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Falando Sério

Mudança climática e energia renovável andam freqüentando altas rodas globais. O Brasil está bem no quadro por causa do álcool. Mas é preciso limpar nosso etanol.

28 de abril de 2006 · 18 anos atrás
  • Sérgio Abranches

    Mestre em Sociologia pela UnB e PhD em Ciência Política pela Universidade de Cornell

Mudança climática e energia renovável andam freqüentando altas rodas globais. Foram um dos temas da reunião anual do FMI e do Banco Mundial em Washington, na semana passada.

A direção do Banco Mundial anunciou que vai estudar uma nova modalidade de financiamento para energias não renováveis para os países em desenvolvimento. A idéia é incentivá-los a satisfazer as necessidades energéticas criadas pela expansão de suas economias sem repetir o modelo centrado nos combustíveis fósseis dos países desenvolvidos. É aquele negócio do “não façam o que eu fiz”. Mas, de qualquer forma, coincide com o interesse geral. Só não vale é eles usarem o aumento do consumo de energias renováveis e redução das emissões de gases estufa no mundo em desenvolvimento para persistir no velho modelo fóssil.

Clima é coisa séria

De qualquer forma, o mundo está começando a falar sério sobre a relação entre o consumo de energia e a mudança climática. Já não há dúvida razoável, no meio científico, de que estamos vivendo um estágio preocupante de aquecimento global e que pelo menos a aceleração da mudança climática tem a ver com o aumento dos gases estufa na atmosfera, resultantes do nosso consumo de energia. Tudo indica que o ciclo natural de esquentamento está sendo alterado para pior pela pegada humana. Isso explica porque na agenda de uma reunião como a do FMI e do Banco Mundial, ícones do neoliberalismo financista, a questão climática aparece no topo das preocupações, juntamente com os problemas de governança e corrupção.

Falhas de governança e corrupção nos chamados mercados emergentes constituem importantes fatores de risco para os investidores dos países maduros. É mais fácil entender que visitem, com prioridade, a agenda dessas agências. A mudança climática é um tema de natureza distinta. Não representa risco específico ao investimento. Pode se tornar uma oportunidade. Mas, certamente, não é o incentivo econômico que faz o presidente do Banco Mundial Paul Wolfowitz anunciar que o Comitê de Desenvolvimento do banco vai estudar “opções para aumentar os investimentos para ajudar os países em desenvolvimento a satisfazer suas necessidades de energia e ao mesmo tempo deixar uma pegada ambiental menor”. A temporada de tempestades tropicais, com furacões, tufões e tornados, promete ser devastadora esse ano. A do ano passado, além das vidas perdidas e da perda de patrimônio, produziu efeitos econômicos duradouros. A produção de petróleo do EUA ainda não recuperou os níveis pré-Katrina. O seguro industrial e patrimonial nas regiões costeiras de alta atividade de furacões está caminhando para patamares insuportáveis de preços. Na Austrália, o ciclone tropical Monica, atingiu nível 5 ao chegar às águas aquecidas do Golfo de Carpentaria e por pouco não devastou a cidade de Darwin.

Nos países desenvolvidos, ou maduros, há consenso social sobre a necessidade de reduzir a emissão de gases estufa. Uma série de novas iniciativas surgiu no final do ano passado e nos primeiros meses deste ano, resultantes de crescente pressão de lideranças intelectuais, religiosas e empresariais. Os dirigentes mais recalcitrantes, como o presidente Bush, ou o governador Schwarzenegger, acabaram tendo que se curvar à pressão da sociedade. É fato que Bush sempre encontra um jeito de piorar as coisas. Mas Bush é passageiro e as pressões por mais ação na prevenção da mudança climática permanentes e de intensidade crescente, como os furacões.

Brasil não é exemplo

O Brasil tem sido muito citado nessas discussões e na mídia internacional, por causa do uso mais extensivo do álcool na nossa matriz de combustíveis automotores e das possibilidades de produção de outros biocombustíveis, em particular o biodiesel. Mas é certo que não somos bom exemplo nesse campo.

O ministro da Fazenda, Guido Mantega, disse em Washington que o país está pronto para aumentar em até 20 vezes a produção de cana-de-açúcar para produzir álcool para exportação. Para Mantega, a produção de cana pode ocupar 12% do território nacional. Ofereceu, também, como contribuição nossa, a tecnologia do carro flex, que usa gasolina e álcool indistintamente.

