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Belize: a natureza paga por sua conservação

De todas as áreas protegidas bem manejadas, uma reserva particular foi a que mais me impressionou pela beleza e gestão. Sempre pensei que um lugar assim só existisse no céu.

8 de setembro de 2009 · 15 anos atrás

Belize é um país da América Central pequenino em tamanho e vasto em esforços de conservação ambiental. Ali não há grandes indústrias ou imensos latifúndios monocultores. Não se produz muita coisa. Por outro lado, sua natureza é exuberante e relativamente bem conservada. A economia local é marcadamente baseada na agricultura e no turismo. À exceção de alguns produtos primários, a maioria dos bens consumidos em Belize vem de fora: de automóveis a isqueiros, de barcos a xampus e condicionadores, tudo é importado. Nesse sentido, o turismo – e os recursos por ele proporcionados –  ganha relevância especial para os esforços de preservação no país.

Setenta por cento de Belize ainda são cobertos por mata primária. Desde a independência do país, em 1981, mais de 40% do território foram protegidos ao abrigo de alguma categoria de unidade de conservação. Mas como manter esse sistema em um país pobre financeiramente e carente em recursos humanos? Uma saída encontrada foi delegar a administração de algumas áreas a organizações não-governamentais, como a Monkey Bay Wildlife Society, a Forest and Marine Reserve Association of Caye Caulker, a Friends of Nature e, principalmente, a Belize Audubon Society, que maneja nove áreas protegidas, incluindo dois Parques Nacionais e dois Sítios do Patrimônio Mundial da Humanidade.

Para ajudar a financiar esse sistema, em 1996 o Governo belizenho baixou um decreto criando o Fundo Fiduciário para a Conservação das Áreas Protegidas (PACT na sigla em inglês). O orçamento do PACT vem de uma taxa de embarque de US$ 3,75 cobrada a todos os turistas estrangeiros que deixam o país e de um imposto de 20% sobre as passagens de turistas que desembarcam dos navios de cruzeiro que atracam nos portos belizenhos.

Recentemente visitei seis áreas protegidas em Belize. Entre Parques Nacionais, Monumentos Naturais e Reservas Florestais, estive em unidades de conservação administradas por dois departamentos diferentes do governo e pela Belize Audubon Society. Embora não tenha visto nada luxuoso ou excepcionalmente moderno, terminei minha viagem muito bem impressionado. As UCs têm planos de manejo enxutos e exequíveis, pessoal capacitado, bem uniformizado e motivado, centros de visitantes modestos mas bem equipados, atividades rotineiras de monitoramento de fauna e flora e de reintrodução de espécies, programas de educação ambiental para visitantes e comunidades do entorno e projetos de cooperação com as UCs contíguas, além de excelente sinalização e manutenção das trilhas e mirantes.

O que mais me chamou a atenção, contudo, não foram as áreas protegidas mantidas por agências governamentais ou por ongs ambientalistas. Fiquei especialmente impressionado com uma RPPN belizenha que não recebe recursos do governo, fundos do PACT, nem doações de ongs, mas vive exclusivamente das diárias pagas pelos praticantes do turismo de baixo impacto que abriga.

A RPPN Hidden Valley (Vale Escondido) tem 3 mil hectares e está localizada dentro de uma Floresta Nacional (Pine Ridge Forest Reserve) próxima à fronteira com a Guatemala. Foi desmembrada de uma propriedade de 5.500 hectares inicialmente comprada para a extração de pinheiros e o plantio de café. Em 2001, seus proprietários resolveram vender o coração do terreno, que continha a parte mais acidentada, cujos vales profundos e escarpas íngremes dificultavam a exploração econômica. Essa área era também a mais bonita e profusa em vida selvagem.

Os novos proprietários, uma família de empresários do ramo de seguradoras que havia passado parte da infância frequentando as cachoeiras de Pine Ridge, conheciam o potencial da região e tinham o capital necessário para dotar a área de infraestrutura para a visitação. Juntaram seu espírito capitalista com o amor que adquiriram pelo local desde a mais tenra infância. Encomendaram um estudo sobre as potencialidades ecoturísticas da propriedade e um inventário analítico com propostas de manejo para a fauna e flora da propriedade.

Seguindo as recomendações desse trabalho, cujo formato final em muito se assemelha a um plano de manejo (e dos bons!), pagaram os serviços de uma empresa de caça-talentos para encontrar um especialista em administração de reservas privadas. Após alguns meses contrataram o casal Flavian e Beverly Daguisé. Ele, um francês de 34 anos com alguns anos de experiência em conservação e ecoturismo na Namíbia e na África do Sul, onde também trabalhou no Parque Nacional Kruger; e sua esposa, uma sul-africana especializada em administração e gastronomia hoteleira, com larga experiência em pousadas na região da Cidade do Cabo.

A seguir, ergueram 12 bungalows com uma arquitetura ecologicamente correta que os integra à paisagem e contrataram o austríaco Peter Durhager para, com uma equipe de oito funcionários, criar, sinalizar e manter uma extensa rede de 140 quilômetros de trilhas e estradas. Também deram emprego a 22 moradores de comunidades do entorno em tarefas que vão desde o monitoramento da fauna, até a manutenção da rede elétrica do hotel, passando por serviços de arrumadeira, jardineiros e cozinheiras.  

