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O mundo não pertence aos humanos

Durante sua vida, Arne Naess foi um inconformado com a maneira pela qual o planeta é tratado e defendeu a necessidade de uma nova consciência, a da ecologia profunda.

17 de fevereiro de 2009 · 15 anos atrás
  • Suzana Padua

    Doutora em educação ambiental, presidente do IPÊ - Instituto de Pesquisas Ecológicas, fellow da Ashoka, líder Avina e Empreen...

O mundo acaba de perder um ecólogo da mais alta categoria. A linha filosófica de Arne Naess (1912 – 2009), pouco divulgada no Brasil, influenciou pensadores em toda parte e lançou um movimento conhecido como “ecologia profunda”. Norueguês de nascença, Naess sempre se mostrou inconformado com a maneira com a qual o planeta tem sido tratado e defendeu a necessidade de uma nova consciência ecológica. Campos diversos do conhecimento e de atuação precisam se preocupar com valores que transformem a visão do ser humano, de modo que a vida seja apreciada por seu valor intrínseco.

Sua personalidade parece ter sido versátil. Naess ficou conhecido por se embrenhar em longas caminhadas e escaladas, nas quais exercitava mente e corpo. Foi nas altas montanhas da Noruega que desenvolveu sua apreciação às fontes da natureza que suprem as necessidades vitais humanas, percebendo a urgência destas serem valoradas para que passem a ser melhor protegidas. Mesmo nascido em família abastada, deu exemplo de simplicidade e de coerência entre sua linha de pensamento e sua forma de vida. Tornou-se critico de como os países ricos gastam recursos sem se aterem à sustentabilidade.

A distinção entre “ecologia profunda” e o que ele considera “ecologia superficial” vem de uma postura na qual os indivíduos percebem sua existência como parte do mundo natural. A “superficial”, ou aquela que normalmente se emprega sem maiores definições, cuida das conseqüências como poluição, esgotamento de recursos naturais, desaparecimento de espécies, entre outros, enquanto a “profunda” mergulha nas causas. Responsabiliza a primeira visão, dominante, ao primeiro mundo, que persiste na crença de que tecnologia e crescimento econômico indiscriminado são capazes de resolver os impactos causados pelo modelo de desenvolvimento por eles escolhido.

Segundo Naess, a estrutura social precisa ser reformulada radicalmente para que a relação com a natureza possa ser sustentável. Sua postura é anticlassista, pois percebe que os inventos antipoluentes acabam por acirrar as diferenças entre ricos e pobres, uma vez que se tornam disponíveis apenas para aqueles com capacidade de investir nas soluções dos problemas criados. Defende a descentralização e a autonomia local como meios de se reduzir os impactos ambientais e de se aumentar as chances de participação de mais atores sociais nos processos decisórios.

Na medida em que contesta o estilo de vida da sociedade moderna, seu pensamento se torna político. Mesmo assim, a visão difundida a seu respeito foi de que Naess é, eminentemente, um naturalista. Seus críticos não perceberam sua dimensão revolucionária, ou preferiram ignorá-la, resistindo às mudanças e às responsabilidades que deveriam ser assumidas, caso fosse aceita. Outros consideram que a “ecologia profunda” não foi divulgada na proporção de sua importância por ser avançada demais para sua época. Com o agravamento das crises ambientais, essa visão tem agora maiores chances de difusão.

A ecologia profunda, portanto, exige uma mudança paradigmática na sociedade industrial/capitalista, uma vez que esta é essencialmente responsável pela crise ambiental atual. A natureza pode ser a fonte dessa transformação. Naess considera a natureza a melhor metáfora para as mudanças que precisam ocorrer. A complexidade biológica, por exemplo, pode servir de inspiração para compreendermos a complexidade sócio-cultural, com seus aspectos variados, que se complementam em teias sistêmicas e interdependentes.

“Nosso mundo está com problemas por causa do comportamento humano fundamentado em mitos e costumes que estão causando a destruição da natureza e provocando as mudanças climáticas. Podemos agora deduzir a mais simples teoria cientifica da realidade: a estrutura ondulada da matéria no Espaço. Ao compreendermos como nós e tudo o que nos cerca está interconectado com o Espaço, podemos deduzir soluções para os problemas fundamentais do conhecimento humano em Física, Filosofia, Metafísica, Teologia, Educação, Saúde, Evolução e Ecologia, Política e Sociedade. Esta é a profunda nova maneira de pensar que Albert Einstein descreveu, que existimos como estruturas espaciais estendidas do universo. Uma mera ilusão de sermos corpos separados. Isto apenas confirma as intuições de antigos filósofos e místicos.” *

A solidariedade com toda a vida, para Naess, parte de uma intuição e não de uma teoria filosófica. Todas as espécies têm o mesmo direito à vida e a se desenvolverem em sua plenitude. Esse princípio se contrasta com o que está ocorrendo, pois a humanidade tem relação direta com a matança e a destruição de outros organismos, ecossistemas, montanhas, rios e a Terra em si.

O posicionamento de Arne Naess é antiantropocêntrico. Oferece uma oportunidade à sociedade de perceber sua responsabilidade pela destruição de todos os elementos da natureza. Sua proposta pressupõe respeito à vida em geral e uma relação espiritual com a Terra.

Os princípios básicos da ecologia profunda são:

  1. O bem-estar e o potencial de desabrochar do ser humano e da vida não-humana tem valor em si mesmo (valor intrínseco ou valor inerente). Esses valores independem do uso do mundo não-humano pela humanidade;
  2. A riqueza e a diversidade da vida contribuem para a realização desses valores, além de representarem valores por si só;
  3. Os seres humanos não têm o direito de reduzir a riqueza e a diversidade do planeta, exceto para suprir suas necessidades vitais;
  4. O desabrochar da vida humana e das culturas têm relação direta com um decréscimo substancial da população humana. O desabrochar de outras formas de vida depende desse decréscimo;
  5. Na atualidade, a interferência humana nas demais formas de vida ocorre em demasia, e esta situação tem piorado rapidamente;
  6. As políticas precisam ser mudadas de acordo com essas necessidades, pois influenciam a economia, a tecnologia e estruturas ideológicas. O resultado precisa ser profundamente diferente daquele de agora;
  7. A mudança ideológica é, em essência, apreciar a qualidade da vida (priorizando situações com valores inerentes), ao invés de incentivar o anseio de se aumentar o nível de vida;
  8. Aqueles que se identificam com esses pontos de vista têm a obrigação direta ou indireta de tentar implementar as mudanças necessárias.

Em essência, a ecologia profunda formula perguntas profundas. O adjetivo (profundo) estressa o porquê e o como, enquanto a maioria não se atém a questionamentos dessa natureza. A ecologia, como ciência, não investiga qual a sociedade ideal para se manter um ecossistema, por exemplo. Esse seria um campo da política, da filosofia ou da ética. Enquanto os ecologistas mantiverem visões estreitas, Naess acredita que não formularão perguntas essenciais à manutenção da vida na Terra. O que defende é uma ampliação significativa de visão no que chama de “ecosofia”. Sofia vem do grego e refere-se à sabedoria presente na ética, nas normas, nas regras e nas práticas. Ecosofia ou ecologia profunda representa um salto da ciência à sabedoria.

É este o passo que Naess almejava. Infelizmente, este visionário morreu em janeiro de 2009, com mais de 90 anos, mas podia ter durado muito mais. Faz parte daqueles poucos que podiam ficar eternamente entre nós. Que suas idéias permaneçam…

* http://www.spaceandmotion.com/deep-ecology-movement-arne-naess.htm

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