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Malta: onde vale caçar

Habitado há mais de 7 mil anos, o arquipélago no Mediterrâneo tem biodiversidade ameaçada e paisagens impressionantes. Mas sua população ainda destrói o meio ambiente. Veja fotos.

5 de janeiro de 2010 · 14 anos atrás

O arquipélago de Malta é um conjunto de três ilhas habitadas localizadas ao sul da Sicília, no mar Mediterrâneo. Nos seus 316 km2, cujo perímetro soma cerca de 250 km, vivem pouco mais de 405 mil pessoas, o que dá uma média de 1.266 apertadíssimos habitantes por quilômetro quadrado (essa mesma relação é de 466 na Holanda e de 20,32 no Brasil). Colocar tanta gente em um lugar tão pequeno e inóspito é um prodígio da humanidade. O terreno maltês é pedregoso e estéril. Não possui fontes de energia natural, produz apenas 20% das suas necessidades alimentares e é praticamente desprovido de água potável, não abrigando nem um rio ou córrego permanente. Ainda assim, o país é populado há mais de 7.000 mil anos ao longo dos quais foram erguidos três patrimônios mundiais da humanidade, uma das maiores concentrações do mundo. Como não se faz omeletes sem se quebrar ovos o meio ambiente maltês é cheio de histórias tristes.

Não estamos falando de um ecossistema desimportante. Malta está inserida em um dos 34 hotspots terrestres, o da Bacia do Mediterrâneo, cujo conjunto de 22.500 espécies de plantas vasculares, 11.700 das quais endêmicas, é equivalente ao quadrúplo do existente em todo o resto do continente europeu. Em Malta propriamente dita, apesar da floresta ancestral ter sido completamente extirpada pelo Homem, ainda vicejam 4.500 espécies de plantas e animais nativos. Além disso, cerca de 150 espécies de pássaros migratórios sobrevoam os céus do país todas as primaveras. 89, ou 2% do total das espécies encontradas em Malta, são endêmicas. O arquipélago maltês não produz quase nada. Afora laboratórios farmacêuticos e estaleiros navais, o principal motor da economia é o turismo. Assim, além de toda a terra arável que, está ocupada, o restante dos melhores terrenos foram destinados para empreendimentos hoteleiros. O que sobrou para a conservação é muito pouco, cerca de 20% do território maltês, divido em blocos excessivamente fragmentados, o que dificulta a troca genética entre os espécimes.

Malta é habitada desde tempos imemoriais, tendo sido parte do Império Romano e integrado as terras sob jurisdição de Constantinopla. Em 1530 a ilha foi entregue aos Cavaleiros de São João, ordem militar hospitalária medieval, cujo objetivo era a recaptura de Jerusalém e que desde então ficou mundialmente conhecida como Ordem de Malta. Os Cavaleiros de Malta forjaram no arquipélago uma sociedade extremamente religiosa que perdura até hoje. Nicolau Durand de Villegagnon, chefe da invasão francesa ao Rio de Janeiro em 1555, era Cavaleiro de Malta. Uma visita ao país explica rapidamente porque sua empreitada falhou. Malta só aboliu a inquisição em 1798, ainda criminaliza o divórcio, proíbe que as pessoas se fantasiem de padre no Carnaval e tem a maior taxa de comparecimento à missa na Europa (52% aos domingos). Suas mais de 390 igrejas, quase uma por cada mil habitantes, são um tributo à cultura conservadora do país. Villegagnon trouxe para a Guanabara colonos protestantes, mas era católico fervoroso. Logo as diferenças entre ele e seus comandados expuseram uma grande fratura na França Antártica, que causou a implosão da expedição colonizadora. No frigir dos ovos, Villegagnon e os calvinistas concordavam em apenas uma coisa: o Rio de Janeiro era o paraíso verdejante onde tudo vicejava, água e alimentos abundavam. Em terras cariocas a natureza era pródiga!

