Análises

Alienígenas que comem cérebros ameaçam ilhéus indefesos

Predadores ecléticos, os ratos invadiram ilhas pegando carona com os homens, e passaram a extinguir centenas de espécies locais.

Fabio Olmos ·
9 de maio de 2013 · 11 anos atrás
O corpo de um filhotão de rabo-de-palha (Phaethon lepturus) decapitado e estripado por um rato. Foto: Fabio Olmos
O corpo de um filhotão de rabo-de-palha (Phaethon lepturus) decapitado e estripado por um rato. Foto: Fabio Olmos

A maioria ou talvez todos os fãs da série de filmes Alien, e dos games inspirados por ela, adoram como os monstros alienígenas, protagonistas das histórias, emergem do corpo de um hospedeiro. Depois de crescidos, abatem presas e desafetos com mandíbulas retráteis que vão direto ao cérebro da vítima.

Poucos sabem que o simpático (embora babão) alienígena é inspirado no ciclo de vida de vespas parasitas que comem seus hospedeiros vivos, nas mandíbulas retráteis das larvas de libélulas e, diz a lenda, na carinha bonita do crustáceo Phronima. Sim, este é um mundo habitado por monstros alienígenas.
E entre os que mais causam vítimas estão os ratos introduzidos em ilhas.

Os ratos que acompanharam a conquista humana da Terra, o rato comum (Rattus rattus) e a ratazana (Rattus norvegicus) são originários da Ásia, o primeiro da região sudeste, o segundo do nordeste da China. Extremamente adaptáveis, oportunistas e inteligentes, estes roedores acompanharam caravanas, carroças, navios, trens e caminhões onde quer que humanos fossem.

Ratos são parte notável do folclore naval e foram o petisco de mais de uma tripulação faminta presa por calmarias,como por exemplo a de Fernão de Magalhães na primeira travessia do Pacífico. Os povos Polinésios, talvez os maiores navegadores, deliberadamente levavam seu próprio rato, o kiore (Rattus exulans), nas viagens e o introduziam nas ilhas que colonizavam como uma futura fonte de alimento.

Dessa forma, por acidente ou deliberadamente, humanos espalharam ratos por ilhas e continentes. E ali estes alienígenas passaram a degustar a fauna local.
Ratos podem ser predadores muito eficientes e têm um gosto especial pelas calorias no tecido cerebral das aves, comendo a cabeça de suas vítimas antes de abrir um buraco no corpo para atingir as vísceras. Não é algo bonito de ver.

Dizimadores de aves

Em habitats onde espécies evoluíram sem mamíferos predadores, como na maior parte das ilhas oceânicas e quase-continentes como a Nova Zelândia, a chegada dos ratos foi uma calamidade para aves de todos os portes. Sem falar de seu impacto como predadores de sementes e outras interações ecológicas. Por exemplo, o kiore parece ter sido decisivo no desastre da Ilha de Páscoa e coadjuvante na extinção de pelo menos 2 mil espécies de aves (isso equivale a 10% das espécies de aves hoje reconhecidas) causadas pela colonização das ilhas do Pacífico pelos “ecológicos” povos polinésios. Façanha que a cultura ocidental está se esforçando para repetir.

É claro que não foram apenas aves que sofreram nos dentes dos ratos. Plantas, caracóis, lagartos, anfíbios e outros roedores desapareceram após a introdução dos roedores amigos dos humanos, seja por predação direta ou introdução de doenças. Ratos e ratinhos nativos que evoluíram em ilhas como as Galápagos, Christmas e Channel desapareceram depois que os alienígenas chegaram. Isso aconteceu também no Brasil.

Quando Fernando de Noronha foi visitada em 1503 pelo navegador, cartógrafo e financista florentino Amerigo Vespucci (o fato do novo continente se chamar América não é coincidência) ele encontrou uma ilha ainda intocada “coberta” por ninhais de fragatas (duas espécies!), atobás e outras aves marinhas, onde também vivia um grande rato endêmico que depois seria batizado com o nome da ilha e uma saracura que não voava, também endêmica, que ainda precisa ser descrita cientificamente.

Longe de continuar um paraíso intocado, Fernando de Noronha sofreu séculos de destruição ambiental que reduziu os ninhais a uma parcela ínfima de sua glória original e levaram tanto o curioso ratão nativo como a saracura sem nome à extinção. Muito se fala do papel do desmatamento, fogo e alterações na cobertura vegetal da ilha, assim como há muitos registros de como os habitantes e visitantes trucidavam as aves marinhas.

