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Conhecer para conservar: um pouco de história (parte 1)

Relembrar o passado mostra que o conceito de desfrutar da natureza em vez de temê-la nasceu com o urbanismo e derivou nos parques nacionais.

11 de março de 2014 · 10 anos atrás

A Floresta da Tijuca, criada em 1861, é parte da tendência de trazer áreas protegidas para perto da cidade e abri-las aos cidadãos. Foto:
A Floresta da Tijuca, criada em 1861, é parte da tendência de trazer áreas protegidas para perto da cidade e abri-las aos cidadãos. Foto:

Em praticamente toda da história da humanidade, com exceção das últimas décadas, a natureza foi sempre vista como um adversário a ser temido, domado e, em última análise, suprimido. Das suas entranhas saíam os predadores e os grandes males que ameaçavam a vida. Civilizar, nesse sentido, durante milênios significou tornar o Homem uma entidade separada e superior à natureza. Ou seja, o ser humano civilizado é superior ao ser humano selvagem. Desse período ainda nos restam muitos traços que marcam o inconsciente coletivo da humanidade. As histórias infantis contam parábolas em que os vilões são o lobo mau, ou discorrem sobre florestas tenebrosas aonde Joãozinho e Maria são levados para se perderem. Por outro lado, os heróis dessas mesmas histórias são amiúde aqueles que mantêm a natureza sob controle: caçadores e lenhadores. Na língua portuguesa, em pleno século XXI, ainda carregamos clara influência do tempo em que a natureza era associada a perigos, medos e ansiedades. Expressões como “estar no mato sem cachorro”, “forçar a barra”, “é preciso matar um leão por dia” e “a coisa ficou preta” que evoca o medo ancestral da escuridão e da noite, entre outras, ainda são comuns nas conversas cotidianas.

Esse medo ancestral só começará a ser questionado pela sociedade ocidental em meados do Século XVIII. A reconciliação do Homem com a natureza é um produto que só começou a ser desenvolvido a partir da Revolução Industrial. Para funcionar, as fábricas europeias precisavam de grandes contingentes de mão de obra, o que, na Inglaterra, provocou uma política pública de fechamento dos campos públicos onde antes era permitido o cultivo comunal. Essa política, conhecida como “enclosure”, causou fome nas áreas rurais e forçou a migração para as cidades que, por sua vez, cresceram em ritmos muito rápidos, sem planejamento nem medidas que garantissem um mínimo de salubridade, tais como o tratamento do esgoto, o estabelecimento de redes de água potável, a recolha do lixo e a normatização de um código urbano que assegurasse a devida aeração dos espaços edificados e a destinação de alguns lotes de terra para a recreação.

O resultado não demorou a se fazer sentir na forma de epidemias de cólera, sarampo, tifo e outras doenças fatais. Por outro lado, a poluição gerada pelas indústrias também cobrava seu preço, sendo a principal causadora do aumento exponencial das mortes por tuberculose. As classes mais abastadas protegeram-se indo residir em casas de campo nas cercanias das cidades grandes de que são exemplos emblemáticos Sintra em Lisboa, Fontainebleau e Versailles em Paris e, mais tarde, a Floresta da Tijuca no Rio de Janeiro.

Mas era necessário também garantir a saúde dos trabalhadores e das elites enquanto estivessem forçados a permanecer nas cidades. Na Alemanha, chegou a haver um movimento que pregava o fim das aglomerações urbanas e a volta aos campos. Já os pensadores britânicos e franceses encontraram uma saída mais pragmática: percorrer o caminho inverso e trazer um pouco da natureza para as cidades.

Proteger na cidade

Ao longo dos próximos cem anos, o modelo inglês foi exportado e melhorado. O Bois de Boulogne, em Paris, foi ideia de Napoleão III, inspirado nos parques que conheceu em Londres

Foi assim que os precursores do urbanismo moderno começaram a separar terrenos baldios para a criação de parques e jardins. Os pioneiros do modelo são o Hyde Park e os Kensington Gardens em Londres, que juntos somam 253 hectares. Embora os parques existissem há mais tempo, a partir de 1733 passaram a ser públicos e a ter uma aparência menos “civilizada” e mais próxima à natureza em seu estado silvestre. Nessa data o paisagista Charles Bridgeman terminou o primeiro projeto de renaturalização dos referidos parques.

