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Um caso exemplar

Conflito Uruguai-Argentina sobre plantas de celulose é um exemplo de má governança política, corporativa e de falta de boas instituições bi e multilaterais.

20 de abril de 2006 · 18 anos atrás
  • Sérgio Abranches

    Mestre em Sociologia pela UnB e PhD em Ciência Política pela Universidade de Cornell

Argentina e Uruguai estão em conflito por causa de duas fábricas de papel e celulose em construção nas margens do rio Uruguai, uma de capital espanhol e outra, finlandês. A agência ambiental uruguaia considerou o relatório de impacto ambiental das empresas insuficiente. O governo argentino quer uma análise mais profunda de impacto ambiental. Reclama que o governo uruguaio não levou os projetos à aprovação da Comissão de Administração do Rio Uruguai, órgão binacional de gestão compartilhada das águas do rio. Uma reunião entre os presidentes Néstor Kirchner, da Argentina, e Tabaré Vásquez, do Uruguai, que deveria dar solução ao tema, fracassou.

O governo argentino diz que o chanceler uruguaio declarou fracassado o intento de reunião dos presidentes, sem razão. Eles já haviam concordado com o memorando técnico que seria aprovado no encontro e que abrigava, de maneira satisfatória aos olhos da Casa Rosada, as exigências argentinas. O chanceler argentino diz que o encontro melou pelo lado uruguaio porque o governo daquele país não consegue lidar com a intransigência da empresa finlandesa, Botnia, que se recusa a interromper as obras até que termine a análise de impacto ambiental e se nega a dar informações sobre o processo de produção que usará, dado indispensável à auditoria ambiental.

O problema é que os dois projetos correspondem ao maior investimento industrial da história do Uruguai. O presidente Kirchner acusou a Finlândia, em evento na Casa Rosada, de omissão deliberada. Por causa do conflito a presidente da Finlândia, Tarja Halonen, que estava de malas prontas para visitar os dois países na semana que vem, à frente de uma delegação de negócios, desistiu de ir. Mandou a sua ministra do Comércio Exterior em seu lugar. Consta que o investimento da Botnia na fábrica de papel e celulose no Uruguai é o maior da Finlândia no exterior.

Um relatório do Ombudsman do Banco Mundial já havia dado razão aos opositores dos projetos, no ano passado. O informe dizia que as avaliações de impacto ambiental não haviam fornecido suficiente evidência de que os impactos potenciais dos projetos, ambientais, econômicos e sociais tivessem sido adequadamente considerados. Também não há evidência de audiência dos que se sentem potencialmente ameaçados pelos projetos, no lado argentino, continua. E conclui que as avaliações de impacto ambiental não levam em consideração os impactos cumulativos mais amplos que vão além das emissões ambientais. Em decorrência, o Banco Mundial anunciou, na semana passada, o adiamento da aprovação do financiamento para as duas fábricas, até que sejam satisfeitas todas as dúvidas em relação aos relatórios de impacto ambiental.

Esse adiamento já teve conseqüências. O banco privado europeu, ING Bank, que liderava o consórcio para obtenção do crédito, abandonou os projetos. A decisão foi comemorada pelo governo argentino. A Agência Multilateral de Garantia de Investimento, MIGA, que está estudando se concede um seguro para o risco político do projeto, também resolveu pensar melhor. A soma do risco político, com o risco ambiental, pode inviabilizar o seguro.

Ao declarar o fracasso da cúpula entre os dois presidentes, o chanceler uruguaio pediu uma reunião urgente do Conselho do Mercosul. O problema é que o Mercosul está, no momento, sob a presidência da Argentina. O ministro das Relações Exteriores da Argentina, diz que a questão deve ser resolvida no âmbito bilateral ou na Corte Internacional de Haya, não no Mercosul. Promete ir a Haya com um pedido de sustação liminar das obras e uma reclamação de que o Uruguai teria ferido três vezes o Tratado de Administração Compartilhada do Rio Uruguai, assinado com a Argentina, e burlado as leis ambientais mundiais, como a Convenção do Clima. Foi essa a razão que levou ao parlamento de seu país para justificar o recurso à Corte de Haya. Pelo tratado, as decisões dessa corte são vinculantes, têm que ser cumpridas pelas partes.

