Análises

O Direito ao Risco

Do tempo das cavernas até a atualidade, evoluímos para um estágio de maiores certezas e menores perigos. Porém este conforto gerou uma burocracia que pode nos impedir de arriscar, aventurar.

André Ilha ·
7 de janeiro de 2014 · 10 anos atrás

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O caminho evolutivo seguido por nossos ancestrais lhes proporcionou uma série de qualidades físicas e mentais que permitiram multiplicar de forma assombrosa o resultado do seu trabalho, e criar ecossistemas artificiais confortáveis e seguros para si e sua prole, eliminando os perigos e as incertezas próprios do mundo primitivo. Salvo por desigualdades sociais, abrigo, alimento, vestuário, saúde e segurança estão de certa forma garantidos, permitindo o relaxamento daquelas qualidades inatas originais que nos levaram a conquistar o mundo.

Relaxar, no entanto, não significa eliminar, e para muitos um chamado selvagem, como aquele do livro imortal de Jack London, convida a fazer uso de tais qualidades, ou de parte delas, não mais em busca de alimento ou abrigo ou enfrentando tigres-de-dentes-de-sabre, mas de forma estilizada, em atividades esportivas ao ar livre genericamente denominadas esportes de aventura. Surfe, escalada em rocha, mergulho, voo livre e outras mais são atividades que colocam seus praticantes em contato direto com a natureza em seu estado mais indomado, e além de gerarem um imenso prazer arrebatador, contribuem para que seus adeptos cultivem outras qualidades relevantes como autocontrole, solidariedade, trabalho em equipe, amor à natureza e tantas outras.

A palavra “aventura”, no entanto, pressupõe incerteza e risco. Não existe “aventura” com resultados garantidos, nem sem alguma dose de risco. Esta afirmação, consagrada nos verbetes dos melhores dicionários, é também espelhada na ótima definição oficial para os esportes de aventura dada pelo Ministério dos Esportes. Emoções fortes, até bem fortes, (quase) sem risco e com desfecho assegurado, consegue-se nos parques de diversões, mas não descendo de caiaque um rio turbulento, pulando de parapente do topo de uma montanha ou explorando uma caverna submersa.

Esta característica dos esportes de aventura, todavia, nem sempre é bem compreendida pela maioria da população, que preza, sobretudo, o conforto e a relativa segurança do mundo moderno. Isto de certa forma se reflete em recorrentes projetos de lei que, apesar de bem intencionados, se aprovados descaracterizariam, ou mesmo eliminariam, aquilo que pretendem regular. Apesar de normalmente voltados para a prática comercial destas atividades – portanto tendo como alvo primário o chamado turismo de aventura –, tais projetos, por redação deficiente, respingam também, e de forma desastrosa, sobre os praticantes amadores.

Tais projetos são estruturados sobre duas linhas bem definidas: a busca obsessiva por certificações e registros formais, numa lucrativa (para alguém) cartorialização que nem sempre apresenta alguma utilidade concreta; e restrições manietantes, inclusive quanto ao livre acesso aos locais de prática destes esportes, muitos deles em parques naturais públicos, que equivaleriam, se aprovados, à sua virtual eliminação, ainda que não explicitamente declarada. O medo de responsabilização civil e mesmo penal no caso da ocorrência de um acidente, sempre maior devido ao viés paternalista da legislação brasileira, potencializa este processo, e hoje o maior risco enfrentado por um escalador ou b.a.s.e. jumper talvez não seja a sua atividade em si, mas sim advogados que incitam alguém a mover processos judiciais se um acidente ocorre. Ou, pior, por praticantes eventuais que, se algo acontece, alegam desconhecer, como se isso fosse possível, que estas atividades são de fato arriscadas, e buscam dividir uma responsabilidade que deveria ser só sua com mais alguém, não raro para tentar obter alguma vantagem financeira.

Como montanhista inveterado, e praticante circunstancial de outros esportes de aventura, pleiteio o direito de atender a esta pulsão ancestral com a plena consciência dos riscos envolvidos, assumindo integralmente as consequências da decisão de praticá-los e não esperando jamais, por coerência, que alguém, indivíduo ou instituição, venha a ser responsabilizado na hipótese de que algo dê errado. Não é pretensão exagerada, nem descabida, e precisamos caminhar para uma jurisprudência que assegure este direito.

Artigo publicado originalmente em “O Globo”, dia 26/12/2013.

 

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  • André Ilha

    Membro fundador do Grupo Ação Ecológica (GAE), ex-diretor de Biodiversidade e Áreas Protegidas do Inea.

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