Não tardou para que o modelo fosse replicado nas principais cidades do então Reino Unido, como Edinburgo, Manchester, Liverpool e Dublin. Em 1747, o Phoenix Park, na atual capital da Irlanda, ganhou o seu primeiro paisagismo, cobrindo uma área de 707 hectares. O projeto do Phoenix foi um passo além no esforço de recriar a natureza nas cidades, pois ademais da flora preocupou-se com a fauna. Até hoje é possível observar ali os descendentes dos gamos soltos em suas pastagens pelo Duque de Ormonde.

Phoenix Park, em Dublin, foi criado em 1747 com mais de 700 hectares. Foto:
Phoenix Park, em Dublin, foi criado em 1747 com mais de 700 hectares. Foto:

Ao longo dos próximos cem anos, o modelo inglês foi exportado e melhorado. O Bois de Boulogne, em Paris, foi ideia de Napoleão III, inspirado nos parques que conheceu em Londres durante o período em que esteve exilado, antes de assumir o Governo da França. A seu pedido, a partir de 1852, o Prefeito parisiense Haussmann coordenou sua implementação, simultaneamente à do Bois de Vincennes. O próprio Napoleão III não se contentou em ter apenas espaços abertos e gramados. Queria algo mais próximo da natureza silvestre. Insistiu que ambos os parques tivessem um aspecto natural. Para tanto, entre outras medidas, determinou que rios fossem desviados de modo a fluir em meio aos novos parques.

Portugal adere às novas ideias em 1868, quando é decidida a arborização de quase mil hectares da Serra do Monsanto, em Lisboa, pensada para ser uma grande área de recreação para os moradores da capital lusitana. O projeto somente sairia do papel em 1929. Entre uma e outra data, Eça de Queirós escreveu em 1892 “A Cidade e as Serras” que expressa, em ritmo de romance, o pensamento tão em voga, que considerava insalubres as áreas urbanas. No livro, o romancista defende os benefícios físicos e morais derivados de uma vida em contato com a natureza.

No novo mundo, os parques europeus, sobretudo os de Londres, inspiraram a criação do Central Park em Nova Iorque, inaugurado em 1853, em um terreno de 341 hectares no centro da ilha de Manhattan. O Central Park foi o primeiro parque norte-americano planejado por um arquiteto paisagista, Frederick Law Olmestead, que o concebeu para que seus usuários, ainda que citadinos, se sentissem à vontade em meio à natureza.

Na Austrália, a implementação do Centennial Park em 220 hectares de terra devoluta na cidade de Sydney começou em 1887. Seu paisagismo seguiu o modelo da metrópole colonial. Buscava combinar jardins com florestas recriadas.

No Brasil, o Campo de Santana, na então capital do Império, também seguiu o modelo europeu. Em janeiro de 1873, foi assinado um contrato entre o Governo e o paisagista francês Auguste Glaziou. Em fevereiro do mesmo ano, iniciaram-se as obras de sua implementação. Sete anos depois, em 7 de setembro de 1880, o Imperador pessoalmente inaugurou o Parque do Campo de Santana. Tal como nos parques que lhe serviram de exemplo, havia canais imitando rios, pequenos lagos, cascatas, árvores frondosas, bosques, trilhas e grutas.

No novo mundo, entretanto, a volta aos campos ganharia tons diferentes daqueles adotados na Europa. Evoluiria além de uma simples volta ao ambiente rural, campesino, como aquela preconizada por Eça de Queirós em a “Cidade e as Serras”. Seus ideais estavam mais ligados a uma natureza selvagem, intocada, sem cultivos e sem rebanhos. Uma natureza rara na Europa, mas ainda comum na África, cujas manadas de animais silvestres cobriam as savanas, na América do Norte fascinada pelos relatos idílicos da Marcha para o Oeste, que descortinou ao país vastas pradarias cobertas de bisões e lobos, e no Brasil cujo território ainda era majoritariamente coberto por frondosas florestas tropicais. Seu ideal não era a volta aos campos, mas o retorno à natureza em sua acepção silvestre, tão bem expressa por Bernardin de Saint Pierre em “Paulo e Virgínia” e aludida por José de Alencar em “Iracema”.