Segundo Daguisé, não há pressa para que o trabalho dê lucro: “sustentabilidade financeira e equilíbrio ecológico têm que andar de mãos dadas”. Trata-se de uma iniciativa de longo prazo que planeja operar no azul dentro de quatro a cinco anos. Atualmente, o Hidden Valley tem uma ocupação média de 50%, sobretudo turistas americanos, canadenses e ingleses, e um crescimento projetado de 10% ao ano.

O perfil das pessoas que frequentam a reserva é variado: são observadores de pássaros (cerca de 200 espécies sobrevoam a propriedade), caminhantes e jovens casais em lua de mel. Os turistas usam o Hidden Valley tanto como um destino em si, como uma base para visitas ao fabuloso Monumento Natural da Caverna de Actum Tunichil Muknal ou aos sítios arqueológicos maias de Caracol e Tikal, que estão nas cercanias. Também há os que combinam uns dias na RPPN com uma temporada de mergulho no Blue Hole ou no Half Moon Caye, áreas protegidas da barreira de corais de Belize reconhecidas pela UNESCO como Patrimônios Mundiais da Humanidade.

Seja como for, o Hidden Valley se sustenta sozinho. Em si próprio é um destino fantástico. Abriga centenas de cachoeiras espalhadas por 15 tipos de habitats divididos em dois ecossistemas distintos (um pinheiral endêmico e uma floresta tropical), onde vicejam 72 espécies de orquídeas e bromélias e uma fauna saudável. Um estudo contratado pelos antigos proprietários da RPPN ao biólogo Bruce Means, em 1997, catalogou 10 espécies de anfíbios, 51 de répteis, 54 de borboletas e 37 de mamíferos entre os quais sobressaem antas, tamanduás, quatis, cotias, jaguatiricas e lontras. É de se ressaltar que a pesquisa de Means encontrou em Hidden Valley uma espécie de sapo até então desconhecida pela comunidade científica. Mais recentemente, com apoio dos novos proprietários, a pesquisadora da Virgínia Tech, Marcela Kelly, instalou armadilhas de câmeras no Hidden Valley. Confirmou as conclusões de Means mas também registrou a presença de onças pardas e pintadas em diversas áreas da RPPN.

Em outra frente, em 2004, o Hidden Valley associou-se ao Peregrine Fund para utilizar a propriedade como local de reintrodução à natureza do falcão-de-peito-laranja, espécie ameaçada de extinção na América Central. O projeto tem avançado e dado frutos (ou filhotes): já é possível ver alguns falcões-de-peito laranja em voos rasantes sobre a reserva.

Uma temporada no Hidden Valley tem potencial para ser uma experiência inesquecível. A equipe de Peter Durhager se debruçou sobre os inventários produzidos por Bruce Means, Marcela Kelly e pelos biólogos do Peregrine Fund e traçou uma rede de trilhas para caminhante nenhum botar defeito. As picadas de Hidden Valley evitam todos os locais frágeis de um ponto de vista ambiental, salvaguardando áreas de nidificação e regiões de vegetação endêmica, rara ou de fácil combustão mas não perdem nada em qualidade.

Durhager é um apaixonado pelo que faz. Os traçados dos caminhos da RPPN são calculados com precisão germânica. Visitam dezenas de cachoeiras e mirantes e atravessam túneis de vegetação espetacular. A sinalização é simples e eficiente, deixando à vontade mesmo os mais neófitos trilheiros. Pontes, degraus e corrimãos protegem os locais íngremes e as encostas mais suscetíveis à erosão. Não são, contudo, intervenções intrusivas. Pelo contrário, primam pelo bom gosto e pelo mimetismo com o ambiente em que estão inseridas.

Há trilhas para todos os gostos. Planas e inclinadas, longas e curtas, de largos panoramas e de imersão total na floresta tropical. Há trilhas circulares e trilhas de ida e volta. Há também uma estrada de terra que dá acesso a pequenas trilhas secundárias, permitindo aos preguiçosos ou apressados chegar às cachoeiras e vistas mais espetaculares de bicicleta ou automóvel sem precisar empreender grandes cabritadas.

No início de cada manhã os hóspedes procuram Daguisé para planejar seu passeio. O francês prepara o dia de seus clientes de forma a evitar que haja encontros entre dois grupos diferentes em uma mesma trilha. O esquema é tão organizado que cada casal de hóspedes pode reservar uma cachoeira por dia para seu uso exclusivo. Traçados os roteiros, cada grupo recebe um rádio transmissor que pode ser usado em situações de emergência, mas que também serve para os mais indolentes pedirem uma carona no jipe da RPPN ao fim da jornada, permitindo assim que as caminhadas sejam calculadas sem necessidade de levar em consideração o tempo de retorno até a sede da Reserva.

Analogamente, há aqueles que vão na boléia do jipe até o início do passeio, tudo incluído no preço da diária. Mas não acabou. Para o almoço, basta que os hóspedes indiquem a cachoeira onde vão estar que, ao chegar, vão ser recepcionados por duas redes penduradas nas árvores e uma cesta de piquenique com direito a, sanduíches, queijos, frutas, uma garrafa de champanhe e uma barra de chocolate suíço.

Sempre pensei que um lugar assim só existisse no céu. Minha opinião parece ser corroborada pela maioria dos hóspedes, cujos comentários são unânimes e podem ser sintetizados pelas anotações dos nova-iorquinos Linda e Peter Nork: “mesmo cinco dias não foram suficientes para aproveitar completamente este paraíso!” Faço votos para que Hidden Valley dê lucro logo. Não duvido que isso vai acontecer antes dos cinco anos que os empreendedores estão dispostos a esperar.

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