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Com fogo não se brinca

O combate aos incêndios florestais é caro e complexo em qualquer lugar do mundo. Resolver esses problemas requer planejamento e a coordenação das ações de órgãos públicos e de defesa civil.

26 de novembro de 2008 · 15 anos atrás

Quando sentei para escrever esta coluna, setenta e cinco mil hectares, equivalentes a cerca de 50% da área do Parque Nacional da Chapada Diamantina, já tinham sido consumidos pelo pior incêndio de que se tem notícia na história da região. Na esteira da tragédia também ardem os planos e projetos contingenciais, feitos com o intuito de prevenir adversidades dessa ordem. Uma análise mais cuidadosa da realidade, contudo, permite explicar as dificuldades para debelar um fogaréu de tamanha dimensão e pode apontar soluções duradouras e eficientes.

Planejar combate a incêndios sempre foi tarefa espinhosa para a humanidade. Extinguir um fogo de grandes proporções exige conhecimento técnico, equipamento adequado e acessibilidade à água. Quando se trata de queimadas em áreas naturais, o problema se agrava, pois ventos fortes e cambiantes, abundante quantidade de matéria comburente e a normalmente difícil acessibilidade aos focos dificulta ainda mais o trabalho e exige o emprego de grande quantidade de efetivos. Tanto do ponto de vista econômico quanto prático a conta não fecha. Sai muito caro manter batalhões de bombeiros aquartelados e inativos, à espera de um sinistro que pode ficar longos períodos sem acontecer. Por outro lado, quando esses infernos ocorrem, nunca há gente suficiente pra lhes fazer frente.

O aparato legislativo brasileiro atribui a responsabilidade da prevenção e combate aos incêndios prioritariamente aos Corpos de Bombeiros Militares estaduais. Por questões de escala, de economicidade e de priorização, muitos estados relegaram a questão dos incêndios florestais a um segundo plano, seja na aquisição de equipamentos, na criação de batalhões especializados ou na formação de quadros (combater um incêndio florestal é bastante diferente de extinguir o fogo em uma área urbana).

Faz sentido. Mesmo países ricos e organizados já chegaram à conclusão de que não há orçamento que justifique manter inativos os bombeiros necessários para dar combate às grandes catástrofes que tendem a ser provocadas pelos incêndios em áreas naturais. Como já contei aqui em O Eco, lugares onde essas queimadas devastadoras são comuns, como a Califórnia e a Austrália, resolveram a questão dos recursos humanos criando e aplicando um sistema que permite o recrutamento de efetivos em diversos órgãos diferentes (por exemplo, Instituto Chico Mendes, PM, Bombeiros, Prefeituras, Exército, Marinha, Aeronáutica, ongs, voluntários etc).

Juntar tantos órgãos não chega a ser problema. Quando um desastre dessa ordem acontece, é comum encontrar ajuda nas mais diversas instituições. Nesse sentido, o próprio caso da Chapada Diamantina é bom exemplo. Ali combateram, ombro a ombro, técnicos do Chico Mendes, bombeiros militares, brigadistas, membros das Forças Armadas e funcionários de várias outras instituições das três esferas de governo.

Complicado é fazer essa gente trabalhar em sintonia. Diferenças doutrinárias, incompatibilidade de equipamentos, desnível nos conhecimentos técnicos e no treinamento, descompasso entre as hierarquias e a falta de um marco legal que defina as responsabilidades tornam a gestão dessa massa humana um exercício quase tão complicado quanto a própria tarefa de debelar o fogaréu. Muitas vezes a fogueira das vaidades arde com mais energia do que as labaredas que consomem as matas.

Resolver esses desencaixes no calor do combate ao fogo acaba tomando recursos e tempo preciosos à atividade fim. Cada minuto dedicado à coordenação corresponde a mais um monte de brasas e cinzas.

Por isso é que lugares, como os que citei acima, adotaram o chamado ICS (Incident Command System). Trata-se de uma doutrina pensada para coordenar o emprego de grandes efetivos em atividades de defesa civil – não apenas incêndios, mas também terremotos, furações, enchentes, epidemias etc.

