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Onde o sertão é mar

O gigantesco Lago Malaui, na África, abriga rica biodiversidade e supre uma nação que vive quase inteira ao seu redor. Neste ambiente, um parque nacional sofre pressões.

1 de junho de 2010 · 14 anos atrás
 
 
 

Em 1877, quando o aventureiro português Serpa Pinto resolveu atravessar a África a pé, para tentar convencer o Governo de Lisboa a ligar Moçambique a Angola, descobriu ser impossível caminhar a viagem inteira. No meio da jornada, após dias perambulando por um terreno ressequido e pedregoso, deparou com um imenso mar interior. Havia chegado ao Lago Malaui.

Terceiro maior corpo d´água do continente africano e nono do mundo, o Lago Malaui está a 475 metros de altitude e abriga um volume de água de 8.400 km3. Tem uma profundidade média de 290 metros e máxima de 760 metros, o que o torna o terceiro lago mais profundo do mundo. Em tamanho, mede 585 quilômetros de norte a sul e dista, no seu ponto mais largo, cerca de 80 quilômetros no sentido leste-oeste, ocupando uma área total de aproximadamente 30 mil km2.

Esse gigantesco mar que banha o sertão africano, contudo, tem uma importância ainda maior em termos de biodiversidade, pois acredita-se que abrigue cerca de 1.000 espécies de peixes, das quais mais de 500 já estão catalogadas. Dessas, cerca de 90% são endêmicas, ou seja, só nadam nas águas lacustres que também incluem territórios de Moçambique e da Tanzânia. Por isso mesmo, o Lago é considerado uma prioridade mundial para a conservação.

Com essa preocupação em mente, em 1980, o Governo de Lillongue, criou na parte sul do país, em torno da Baía dos Macacos, o Parque Nacional do Lago Malaui. A área protegida foi feita parcialemnte em cima de um antigo santuário de pássaros estabelecido pelas autoridades coloniais inglesas em 1934 e cobre 9.400 hectares de terra bem como 700 hectares de superfície lacustre, distribuídos ao longo de uma faixa de 100 metros lago, adentro a partir do litoral terrestre da unidade de conservação.

É pouco, a parte aquática do Parque equivale a apenas 0,04% da superfície total do lago. Entretanto, como os peixes locais, especialmente os endêmicos ciclades, têm hábitos sedentários, a unidade de conservação abriga em suas águas cerca de 50% das espécies catalogadas em todo o corpo d´água.

Ainda assim, a situação geral é preocupante. O Malaui tem pouco mais de 14 milhões de habitantes, o que dá uma média de 102 pessoas por quilômetro quadrado, uma das maiores densidades demográficas do continente africano. Essa massa de gente se concentra sobretudo ao redor do Lago, onde as terras são mais férteis e o pescado é abundante (21.000 toneladas de peixe são retiradas das águas do Lago todos os anos). Fora isso, a baixa taxa de eletrificação rural no país obriga a população local a recorrer à madeira como fonte de energia, tanto para a cozinha quanto para iluminação e aquecimento. O desmatamento tem crescido a taxas alarmantes, com sérias consequências no que toca à turbidez e acidez das águas do Lago Malaui, hoje ainda um dos mais límpidos do mundo. Não se sabe como essas mudanças afetarão a fauna ictiológica, mas a preocupação é tão grande que a Unesco decidiu inscrever o Parque na lista do Patrimônio Mundial da Humanidade em 1984.

Não só o Lago como um todo, mas sobretudo a própria unidade de conservação sofre muitas pressões, pois está cercada por duas vilas cujos habitantes vivem da pesca e buscam nas matas do Parque a madeira para suas necessidades diárias. De modo a reduzir o impacto do uso tradicional da terra sobre a biodiversidade (que em terra inclui leopardos, babuínos, antílopes e outros mamíferos de grande porte), a administração de área protegida e o Ministério do Turismo têm estimulado a construção de hotéis e de serviços de apoio ao visitante. Espera-se que a capacitação de guias de turismo, a abertura de trilhas, as operações de agências de mergulho, a oferta de passeios de barco e as próprias atividades hoteleira e de restauração possam prover empregos que reduzam a importância da pesca como atividade econômica.

Em outra frente, as autoridades planejam semear uma floresta de eucaliptos de 1.200 hectares, de modo a fornecer a população local com madeira para suas atividades básicas, aliviando assim a pressão sobre os estoques de vegetação nativa.

A verdade nua e crua, entretanto, é que todas essas iniciativas ainda são muito incipientes. Embora haja alguma infraestrutura de hospedagem e alimentação nas imediações da administração do Parque, ao redor do vilarejo de Cape Mc Lear, tudo é ainda muito precário. As trilhas são mal mantidas, a fiscalização é mais furtiva do que a caça; a pesca, em pitorescos barcos escavados no pau de um único tronco, é feita de dia e, com auxílio de lampiões, também durante a noite inteira; e a madeira continua sendo retirada do Parque, onde as únicas árvores de grande porte que subsistem são os imponentes baobás.

Guias turísticos ou mesmo simples condutores de visitantes minimanente treinados tampouco há. Existe sim uma meninada simpática e prestativa, sempre disposta a ajudar os estrangeiros. O problema é que tendem a acompanhar o visitante em grandes grupos curiosos e cheios de perguntas. Não raro, o que deveria ser um passeio intimista em meio a um dos recantos naturais mais belos da África, transforma-se em uma experiência cultural imposta, retirando ao caminhante o direito à privacidade.

Ainda assim há que se manter o otimismo, pois é fato que não se erradica a pobreza da noite para o dia. Nesse sentido, são louváveis os esforços para a conservação da área e para a capacitação da população do entorno. Afinal, dada a realidade financeira do continente africano, ainda não se encontrou outro caminho para conservar esse maravilhoso Parque, cujas águas dão ao sertão africano benfazejos ares de nordeste brasileiro.

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