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O exotismo da primavera tropical

Viagem surpresa pelo território brasileiro neste fim de ano mostra que a natureza no país, mesmo a importada, tem uma diversidade capaz de deixar qualquer um encantado.

17 de dezembro de 2008 · 15 anos atrás

Em meados de outubro fui surpreendido por um convite-convocação para executar um trabalho no Brasil. Coisa longa e salpicada pelo território nacional, algo que me tiraria de casa até janeiro. Ciente de que no mundo adulto certos convites são compulsórias, agradeci a gentileza da consulta e aceitei. Quando desliguei o telefone, através dos vidros da janela, um céu cinza e carregado invadia meu escritório lisboeta. O outono já derrubava as folhas, nublava o horizonte e esfriava a atmosfera. Para quem foi criado nos trópicos, tudo acontece muito rápido na Europa. Há menos de quinze dias Ana Leonor e eu empreenderamos uma travessia de 40 quilômetros nas altitudes da Serra da Estrela. Só usamos casacos à noite. Agora, mesmo nos baixios do Tejo já era preciso agasalhar-se. Talvez não fosse tão ruim passar uma temporada no Brasil, ainda que vergado de serviço…

Saído do outono europeu (cuja frialdade nos é mais gélida que os invernos do sul gauchesco), desembarquei em uma primavera que no velho continente seria verão. Ainda nas asas da TAP, choquei-me com uma Salvador nova para mim. Maior, menos verde, mais favelada, feia mesmo. Cheguei um dia antes do batente. Aluguei um carro. Visitei a Lagoa do Abaeté. Vi mais gente do que água. Onde estão as dunas, o que aconteceu com a vegetação? Não fiquei. Troquei o certo pelo incerto. Fui ao Parque do Pituaçu. Não chega a ser uma Floresta da Tijuca ou uma Serra da Cantareira mas é quase. Meia dúzia de centenas de hectares de lagos margeados por uma estreita faixa de vegetação verdejante formam um oásis natural em meio à urbe de Gilberto Gil. É Mata Atlântica? Quase. Tem jaqueira, mangueira e coqueiro. Também tem gatos. Mas é verde como o Brasil idílico e não tem gente. Foram quinze quilômetros de caminhada ao canto de pássaros primaveris que não gorgeiam como lá.

Não demorou e estava em Brasília, essa maldita criação juscelina que privou o Rio de sua capitalidade. A secura desaparecera, as primeiras chuvas já haviam regado as terras vermelhas do planalto central. Desembarcado do avião e a bordo do táxi, fui recepcionado por uma explosão de flores de todas as formas, brilhos e tonalidades. Nos jardins candangos misturam-se o chuveiro do Cerrado, o bouganville da Mata Atlântica e o eucalipto australiano. Todos plantados pela mão do homem. Se meu olhar de ecochato os distingue e hierarquiza, a primavera não o faz. Todos estão viçosos por igual e igualmente lindos. Como ficar ranzinza com a nossa Capital tão deliciosamente colorida?

Mas não gastei muito tempo no centro do país. Em poucos dias fui enviado à Belém. Ali também é primavera. Não sei se a meteorologia o sabe, pois para ela o Pará só tem duas estações, uma em que chove todo dia e outra em que chove o dia todo. Resolvo ir a pé até minha reunião. Arrasto-me pela orla marrom do rio com os olhos postos no verdume da margem de lá, que essa viagem não me permitirá pisar. Estou em plena Amazônia, mas essa metrópole que é a maior da região, se orgulha de ser a cidade das mangueiras, uma árvore asiática (esse Brasil é mesmo incrível!). Não importa. Ninguém mostrou o passaporte indiano da manga rosa às brasileiríssimas maritacas. Paro embaixo de uma copa. Que algazarra ritmada, boa de ouvir. Que beleza! Dane-se que estou derretendo dentro de um terno pensado para a fria Europa. O canto dos periquitos sublima qualquer sofrimento.

Ainda na Amazônia, andei por Boa Vista. Tecnicamente, lá não é primavera. A capital de Roraima está acima do equador, no hemisfério norte. Ali, portanto, é outono, ou deveria ser. A natureza não parece dar muita bola para isso. Ao que tudo indica tudo floresce o ano todo. Na estrada que percorro em direção à Guiana, vejo um cerradão amazônico onde há flores a torto e a direito. Para mim, em Roraima a prima é vera nas quatro estações.

Não há trabalho realmente nacional que não passe por São Paulo. No meu caso não fui além do aeroporto de Guarulhos. Ali, matei as horas que o atraso da aviação pós Varig nos submete diuturnamente tagarelando com duas recepcionistas de uma sala Vip. Os olhos esgarçados e os cabelos negros escorridos de uma contrastavam com as íris azuis e a cabeleira loira da outra. Seus ascendentes formaram liga na Segunda Grande Guerra, mas elas não sabem disso. Pouco importa de onde ou porque vieram para essas terras sul-americanas. Sua beleza exótica não poderia ser mais brasileira. Consultam repetidamente os relógios. Ansiam pelo fim do expediente; querem sair, namorar. Os hormônios explodem. Estão na flor da idade.

Também estive no Rio de Janeiro. Meu encontro profissional era às duas da tarde no centro da cidade. Madruguei e fui cabritar uma trilha no Parque Nacional da Floresta da Tijuca. Coisa para três horas de caminhada. Logo no início da jornada, fui recepcionado por um esquilo caxinguelê entretido com uma amêndoa. Mais à frente, quando parei para recuperar o fôlego que me escapara em uma encosta cruelmente íngreme, travei contato com uma tropa de macacos. Não são dali. Foram introduzidos do Nordeste do Brasil não se sabe por quem, não se sabe quando. Banqueteavam umas jacas maduras. Talvez saibam que os burocratas da Tijuca trabalham com afinco para mudar-lhes a dieta. Estão fora de seu palco? Estou ciente que sim. Mesmo assim, não consigo achar a visão desagradável. Gasto meia hora me regozijando com o festim. Mais adiante, um grave piar cativa a atenção de meus olhos. Entorto a nuca. Lá em cima um casal de tucanos de bico preto, cuja espécie o homem caçou até a extinção local e depois reintroduziu, acha bom ser primavera. Espécies menores acasalam, deitam ovos, chocam. Seu trabalho é em vão. Não são páreo para a tucanada que tira partido do seu tamanho avantajado e enriquece sua dieta primaveril com omelete de pequenos avoantes.

A tarde chega na Cidade Maravilhosa. Tomo banho, engravato-me, submerjo no metrô. Reencontro a superfície no Centro. Adentro o Palácio Itamaraty, jóia da arquitetura imperial brasileira. Logo no primeiro jardim interno encontro uma fêmea cisne (como se diz isso em português?). Grandona e garbosa, seria incongruente na cidade se o concreto carioca não houvesse substituído a Mata Atlântica pré-cabralina. Ninguém lhe avisou. Toda prosa, a cisne branca, cata ramos e palhas, constrói diligente um ninho amplo o suficiente para seu ovo de dimensões futebolísticas (futebol de salão, mas ainda assim!). Não é uma cena, digamos assim, ecologicamente correta. Me encanto com se fosse. Exótica ou não, é primavera.

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