O ICS determina, de acordo com a capacidade técnica, a quem cabe a coordenação das atividades de enfrentamento a uma catástrofe. Assim, a luta contra uma epidemia deveria ser coordenada pelas autoridades de saúde, uma enchente, pela Defesa Civil, um incêndio, pelo Corpo de Bombeiros ou pelo PREVFogo, e assim por diante. Os demais órgãos designam representantes com poder de decisão sobre suas corporações para atuar sob o guarda-chuva da entidade coordenadora. Desse modo, a partir de um quartel-general de emergência, decisões são tomadas de forma estruturada e hierarquizada e valem para todos os agentes que estão no terreno. Só assim, coisas impensáveis em nosso Brasil patrimonialista podem acontecer como, por exemplo, um major bombeiro com especialização em combate a incêndios florestais ser designado “incidente controller” (coodenador) e, por força da Lei, estar (apenas durante a catástrofe natural em questão) hierarquicamente acima de um coronel da PM ou de um general do Exército, que nesse caso são os oficiais superiores de forças auxiliares no evento, mas não têm a responsabilidade legal da coordenação das ações e dos órgãos envolvidos no sistema montado para debelar a situação de emergência.

Mais do que isso, o ICS facilita a comunicação e a provisão de equipamentos, pois permite a permuta, empréstimo e fornecimento de apetrechos de um órgão a outro possibilitando, por exemplo, o melhor alocamento de veículos de acordo com o combustível usado, ou com sua capacidade para trafegar em terrenos complicados. Analogamente, facilita o fornecimento, em caráter emergencial, de fardamento, equipamento de proteção individual, rádios e rações alimentares de um órgão a efetivos de outras instituições.

Em países sérios, tão logo um grave incidente é detectado, é montado um esquema correspondente de ICS. No Brasil, temos o Prevfogo. É bom, mas é pouco. A Chapada mostrou que necessitamos um órgão permanente que inventarie e catalogue os recursos humanos e materiais existentes nos entornos das Unidades de Conservação. Que prefeituras têm carros-pipa? Quantos Guardas Municipais podem ser (ou já foram) treinados em combate a incêndio florestal? Quais são as unidades das Forças Armadas aquarteladas na área? Seus oficiais já foram capacitados para ajudar nesse tipo de sinistro? Que tipo de veículos existe nesses quartéis? Que modelo de rádio é uniforme a todos os órgãos da região? E assim por diante. Além disso, é importante o estabelecimento de um marco legal que defina qual o fato gerador do estabelecimento de uma estrutura de ICS e quem o coordenará. O incêndio na Diamantina, mas também queimadas como a que lambeu Roraima há cerca de uma década e os recorrentes fogos que devastam a Reserva Biológica de Poço das Antas no Rio de Janeiro são apenas alguns exemplos de que o país não pode ficar à mercê de favores de um órgão a outro. É preciso que a legislação ampare a instituição definida como prioritariamente responsável pelo combate a grandes catástrofes e dê a ela poderes de convocação. Só assim teremos agilidade suficiente para debelar sinistros como o que vemos agora consumir a Chapada, antes que seja tarde demais.

É provável que eu esteja sonhando muito alto. Talvez ansiar por uma estrutura onde um major bombeiro ou um civil do Instituto Chico Mendes esteja hierarquicamente superior (ainda que conjunturalmente) a um coronel do Exército seja um despautério irrealizável. Por outro lado, há luz no fim do túnel. Na área de segurança, foi montada uma Força Nacional, não é verdade? Logo, por analogia, faz sentido que uma Força Nacional para Combates a Incêndios Florestais também seja criada. Ela poderia ter um núcleo em Brasília junto ao Prevfogo, composto por técnicos do Governo Federal e oficiais bombeiros de vários Estados da Federação, especializados em prevenção e combate a incêndios em áreas naturais.

A esse grupo, caberia unificar procedimentos e equipamentos, bem como disseminar em território nacional a doutrina ICS. Também, caberia a esse núcleo capacitar oficias bombeiros de estados onde não há unidades florestais, bem como militares das Forças Armadas e técnicos de órgãos que podem ajudar em eventuais operações de combate a incêndio, como os Institutos Florestais e as Prefeituras. Por fim, equipamentos caros e de utilização esparsa, como aviões e helicópteros poderiam ser adquiridos pela Força Nacional para empréstimo e uso nos diversos cantos do Brasil onde se fizer necessário. Já é hora do Brasil levar esse problema a sério. Afinal, criança que brinca com fogo faz xixi na cama.

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