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Curtindo onda com a conservação

Marrocos é mais rico e interessante do que se pode conceber, mas apresenta duras realidades para conservação. Não se pode aceitar plantio de espécies ilegais dentro de áreas protegidas.

27 de abril de 2009 · 15 anos atrás
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Quando estudamos História no segundo grau, aprendemos como as civilizações que existiram na Grécia e Roma, na Idade Média, no Renascentismo e após a criação dos estados nacionais consolidaram as fronteiras dos países como os conhecemos hoje. A Geografia que nos é ensinada é resultado de uma visão eurocêntrica do mundo. Com sorte, alunos de escolas um pouco mas esclarecidas passarão à Universidade com um verniz de aprendizado sobre as civilizações Maia, Inca e Azteca, Chinesa, Indiana e Islâmica para citar apenas alguns exemplos simplificadores. Ainda assim, o pouco que acabamos por saber dessas culturas milenares nos é passado através de um filtro ocidental e, muitas vezes, preconceituoso. Nesse sentido, uma viagem a países da periferia euro-norte americana pode nos abrir os olhos para diferentes formas de ver – e compreender – o mundo como também pode reforçar certas visões que para lá levamos pré-concebidas. Recentemente, a trabalho, visitei o Marrocos. Ainda estou digerindo o que vi por lá.

O meu Marrocos imaginário era um país seco, marcado pelas escaldantes areias do Deserto do Saara e cortado pelas altaneiras montanhas do Atlas. Sabia também que ali existiam cidades milenares como Marraqueche e Fês e que o carro chefe da culinária local era o cuscus.

Encontrei um país muito mais rico e interessante do que me teria sido possível jamais conceber. A começar por Ceuta, pedacinho do Marrocos ocupado por Portugal em 1415 e hoje administrado pela Espanha, tudo que vi me impressionou. As medinas (cidades muradas) de Tetuan, Marraqueche, Fês, Meknes e Rabat são mundos aparte. Suas vielas apertadas e abarrotadas de gente correndo, vendendo, comprando, passeando e jogando conversa fora evocam formigueiros. Os imensos palácios azulejados, com seus ricamente decorados jardins internos, rivalizam com as Versailles e as Mafras européias. As tonitruantes mesquitas não deixam nada a dever às igrejas edificadas pela cristandade. É possível viver anos dentro de uma medina sem nunca sair ao mundo exterior. Ali, as cores dos curtumes, os cheiros dos insensos, os sabores das especiarias e os demais estímulos são tão variados que jamais deixam uma nesga sequer de oportunidade ao tédio (muito embora alguns desses estímulos como a exibição de macacos amestrados e o encantamento de najas possam parecer de extremo mau gosto a um par de olhos ocidentalizados como os meus).

Por outro lado, o mundo exterior também tem seus encantos. E não estão apenas no Atlas e no Saara. Perto de Ceuta fica a cadeia de montanhas do Rif, onde está localizado o Parque Nacional de Talassantane. Trata-se de uma unidade de conservação declarada na década de 1980 pelo Governo Marroquino com intuito de proteger algumas espécies emblemáticas como o Macaco da Barbaria (Macaca sylvanus), e o pinheiro mediterrânico aleppo (Pinus halepensis). O Parque também é conhecido por proteger paisagens de cair o queixo.

Quem tiver um bom veículo com tração nas quatro rodas pode visitar Talassantane por um par de estradas selvagens. A melhor maneira de conhecer o Rif, contudo, é a pé. A partir da pequenina vila de Chefchaoen saem algumas trilhas que podem ser percorridas em um, dois, três, quatro ou cinco dias. Em Chefchaoen organiza-se tudo: guias, provisões, barracas e até mulas para carregar as bagagens. Nada disso, entretanto, elimina a rusticidade e o esforço da empreitada. Para entrar em Talassantane não tem outro jeito, há que subir! São quase 11 quilômetros morro acima até a altitude de 1800 metros. No caminho, vistas deslumbrantes, trechos cobertos de neve e o primeiro sinal de manejo: um acampamento de trabalhadores do Serviço Florestal e de Águas do Marrocos. Estão reflorestando as encostas externas do parque com mudas de pinheiro.

Bato palmas. Youssef, meu guia, discorda. Para ele aquela gente é uma horda de invasores. “Não são bérberes do norte, mas árabes do sul. Não agregam nada à economia da região. Com tanto desemprego por aqui, por que trazer peões de fora?”, vocifera ele. “Ainda por cima é uma gente porca. Come, dorme, urina e defeca no mesmo local. Vão destruir mais que construir”. Balancei a cabeça em sinal positivo. Realmente assim é difícil angariar apoio à conservação entre os habitantes locais.

Concordei cedo demais. Bastou vencer o primeiro colo da montanha e entrar em um vale interior para que as encostas selvagens do Rif começassem a dar lugar a disciplinados terraços agricultáveis. Com o inverno ainda no fim não consegui ver o que se cultivava em local tão longe e inóspito. O terreno ainda estava sendo preparado para o plantio de sementes que Yossef chamou vagamente de “vários produtos”.