O biocombustível é, com certeza, uma alternativa viável ao petróleo. Parte importante da matriz energética do Século XXI passará por ele. Mas, para ser uma alternativa real é preciso que toda a sua produção seja ecologicamente correta. Não pode causar danos nem às pessoas, nem ao ambiente. E este não é, definitivamente, o caso do álcool de cana no Brasil.

Estamos no início da temporada anual da queima da cana para o corte no interior de São Paulo. Em breve, uma nuvem negra de fumaça cheia de gases estufa, principalmente monóxido de carbono (CO), metano (CH4), óxidos de nitrogênio (NOx) e óxido nitroso (N2O), cobrirá uma grande extensão de áreas rurais e urbanas do estado. As internações por problemas respiratórios aumentarão em 20% ou mais.

Matéria publicada pelo jornal O Estado de São Paulo conta que há estudos científicos mostrando que a queima da cana é um caso grave de saúde pública. Essa nuvem de poluição suja a energia do álcool com as emissões de gases estufa e mancha o prontuário da população da região e dos trabalhadores no cultivo da cana, com número muito acima da média de casos de bronquite crônica, asma e enfisema. Um estudo da bióloga Rosa Maria do Vale Bosso, da UNESP, encontrou compostos cancerígenos na urina de cortadores de cana, segundo essa reportagem. E os dados mostram que essa presença aumenta nos momentos da queimada.

Portanto, errou o ministro Mantega, quando disse que estamos prontos para exportar e para ensinar a produzir álcool. Não estamos não. Temos a capacidade econômica para produzir o biocombustível. Mas não somos nenhum exemplo de matriz limpa de energia. Ainda temos a maior parte do dever de casa para fazer. Não estamos prontos para ensinar nada de bom ainda.

Queima condena álcool

Hoje o principal problema ambiental da produção de álcool é a queima da cana para a colheita. As queimadas são ruins para todo mundo, para quem colhe a cana, para quem mora na região canavieira e para o clima do planeta. Elas têm que ser erradicadas para que o álcool seja uma alternativa social e ambientalmente superior aos combustíveis fósseis.

A erradicação das queimadas é lei no estado de São Paulo. Mas, para ser aprovada, precisou de um acordo que estabelece um cronograma relativamente longo para sua implementação. E não há garantia de que ele seja integralmente realizado, porque há algumas dificuldades técnicas e políticas ainda não resolvidas. Uma delas é o que fazer nas áreas de maior declividade, onde a mecanização não é possível. A outra é o álibi do desemprego, sempre usado para manter o status quo, que é social e ambientalmente intolerável.

“Se há uma lei que está sendo cumprida, é a que manda reduzir gradualmente a queima da cana em São Paulo”, me disse o secretário de Meio Ambiente do estado, o físico José Goldenberg. Goldenberg é um dos cientistas brasileiros mais ativos na discussão sobre a mudança climática. Sabe muito bem o dano causado pelos gases estufa lançados pela queima da cana. Conhece as pesquisas que mostram os riscos dessa prática para a saúde coletiva e individual. “Tem que acabar”, ele afirma. “Faz mal à saúde da população e dos trabalhadores”. Ele se diz otimista, porque a lei está sendo cumprida à risca. “Se não, a gente manda os fiscais, multa, faz cumprir”, diz.

No intenso debate que levou ao acordo para aprovação da lei, ele conta que não esteve em discussão a necessidade de acabar com as queimadas. O que se discutiu foi o tempo necessário para fazer isso. O acordo prevê a redução progressiva, que começou ano passado e vai até 2011. Em 2005, pelo menos 20% da área plantada já deveriam estar mecanizados. Segundo Goldenberg a meta foi cumprida e até ligeiramente superada. Esse percentual vai subindo, anualmente, até 2011, quando toda a área plana deverá estar mecanizada.