Não era para menos. Se Malta é parâmetro, o Rio certamente é o jardim do Éden. Infelizmente, essa realidade cruel não parece ser empecilho para que a população maltesa continue a predar seu próprio meio ambiente. O esporte mais popular no país é a caça a pássaros (note-se que a atividade já levou à quase extinção dos coelhos). São 20.000 caçadores no arquipélago (quase um em cada 20 habitantes). Há várias lojas de apetrechos de caça no país e, apesar de ser ilegal, alguns jornais anunciam a venda de gravações de cantos de pássaros, utilizadas pelos caçadores para atrair animais da mesma espécie. Em qualquer passeio pelos campos malteses avista-se um punhado de caçadores e seus cães treinados. Por onde quer que se caminhe, há pequenos abrigos de pedra, onde os caçadores se camuflam para abater aves migratórias. Por vezes, de um só lugar, é possível avistar uma dúzia dessas macabras construções. O chão das trilhas do país está poluído por milhares de cartuchos descartados das espingardas. Em menos de um minuto é possível catar cartuchos suficientes para encher ambas as mãos de uma pessoa adulta. Cálculos de ongs ambientalistas locais estimam em meio milhão o número de pássaros abatidos no país a cada ano. Esforços de organizações conservacionistas maltesas, entre as quais sobressai a Birdlife, têm resultado em novas leis que retringem um pouco a prática. Ainda assim, Malta é o único país da União Européia onde é permitido caçar na primavera e a própria Birdlife afirma que as novas regulamentações não têm sido efetivamente implementadas. Segundo a ONG a caça ilegal continua sendo executada sem grandes dificuldades em todo o país.

É uma pena pois, apesar de tudo, Malta ainda possui paisagens belíssimas. Talvez o mesmo turismo, responsável por grande número de construções e impactos ambientais, possa também ser uma válvula de escape para as áreas naturais do arquipélago. Recentemente, o governo maltês acordou para o segmento do ecoturismo e estabeleceu uma incipiente rede de trilhas pela ilha. Uma delas, as Victoria Lines, corta o país de norte a sul, ao longo de uma escarpa natural que divide a principal ilha do arquipélago em dois. No século XIX, com vistas a melhorar a linha defensiva da capital Valleta, o exército inglês, que então ocupava Malta, construiu paralelo a esse despenhadeiro um extenso muro de pedra, guarnecido por torres e bastiões fortificados. A pequena Muralha maltesa da China foi erigida ao longo de lugares inóspitos e vales profundos, os mesmos locais onde hoje a escassa biodiversidade do arquipélago ainda luta para sobreviver. A estrangeirada que palmilha os dezessete quilômetros das Victoria Lines é a mesma que vocifera contra os caçadores e contra as intrusões da indústria imobiliária, que visa justamente a atender o aumento da demanda do setor de turismo. É o típico caso em que o problema e a solução vêm da mesma fonte. Com efeito, não parece haver outro caminho para salvar o pouco que restou do meio ambiente maltês do que o (eco)turismo. Apesar das mazelas, ainda há o que preservar. Existem em Malta algumas áreas protegidas manejadas por entidades não governamentais que poderiam dar algum alento à proteção da biodiversidade do arquipélago.

Entre elas destacam-se a árida e pedregosa Ilha de Comino, que está protegida em sua totalidade, e os parques de Il-Majjistral e Dwejra. Este último, localizado na Ilha de Gozo, abriga a Janela Azul (Azzure Window) e Fungus Rock, além de falésias espetaculares. Não é sem razão que a reserva é candidata a Patrimônio Mundial da Humanidade, pleito que, se aceito, se será o único patrimônio natural maltês que já tem a monumental capital Valleta, o Hipogeu e os templos megalíticos classificados como patrimônios mundiais da humanidade (todos construídos pelo Homem) . Faz sentido, afinal, Fungus Rock é uma das primeiras áreas protegidas que se tem notícia em todo o mundo. Quando os Cavaleiros de São João se estabeleceram no arquipélago, descobriram que o pequenino ilhéu era o único lugar em toda a Europa onde um pequeno fungo de propriedades medicinais (Cynomorium coccineus) vicejava. Suas propriedades curativas facilitam a coagulação e a cicatrização, além de ter efeitos terapêuticos em doenças como a disenteria, úlceras e mals venéreos. Rapidamente, os Cavaleiros de Malta declararam o rochedo como área protegida e mantiveram-no sob estrita vigilância, garantindo assim a preservação de uma espécie fundamental para o bem estar humano: um tributo à causa da proteção da biodiversidade. Que sirva de lição aos malteses.

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