O jornal argentino Clarín diz que o presidente Lula está tentando ajudar a Argentina no conflito com o Uruguai. Ele teria pedido discretamente à presidente finlandesa Tarja Halonen, quando esteve aqui, no último dia 6, para intervir junto à Botnia, empresa proprietária de uma das plantas uruguaias, para que atendesse às exigências ambientais do governo argentino. O assessor internacional do presidente brasileiro, Marco Aurélio Garcia, disse que o Brasil espera que a questão não chegue até Haya, que se resolva no plano bilateral ou “ao menos no âmbito do Mercosul” e que o seu governo está pronto para ajudar no que for possível. Não há registro de manifestação do chanceler Celso Amorim.

É um caso exemplar em que todas as peças estão fora do lugar. Primeiro, as duas empresas européias estão com uma atitude na América do Sul que seguramente não poderiam ter em seus países. Os dois projetos certamente não seriam aprovados por suas agências ambientais e jamais passariam pelo crivo da Agência Ambiental Européia. Ao invés de trazerem juntos com seus investimentos diretos a melhor prática corporativa, trazem a pior: falta de responsabilidade ambiental e social; falta de transparência; transgressão a regras domésticas e bilaterais. Nenhuma das duas consultou, como deveria, a Comissão de Administração do Rio Uruguai.

Segundo, o governo uruguaio, que não podia desconsiderar o tratado do Rio Uruguai, nem confrontar o governo argentino em um tema que sua própria agência ambiental lhe tira razão. Há, no momento, duas instâncias oficiais dando razão aos argentinos, quando dizem que as análises de impacto ambiental são insuficientes para aprovar os projetos: a agência ambiental uruguaia e o Banco Mundial. Também não faz sentido recorrer à Corte de Haya porque há piqueteiros argentinos fechando a ponte internacional San Martín, em protesto contra os riscos que corre a cidade argentina de Gualeguaychu. Além disso, ao que tudo indica, o Uruguai só cancelou o encontro dos presidentes porque não foi capaz de impor à Botnia a interrupção das obras por 90 dias, nem obter dela as informações necessárias a uma adequada avaliação de impacto ambiental.

Terceiro, o governo argentino também está agindo mal. Não faz sentido usar a presidência do Mercosul para recusar a interveniência de seu Conselho em um conflito do qual é parte. Tampouco faz sentido elidir o Mercosul, dizendo se tratar de uma questão bilateral e recorrer diretamente à Corte de Haya, que deveria ser a última instância. O Mercosul é composto por quatro países – Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai – se dois estão em conflito, é metade da organização. Ela deve ter uma voz nesse contencioso, principalmente, se for para resolver o conflito, arbitrando em favor da obediência das regras nacionais, bilaterais e multilaterais.

De que é esse caso exemplar? De má governança política, bilateral, multilateral e corporativa. O exemplo de má governança doméstica vem do Uruguai. O caso mostra a incapacidade regulatória do governo local, incapaz de impor regras de boa conduta às empresas que pretendem investir lá.

O exemplo de desgovernança bilateral vem da Comissão Administradora do Rio Uruguai, desrespeitada pelas duas empresas e pelo Uruguai. Mostra que o continente ainda não aprendeu a construir instituições bilaterais que funcionem e tenham credibilidade e autoridade.

A deficiência de mecanismos de governança multilateral se refere ao Mercosul. Ele já deveria ter institucionalizado instâncias setoriais para áreas críticas que afetam investimentos e atividades econômicas nesses países. É claro que o Mercosul já devia ter uma instância ambiental ativa, com poder e autoridade para desenhar regras ambientais uniformes para investimentos em toda a sua área de abrangência. Se essas regras existissem e fossem cumpridas, esse conflito não existiria ou seria resolvido em âmbito administrativo, sem gerar incidentes internacionais ou elevar o risco político da região.

Finalmente, o caso é um exemplo de má governança corporativa. Empresas sérias não têm um comportamento na Europa, onde as regras são mais desenvolvidas, civilizadas e rigidamente aplicadas e se dedicam à lambança, à exploração e ao descumprimento das leis em outros países. Empresas responsáveis se comportam bem, mesmo diante de instituições mais frágeis de governança regulatória, econômica e ambiental.

Ou têm razão os críticos mais radicais, que acusam Finlândia, esse país tão arrumadinho em tudo, e Espanha, que está ficando cada vez mais arrumadinha em tudo, de trazer para a periferia, na velha mentalidade colonialista, as más práticas que já não podem manter em casa?

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