Como ocorreu em ilhas em todo o mundo, muito do estrago foi causado por espécies introduzidas. Vacas e cabras avançaram sobre a vegetação, enquanto cães e gatos domésticos e ferais mataram e matam a fauna nativa. Algo melhorou desde que o parque nacional que cobre boa parte da ilha foi criado e medidas foram adotadas para controlar estas espécies, mas ainda há problemas com cães, gatos e os infames teiús soltos pela ilha. E os ratos.

Essa foto foi feita quando visitei Noronha anos atrás. Um filhotão de rabo-de-palha, uma espécie que consta na lista brasileira de espécies ameaçadas, foi morto por um rato, que comeu seu cérebro e depois abriu um rombo nas suas costas para chegar às vísceras. Isso não deveria acontecer numa unidade de conservação.

Rabos-de-palha são aves agressivas e com um bico afiado que conseguem se defender razoavelmente bem de ratos. Mas não sempre. Espécies menos armadas como trinta-réis, pardelas e grazinas são vítimas bem mais fáceis e dá para entender porque, na ilha principal, nidificam apenas aves que constroem ninhos nas árvores ou nos paredões inacessíveis. Gatos, ratos, teiús e cachorros eliminam rapidamente quem está no chão.

Predadores introduzidos são a principal causa de extinção em ilhas oceânicas. Gatos foram responsáveis pela extinção de roedores, lagartos e um mínimo de 33 espécies de aves insulares, além de centenas de extinções locais e do massacre de colônias de aves marinhas com dezenas de milhares de indivíduos. Os ratos que espalhamos pelo mundo têm uma ficha corrida ainda pior e podem ter eliminado, literalmente, milhares de espécies. Olhando apenas para aves globalmente ameaçadas, um total de 273 espécies são impactadas por ratos.

Solução é dar cabo deles

O impacto destes predadores sobre espécies ameaçadas e ecossistemas frágeis levou ao desenvolvimento de técnicas para sua erradicação, as mais eficientes envolvendo o uso de venenos como rodenticidas e o famoso 1080. A erradicação de ratos, gatos, cabras, cães, coelhos e outras espécies introduzidas já foi obtida com sucesso em dezenas de ilhas, incluindo Galápagos, ilhas sub-antárticas, Polinésia, Austrália e Escócia (para uma revisão veja isto). Salvou espécies antes por um fio, além de ajudar a restaurar colônias de aves marinhas rumo ao colapso.

Esta atividade é rotina para gerentes de unidades de conservação em outros países, onde ilhas com até 113 km² foram limpas de ratos, e poderia ser perfeitamente realizada em ilhas onde ratos, teiús e demais predadores destroem aves e outros bichos, como Fernando de Noronha e Abrolhos. Se houver coragem e a mesma disposição que resultou na erradicação das cabras ferais de nossa Ilha da Trindade pela Marinha do Brasil, o que está permitindo a gradual recuperação de sua flora.

Uma leitura interessante sobre o assunto é “Rat Island: Predators in Paradise and the World’s Greatest Wildlife Rescue” (algo como Ilha do rato: predadores no paraíso e o maior resgate de fauna do mundo), de William Stolzenburg. Um tema bastante familiar neste livro é como ecoburocratas atrás das mesas em órgãos ambientais retardaram ações que poderiam ter salvo espécies e são diretamente responsáveis por extinções que jamais serão revertidas (burocratas são outra espécie nociva que causa extinções).

Outro tema familiar é a oposição de grupos que tentam bloquear erradicações com base nos “direitos dos animais” e preferem que espécies sejam extintas a que mamíferos bonitinhos, mas daninhos, sejam abatidos. O que levanta discussões éticas e emocionais interessantes, pois alguns bichos realmente valem mais que os outros.

É curioso que baratas sejam mortas a chineladas ou inseticida sem que isso cause alvoroço. E que raticida seja rotineiramente usado para controlar ratos em áreas urbanas, também sem que isso incomode. Um dos casos mais bizarros relatados no livro é o das ações legais contra a erradicação de ratos em ilhas na Califórnia promovidas por grupos “ambientalistas”. E como o tom da oposição sobe quando se fala em eliminar cães e gatos ferais. Há quem prefira o extermínio de uma espécie de passarinho ou lagarto obscuros à morte de alguns bichanos.

O que prova como “ambientalista” inclui até gente que é contra salvar a diversidade da vida.

Autor deste blog, Fabio Olmos é biólogo e doutor em zoologia. Tem um pendor pela ornitologia e gosto pela relação entre ecologia, economia e antropologia. Seu último livro, sobre ecossistemas brasileiros e conservação, é Espécies e Ecossistemas.

  • Fabio Olmos

    Biólogo, doutor em zoologia, observador de aves e viajante com gosto pela relação entre ecologia, história, economia e antropologia.

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