O Campo de Santana, no Rio de Janeiro, imita o modelo de parques urbanos europeus. Foi inaugurado em 1880 pelo imperador D. Pedro II. Foto:
O Campo de Santana, no Rio de Janeiro, imita o modelo de parques urbanos europeus. Foi inaugurado em 1880 pelo imperador D. Pedro II. Foto:

Nas Américas o movimento foi além das cidades. Não se tratava apenas de recriar os campos em meio às ruas e prédios, mas urgia também impedir que esses mesmos campos tomassem o lugar de sítios naturais de grande beleza cênica e vasto potencial de recreação. Em meados do século XIX, as ferrovias estadunidenses levavam o progresso em direção ao Oceano Pacífico e, com ele, turbas de migrantes sedentos por solos produtivos. Em cada nova estação de trem, as terras eram logo parceladas e colocadas a serviço da agropecuária.

Parques Nacionais

Os Parques Nacionais são os filhos ideológicos dos Parques urbanos (…) são áreas naturais protegidas com o intuito básico de salvaguardar intocada sua beleza paisagística e seus atributos naturais como locais de recreação abertos a todos os cidadãos.”

Nesse momento histórico começou a luta pela criação dos primeiros Parques Nacionais como os conhecemos atualmente. Yellowstone, que foi legalmente constituído em 1872, é reconhecido até hoje como o primeiro Parque Nacional do mundo. É possível, todavia, argumentar que antes de Yellowstone já havia outras áreas protegidas. No Brasil, a Floresta da Tijuca é de 1861 mas, mesmo na Europa, já havia áreas protegidas antes da criação de Yellowstone. A Mata Nacional do Buçaco, em Portugal, por exemplo, é ainda mais antiga. Em 1643, o Papa Urbano VIII decretou a excomunhão sumária de qualquer cristão flagrado impactando a Floresta do Buçaco.

A diferença entre Yellowstone e os outros exemplos que lhe são anteriores em criação está no nome e o nome diz tudo. Os Parques Nacionais são os filhos ideológicos dos Parques urbanos. Enquanto outras categorias de unidades de conservação visam a proteger recursos naturais como água, madeira, plantas medicinais e espécies ameaçadas de extinção, os Parques Nacionais são áreas naturais protegidas com o intuito básico de salvaguardar intocada sua beleza paisagística e seus atributos naturais como locais de recreação abertos a todos os cidadãos. Seu principal ideólogo, John Muir era um montanhista inveterado.

Apaixonado pela natureza, este escocês de nascimento e californiano por adoção acreditava ser um direito atávico de todos os seres humanos poderem reconectar-se com a natureza e, assim, exercitarem seu lado animal. Muir nasceu em 1838, ainda criança emigrou para os Estados Unidos, onde entrou em contato com a natureza prístina das Montanhas Rochosas. Fascinado pelos vales e picos do novo continente, brigou sem descanso por sua preservação. Foi um dos pais do “conhecer para conservar”. Seu raciocínio era de que se as pessoas tivessem contato com as belezas naturais as defenderiam contra os avanços do progresso desenfreado. Em 1892, fundou um dos primeiros clubes de montanhismo do planeta, o Sierra Club, com o objetivo de conduzir formadores de opinião em excursões pela montanha e, dessa forma, transformá-los em conservacionistas. Em 1903, Muir levou sua teoria ao extremo. Convidou – e o convite foi aceito – o então presidente dos Estados Unidos, Theodore Roosevelt, para fazer uma trilha de quatro dias pelo vale de Yosemite. Ao final da caminhada, Roosevelt estava convertido em conservacionista! Ao voltar para Washington, assinou um Decreto tornando a região que acabara de visitar em um Parque protegido pelo Governo federal americano.

