalos marinhos eram vistos na piscina, além de uma infinidade de peixes coloridos. Em resumo: o turismo na área “protegida” é uma bagunça.


Se depender de Walter, a exploração desordenada daquele trecho de Trindade está com os dias contados. “Vamos demarcar a área, sinalizar a trilha e diminuir o número de visitantes. Já neste verão queremos contar a ajuda dos monitores ambientais uniformizados, orientando os turistas na trilha do Caxadaço. Os serviços de bar e camping terão que ser padronizados. Para o futuro, temos que pensar em barcos não poluentes, elétricos, com fundo transparente, para fazer esse percurso. Será um atrativo turístico a mais, sem agredir a natureza”.

Depois de 26 anos sob o comando de Mário Augusto Bernardes Rondon (um recorde na chefia de unidades de conservação no Brasil), o Parque Nacional da Serra da Bocaina ganhou nova direção em 2003, com a chegada de Daniel Toffoli, e passou a se preocupar com a região litorânea. O problema é que a sede do Parque fica em São José do Barreiro (SP) e para chegar a Paraty não se leva menos de 4 horas de carro. Não há pessoal e estrutura para deslocar-se constantemente entre o nível do mar e os 2.080 metros que a serra de belas cachoeiras alcança. O Parque acaba de ter o telefone cortado por falta de pagamento, pelo segundo mês consecutivo. Por isso a chegada de um parceiro com os recursos da Associação Cairuçu anima os técnicos do Ibama.

A nova ONG banca o transporte, o alojamento e a alimentação dos funcionários do Parque em suas viagens a Paraty. A ajuda de custo viabilizou o início de fiscalizações quinzenais do Ibama na região do litoral. “A proteção ao litoral está começando a se efetivar pelo apoio da Associação”, atesta Walter, que também exalta o espírito participativo da comunidade e o despertar da consciência ambiental entre os moradores: “Quando os moradores tomam a iniciativa, chamam o estado e o estado pode atender, é o sonho realizado!”. Ele se refere à denúncia, feita por moradores, de desmatamento e construção de casas sem autorização, dentro da área protegida pela APA. O Ibama já indiciou os responsáveis.

Mas há muito trabalho pela frente, para enfrentar décadas de passivo de abandono ambiental.

Paraty é a prova de que não adianta ter uma legislação eficiente e vastas áreas protegidas se na prática não há gestão nem fiscalização adequadas. O município tem 85% de seu território abrangido por três unidades de conservação: o Parque Nacional da Serra da Bocaina, a APA do Cairuçu e a Estação Ecológica dos Tamoios. Proteção que raramente sai do papel.

Logo na entrada de cidade, que é candidata a Patrimônio Mundial da Humanidade junto à Unesco, apresenta-se um lixão a céu aberto às margens da BR-101. Conhecida como Rio-Santos, a rodovia inaugurada em 1972 abriu caminho para a ocupação caótica da disputada região. No subúrbio de Paraty proliferaram as comunidades pobres, sem acesso a serviços públicos como saneamento e coleta de lixo, e variados empreendimentos particulares feitos de forma irregular.

É o caso da Estrada do Ouro, roteiro turístico histórico explorado pela iniciativa privada, dentro da área do Parque Nacional, sem autorização. Ou da construção da marina e condomínio Porto Imperial, que tem posto de gasolina BR e ancoradouro e já está asfaltando ruas e construindo casas, tudo em cima de um grande aterro que arrasou uma área de mangue dentro da APA do Cairuçu  (foto). Uma placa indica a inexplicável autorização da Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente (Feema) para a obra.

A elaboração de planos de manejo para as áreas protegidas é o primeiro passo para transformar leis em ação. É o que pretendeu a SOS Mata Atlântica ao criar o Plano de Gestão da APA do Cairuçu. Finalizada em 2002, a proposta está há um ano e meio aguardando o parecer do Ibama. A previsão é de que no final deste ano possa começar a ser implementada. O Plano de Manejo do Parque Nacional da Serra da Bocaina também ficou pronto em 2002, elaborado pela Unicamp depois de seis anos de estudos e burocracia. Procura agora recursos e parceiros para virar realidade. E há mais uma proposta saindo do forno: é o Plano de Gestão do Sítio do Patrimônio Mundial, parte do dossiê preparado pela Prefeitura de Paraty para a candidatura junto à Unesco.

“Paraty hoje está num caminho interessante. A gestão ambiental é um processo educativo e civilizatório. O valor de uma área está associado ao valor ambiental da área. Foi o que o pessoal do Condomínio Laranjeiras entendeu”, explica Adriana Mattoso, que coordenou o Plano de Gestão da APA e participa da equipe do dossiê para o Patrimônio Mundial. Walter Behr concorda que as coisas começaram a andar no município: “Em qualquer situação onde há desorganização completa, falta de presença total do poder público, sair do zero, da inércia, já surte efeito enorme. Estamos estancando a sangria total”.

A oportunidade é preciosa demais para ser desperdiçada. O que começa a acontecer em Paraty é a equação considerada ideal para o desenvolvimento sustentável: terceiro setor, poder público, comunidades e iniciativa privada expondo suas demandas e traçando objetivos para a gestão do patrimônio coletivo.

Exemplo para acompanhar de perto. E ficar na torcida.

  • Lorenzo Aldé

    Jornalista, escritor, editor e educador, atua especialmente no terceiro setor, nas áreas de educação, comunicação, arte e cultura.

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