Goldenberg reconhece que o acordo deixou a todos um pouco insatisfeitos. Os ambientalistas reclamam que é tempo demais. Os produtores acham que é tempo de menos. O Secretário preferia que fosse mais rápido. Mas reconhece que é um processo difícil e acha que não dá para ser muito diferente. São mais de 30 mil produtores que vendem para as usinas. Nas áreas mais inclinadas, que devem corresponder a perto de 30% – 40% do total, não há como mecanizar, porque as máquinas existentes não trabalham em plano inclinado. “Mas vamos chegar lá”, diz Goldenberg. Ele informa que a universidade de Campinas está estudando uma máquina que pode trabalhar com um pouco mais de declividade. Mas é certo que para erradicar a queima integralmente será necessário proibir o plantio naquelas áreas onde o corte não pode ser mecanizado. Problemaço difícil de resolver.

O álcool brasileiro está virando exemplo de adoção do biocombustível em larga escala. A demanda vai aumentar e com ela o incentivo para ampliar a produção. É fundamental que essa expansão seja feita com um novo modelo, que não use a queimada para o corte da cana. O álcool precisa ser limpo, para ser boa energia alternativa.

Trabalho ruim não é emprego

Um dos principais álibis usados por quem não quer acabar com a queima é o social. É a velha lengalenga do tudo pelo social. O que dizem é que a mecanização vai desempregar milhares de pessoas que vivem do corte sazonal da cana. O drama dessas pessoas, dos bóias-frias e similares, é conhecido e tem que acabar junto com a queima da cana. Trabalho danoso à saúde, que desrespeita os direitos das pessoas, não é emprego digno do nome e não pode fazer parte de nenhum processo de desenvolvimento. É a mesma coisa que Marx e Engels diziam a respeito dos mineiros de carvão na Inglaterra da revolução industrial.

Esse emprego de péssima qualidade tem quer ser eliminado da economia brasileira, juntamente com os péssimos hábitos empresariais, que vêm de longe e não podem mais ir muito longe, como o trabalho degradante, o trabalho escravo, as queimadas, o despejo de resíduos tóxicos ou poluentes na natureza.

Emprego de baixa qualidade como esse é marca de subdesenvolvimento. O que o governo deve fazer é criar estímulos à reciclagem desses trabalhadores, para que possam obter trabalho de qualidade em outras atividades, à medida que a queima vai sendo erradicada. Até nisso o cronograma mais dilatado ajuda. É perfeitamente previsível o número de trabalhadores que serão deslocados pela mecanização, ano a ano. O melhor momento para focalizar ações de “reemprego” para esses trabalhadores é agora, de economia em expansão e ampliação do emprego formal.

Ponto final

O avanço na discussão da mudança climática pode ter conseqüências positivas que transcendem a questão ambiental. No caso brasileiro, por exemplo, implica em civilizar a produção do biocombustível, na sua fase ainda agrícola. No caso da cana, em algumas áreas, vive-se ainda em estágio de barbárie no que diz respeito às condições de trabalho. É preciso que se ponha um ponto final em certas práticas no Brasil. Uma delas é a queimada, de qualquer tipo. Outra, é o trabalho degradante. Em qualquer atividade.

O outro benefício óbvio é que será preciso mudar hábitos de vida e consumo, para melhor. Um dos mitos que se criou em relação à questão ambiental, em grande parte por causa de um certo tipo de ambientalista, é que para evitar a catástrofe ecológica é preciso parar o progresso e voltar a formas mais primitivas de vida. Balela.

Para enfrentar a questão ecológica é preciso adotar hábitos melhores e mais saudáveis de vida e tecnologias ainda mais avançadas do que temos usado até hoje. No caso da energia e dos transportes, isso é evidente. O carro limpo, predominantemente elétrico, é tecnicamente mais avançado do que o carro a gasolina e a diesel. E como são modelos novos, saem das fábricas com ainda mais tecnologia embarcada.

O uso de novas energias, como o hidrogênio e a própria biomassa, exigirá novas tecnologias e novas formas de produção. Não se trata mais, de trocar uma poluição pela outra, como se faz com a cana de açúcar no Brasil, hoje. De que adianta contribuir para reduzir consumo de derivados de petróleo e das emissões lá na ponta, no veículo, quando na produção se produz tanta ou mais emissão de gases estufa? Para fazer a mudança a sério é preciso avançar técnica, ecológica e socialmente.

Não estamos falando mais de medidas tópicas e localizadas. Estamos falando de um estágio mais avançado de desenvolvimento da produção e do consumo.

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