Com o cair da noite, após sete horas de trilha, adentramos um vilarejo de lavradores, composto de pequeninas casas com tapetes pendurados do lado de fora para secar e uma mesquita tosca com seu indefectível auto falante capaz de convocar os fiéis até nos mais distantes recônditos da montanha. Fomos recepcionados por uma algazarra de cães que conduziam uma manada de cabras a um pequeno curral. Encontramos alojamento em um casebre local onde já estavam cinco jovens da elite de Casablanca. Fumavam um baseado atrás do outro. Estavam completamente entorpecidos. Conversa daqui, pergunta de lá, provoca dacolá descobri que vieram comprar haxixe para revender. Me contaram que o Rif produz grande parte da maconha marroquina. Segundo apurei, a erva plantada em Talassantane abastece todo o mercado marroquino e grande parte do europeu. Os agricultores nem precisam sair de suas casas para vender o produto. Preparam o haxixe em pequenos fornos artesanais que existem em cada aldeia e vendem o produto final para traficantes que vêm de fora. Segundo me informaram, em julho, na época da colheita, é comum cruzar com tropas de 10 a 15 mulas completamente pejadas pelo fardo do haxixe.

Sem ter mais como responder minhas questões com evasivas, Yossef mergulhou no debate. Defendeu o plantio de cannabis com unhas e dentes: “o governo não dá nada a essa gente. Aqui não há escolas, estradas, médicos, luz elétrica, nada. Nada. Graças a esse cultivo, hoje todos têm seu carro, as casas estão abastecidas com energia proveniente de painéis solares, é possível comprar remédios e comida. Essa proibição é uma hipocrisia imposta pelo Ocidente. No Marrocos fuma-se haxixe há mais de mil anos! Agora porque os americanos proibiram seu consumo nós somos obrigados a mudar nosso estilo de vida! O engraçado é que a recíproca não é verdadeira. O Islã proíbe o alcool. No entanto, não vejo nenhum país cristão vislumbrando a possibilidade de fechar alguma destilaria ou vinícola. Por que o que vale para nós também não vale para vocês, ou a maconha é mais nociva que o alcool?”

Embora conseguisse ver o ponto de vista do meu guia, não quis entrar no mérito da discussão mais geral. Mudei de assunto. Perguntei aos casablanquinos como eram as paisagens da caminhada que acabavam de terminar e que me esperava no dia seguinte. Responderam-me que havia sido nebuloso. Nebuloso como? Durante todo o dia que se encerrara, o sol resplandecera e naquele momento uma lua cheia como uma bola irradiava, fazendo brilhar as neves do Rif. “Nebulosa é a cabeça de vocês”, pensei com certa dose de preconceito.

De manhã, após um delicioso café árabe pusemo-nos a marchar banhados pelos primeiros raios do sol que surgia majestoso por trás da montanha. Ainda nos primeiros momentos da caminhada, cruzamos com um homem carregando um fuzil a tiracolo. Perguntei se era para se proteger da polícia. O guia riu: “polícia não se mata, se compra”. A arma é para matar porcos selvagens. Estranhei. Muçulmanos não comem carne de porco. “O problema é que os porcos destroem a plantação, sobretudo na fase inicial da germinação”.

Logo as paisagens deslumbrantes de montanhas, cachoeiras e canyons profundos desapareceram. Mergulhamos em um vale estreito completamente inundado por uma espessa bruma. Não se via mais que dois palmos à frente do nariz. Reajustei a mirada do modo Saara para o modo medina. Não perscrutava mais os amplos horizontes, mas somente os detalhes próximos de mim. Foi precisamente essa visão túnel que me horrorizou. Caminhei durante seis horas por terraços preparados para o cultivo da maconha. Amiúde cruzei com pequenas matilhas de cachorros treinados para expulsar os porcos, cabras selvagens e macacos nativos que o Parque Nacional de Talassentane supostamente deveria proteger. Yossef explicou que isso era necessário para salvaguardar a lavoura. Pior, descobri que assim como os árabes do sul, os bérberes do norte também são capazes de comer, dormir, urinar e defecar no mesmo local. Os rios de Talassantene estão carregados de lixo, onde sobressaem infinitos pedaços de um plástico amarelo-vivo, que são resquícios da bolsa do fertilizante mais usado na lavoura da cannabis. Depois de um certo momento, cansado de tanta destruição, abaixei a cabeça e marchei tentando olhar sem ver. Não adiantou, terminei a caminhada encantado com as vistas do primeiro dia mas chocado com o tamanho do impacto ambiental, causado pela plantação de maconha, que testemunhei ao longo do segundo dia de jornada.

Me despedi de Yossef dizendo que não posso aceitar que uma espécie comercial, sobretudo quando é ilegal, seja plantada em larga escala dentro de uma área protegida. O marroquino não se abalou: “se fosse legal, não seria necessário plantar aqui. Poderíamos cultivar lá embaixo”. De volta ao hotel, em Chefchaoen, cansado de matutar atrás de respostas para um problema sem solução, tomei duas doses de uísque e fui dormir.

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