John Muir, principal ideólogo dos Parques Nacionais americanos e um montanhista inveterado. Foto:
John Muir, principal ideólogo dos Parques Nacionais americanos e um montanhista inveterado. Foto:
O Royal National Park, na Austrália, o segundo mais antigo do mundo, criado em 1879, também teve como objetivo precípuo oferecer opções de lazer e de reconexão com a natureza aos habitantes de Sydney, cidade que lhe é adjacente. Mesmo no Brasil, as primeiras unidades de conservação buscavam aliar a proteção dos recursos naturais à visitação. Sabia-se desde o século XIX que é muito difícil evitar o desmatamento sem apoio popular. A própria Floresta da Tijuca, cujo reflorestamento visava proteger os mananciais que abasteciam a então capital do Brasil, usou essa estratégia. Naquela época, o Rio de Janeiro era uma cidade assolada por doenças tropicais como a malária e o cólera. No verão a elite buscava o clima ameno do Alto da Boa Vista, cujas fazendas de café haviam sido retalhadas para dar lugar a quintas e sítios pertencentes às elites abastadas. Para replantar as margens dos rios Tijuca, Comprido, Paineiras e Carioca foi necessário desapropriar terras de gente influente e poderosa. O mentor da iniciativa, Visconde do Bom Retiro, sabia que tão logo o processo de reflorestamento terminasse, recomeçaria a pressão imobiliária no Alto da Boa Vista. Por isso instruiu o Barão d´Escragnolle, segundo administrador da Floresta, a embelezá-la, abrir trilhas, desbastar mirantes, pavimentar caminhos. Era imperativo atrair visitantes, promover sua interação com a natureza. Formar um grupo de apoio à Floresta da Tijuca entre os habitantes da Corte.

O Barão seguiu as ordens à risca. Plantou novas espécies que escolheu pelo critério único da beleza, desenhou trilhas de modo a aproveitar as melhores paisagens, semeou bambus onde o sol batia à tarde, de modo a abrir sua luz em cativantes caleidoscópios, batizou cachoeiras e caminhos com nomes de personagens de Bernardin de Saint Pierre, romancista francês contemporâneo que pregava a pureza dos ambientes naturais em oposição à insalubridade das metrópoles.

A intelectualidade do Império correspondeu ao estímulo. José de Alencar não tardou a ambientar a novela “Sonhos d´Ouro” na Floresta da Tijuca; Bentinho e Capitu, o casal protagonista do “Dom Casmurro” de Machado de Assis, vão passar a lua de mel na Floresta e é em seu entorno imediato que vive a mãe da esposa do protagonista do “Diário de Uma Sogra”, de Aluísio de Azevedo.

O exemplo da Floresta da Tijuca ajudou a formar um grupo de pensadores em favor da conservação. No início do Século XX, o “conhecer para conservar” é o principal motor da preservação ambiental no Brasil. A fundação do Centro Excursionista Brasileiro em 1919 criou um lócus de encontro e debate para os amantes da natureza. Muitos deles, posteriormente seriam campeões da causa ambiental. Também cientistas e botânicos descobriram sua vocação em longos passeios por trilhas ecológicas: Adolpho Lutz e sua filha Bertha desenvolveram o amor pela botânica na propriedade de mata virgem que a família possuía no Vale do Rio Bonito, na Serra da Bocaina; Raymundo Ottoni de Castro Maya, um dos maiores entusiastas da causa dos Parques Nacionais no Brasil, tomou gosto por elas como ecoturista, cavalgando nas trilhas da Floresta da Tijuca.

Como se vê, o conceito “conhecer para conservar” está ligado, desde os primórdios, às estratégias de preservação da natureza.

 

* Esse artigo foi escrito para ser um dos capítulos do livro “Áreas Protegidas do Brasil”, a ser publicado pela editora do IEB, cuja coordenação editorial está a cargo de Nurit Bensusan e Ana Paula Prates. O livro deve ser publicado ainda no primeiro semestre de 2014.

 

 

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